«Il est
bon — dizia Blanchard à douta academia real de Luís XVI — de tromper les
yeux et d'imiter la nature.»
Não sei por que carga de água me ressurgiu este conselho
quando dei comigo, só, a repensar a pintura de Joaquim Filipe que está
em exposição.
«...D’imiter la nature», sem dúvida, como o artista tão bem a
imita, recreando-a a partir de visões sonhadas, ou reminiscências que se
deixam sonhar, em muitos casos, quase sempre, em trabalho de «trompe
l'oeil».
O talento de Joaquim Filipe traduz-se efectivamente na arte
de nos fazer acreditar em objectos que não existem na realidade, a não
ser por força, ou em consequência, da sua enorme habilidade em
reproduzi-los numa superfície plana.
Durante séculos este artifício técnico de reprodução fiel foi
o critério fundamental e quase que único de aferir da qualidade duma
obra.
E sem dúvida alguma que há que reconhecer em Joaquim Filipe
uma enorme capacidade para urdir estas ilusões visuais, quando ele
conjuga espartilhados elementos, desde pequenas naturezas mortas,
retratos (pois disso se trata mesmo!), bocados de decoração
arquitectural, retalhos de tecido ou de rendas, nacos de paisagem,
refundindo-os num todo a que ele — o artista — chama um quadro.
E para o leitor do produto final — o quadro — resta mesmo a
tarefa da inlutável aceitação do trabalho plástico, limpo na sua feitura
técnica, inquestionável na sua organização espacial.
Como muito bem escreveu o saudoso crítico e professor da
Escola Superior de Belas Artes do Porto, Joaquim Matos Chaves: «Joaquim
Filipe é um artista cujo estar na arte ocorre através do aproveitamento
de motivos /.../ sempre entendidos /.../ como pretexto para os seus
enunciados inequivocamente plásticos.»
E noutro passo do seu discurso: «As homogeneidade e unidade
espaciais são postas em causa, subtrai-se (o artista) à organização
lumínica focal, recusa o tonalismo cromático e advoga uma prática
tímbrica da cor.»
Tudo isto para reconhecer que a «Plasticidade é — no caso de
Joaquim Filipe — sinónimo de, eminentemente, desenho. Desenho onde se
combinam alguns teores próximos da tradição e outros — sem dúvida
alguma! — de carácter inovador».
E ainda: «Mas as exigências que se evidenciam na sua obra são
sempre exigências técnicas ou formais, artísticas e estéticas. Isto é:
de enunciação e de enunciado.»
«O que se nota no extremo cuidado posto no traçar e no
colorir. Um cuidado que denota o acusado sentido do prazer de fazer e de
que é consequência uma textualização imagética onde o acabamento é um
valor nuclear.»
Mas, para nós, esse valor nuclear que se encontra no
acabamento está sempre ao serviço da sua textualização imagética.
Textualização imagética dum seu mundo sonhado, rico de
informação acerca de reminiscências que ficaram no cadinho da sua vida
vivida e que se plasmam em sinais, em símbolos, em objectos, paisagens e
rostos que são jogados no quadro, fazendo surgir imagens misteriosas,
quais «fragmentos arcaicos» de que falava Sigmund Freud. Ou quais
«arquétipos oníricos» na teorética de Gustav Jung e que têm a sua origem
na psique humana.
E da conjugação desses arquétipos (arque = origem; tipo =
cópia) surgem os elementos com que Joaquim Filipe constrói a sua pintura
como que em acto de confissão.
São elementos profundamente básicos que o artista vai
retirando do que tem de mais profundo, revestindo as suas rêveries
plásticas de imagens ancestrais, resultantes de fontes distintas da sua
formação e educação, algo diferente do conteúdo do seu inconsciente
pessoal e que parecem estar ligados a uma como que memória colectiva.
Como já ouvi de alguém, estas rêveries do artista,
mais do que revelarem pulsões escondidas, servem em verdade para
compensar os elementos ausentes do real e, ao escutarmos esta sua voz
interior, através da leitura dos seus quadros, quase que poderemos
alcançar um sentido profundo e muito pessoal do verdadeiro significado
da vida.
Como acreditava Jung, «a mais profunda necessidade humana
será a busca espiritual do todo, simbolizada por uma viagem em direcção
ao EU».
E, para nós, a pintura de Joaquim Filipe faz-nos acreditar
que o artista nela se reverte, plasticamente, numa permanente busca
espiritual do seu todo.
Para finalizar este começo de abordagem da obra até hoje
produzida por Joaquim Filipe e de que só parte agora se expõe, impõe-se
que recuperemos mais uma vez a palavra de bom conselho de Joaquim Matos
Chaves: «Repare-se (na pintura exposta) com a atenção que justifica,
atenção que se aconselha possua uma certa demora, e procurem-se as
estesias que ela não deixará de favorecer.»
Foi o que já fiz. É o que devotada e
escrupulosamente vou continuar a fazer.
Gaspar Albino —
Aveiro, 18/6/1997 |