José Estêvão

 
 
 

Discursos de José Estêvão

 

5 - Segundo discurso do Porto Pireu - 12/2/1840 

 

 

SESSÃO DE 13 DE FEVEREIRO DE 1840

 

(Em resposta a Almeida Garrett)

 

Disseram-se injúrias, jogaram-se apedrejos... E eu não ouvi as injúrias, e as pedras nem os vestidos me tocaram!

O tempo é do país, está adjudicado ao cumprimento das nossas obrigações Mas é nosso o sangue que nos corre nas veias, e a sua primeira hipoteca é feita à nossa honra. Assim, não vou eu no que disser intentar um desforço, mas responder a um discurso.

Julgou-se que eu pretendera a coroa de Esquines e Demóstenes. Não a mereci, nem meditei alcançá-la. Essa Coroa eu a vejo, com prazer, na fronte de um orador central. Perdoai se lhe lanço a mão: não é por inveja, mas por curiosidade: parece-me que seus louros já murcharam, e que estão cosidos em uma tira de manto cínico.

Pequei, senhores, e pequei contra a sublime e celestial ordem: restringi o campo de suas maravilhas, menosprezei o poder de seus meios, desacatei a força de seus sortilégios.

A ordem tomou destas afrontas uma desforra, que me confundiu. Tendo operado um grande encanto dentro desta sala, quis experimentar as virtudes da sua magia em todo o país.

Os círculos descrevem-se e apagam-se rapidamente diante de nossos olhos, a luz empalidece, o sapo estruge nas brasas afogueadas, e o fumo dos sargaços eleva-se até aos astros. O oráculo da ordem senta-se na trípode misteriosa, e prepara-se para revelar os seus portentosos arcanos.

Oráculo! Quantos partidos há no país?

Oráculo! Quantos partidos há nesta câmara?

No país há dois partidos e duas facções, e nesta câmara um partido e uns poucos de iludidos.

É verdade que não há muito tempo que o mesmo oráculo da ordem passou increpações de um para o outro lado da câmara, e que no resto da sua grande revelação falou de um partido distinto, desse único que só reconheceu nesta casa. Mas como ao de embaraçar a ordem estes erros lógicos, se a lógica é filha da ordem, e sujeita a seus preceitos? Se a ordem pode combinar as desarmonias da natureza para os grandes fins da criação, se ela pode ligar todas as dissonâncias do mundo, como não há de se sujeitar às contradições dum discurso a sua concludência, e fazer asserções opostas a uma só verdade?!

Eu vou, porém, incorrer novamente nas iras da ordem, eu vou rectificar o quadro dos nossos partidos políticos; eu vou fazer a história dessa ordem tão caluniada, falar de seus serviços, descrever a sua índole e descobrir suas pretensões.

A nos ainda nos não foi muito prejudicial a fusão ordeira; ficamos salvos da aliança nefanda, que ela operou. Sim, senhores, nos ficamos fora do grémio desse partido. que se deu por único existente neste recinto; e foi isto uma fortuna, porque antes nos distingamos pela ilusão dos nossos preconceitos, do que nos confondamos na realidade daquelas convicções. (Apontando para o centro.)

Mas a moral, a religião política do país, a honra e umbre dos homens públicos, não seriam ofendidas nesta grande mistificação? Decerto, e é preciso vingá-las. Percorramos poiso panorama político, que a ordem nos pôs à vista.

É esta, eu a vejo, a monarquia velha, carregada com a existência de séculos, e mostrando quase sempre através do peso dos anos o vigor da juventude. Absoluta em muitas de suas formulas, mas livre em sua origem, eu a vejo com as suas leis muito sensatas para o tempo, e com os seus costumes mais sensatos que suas leis, abatendo já o orgulho dos barões, já a insolência dos clérigos. Eu a vejo cercada de seus oradores, de seus jurisprudentes e de seus capitães, tendo a um lado a lado Egas Moniz, e doutro a pena de João das Regras. Eu a vejo fiel como Marum de Freitas, resistente como o ministro de Afonso IV, triunfar no Zaire, no Amazonas e no Ganges. Saudade não, mas respeito por essa monarquia sempre ciosa do nome português!

É esta a monarquia nova, a monarquia da restauração. Obra da diplomacia sustentada pelos braços do país, ajudada pela rivalidade dos áulicos, pelo despeito dos ambiciosos, recolhe em sua corte os agaloados, que a tirania despediu do seu serviço. Herdando da monarquia velha seu valor e gentilezas, vence pelas armas; mas depois da Vitoria, esquece-se dos vencidos para os proteger, e dos vencedores para os premiar. Recebe o país cheio de esperanças, entrega o abatido de desenganos. Deixa perder em suas mãos esta força da confiança, que é o primeiro elemento das grandes empresas governativas. Arroja-se a todas as instituições antigas, despedaça-as, liberta os servos, apodera-se das esplanadas dos castelos feudais: e a mão, que tais obras cometera, desonra-se compondo arminhos para pares. Esta inconsequência é grande, mas o país perdoa-a: era forçoso cometê-la. Alguma voz, que hoje só se levanta em apoio do poder, então bradava tribunícia contra os homens que empreenderam tais reformas, e o que então se julgavam inspirações do bem público eram saudades dos abusos passados. Que esses homens que foram alvo dessa oposição desleal a guardem como um espinho do seu martírio governativo, que o mostrem ao país, que ele só por isto os absolverá dos seus pecados! Em política uma só grande medida desculpa às vezes um cúmulo de desacertos, e mesmo alguns crimes. Essa monarquia fez-se dissipadora, desgovernada e exclusiva, e o seu poder desapareceu.

Que é feito, porém, - onde está ela, que não a vejo? - dessa monarquia novíssima, a monarquia da revolução, a monarquia de 4 de Abril, monarquia feita por nós, levantada nas nossas lanças, monarquia que tem suas raízes no coração do país, e nos degraus de cujo trono se sentamos oficiais da hierarquia social, e não as raças que a vaidade distingue; essa monarquia bela, generosa e forte como a juventude, sensata, económica e prudente como a idade provecta; essa monarquia, que abateu a seus pés o orgulho estrangeiro?!

Pois esta monarquia, que esqueceu ao oráculo da ordem, e a nossa! Desta monarquia somos nós facciosos; é facciosa a parte mais brilhante do exército português, que levantou com dó suas lanças contra seus irmãos de armas; é facciosa uma magistratura ilustrada e firme, que a revolução legou ao nosso foro; é facciosa a rainha, porque a jurou, e palavra de rei não toma atrás; é faccioso finalmente todo o país, o país que nos devia julgar, e de cuja legal jurisdição vós apelais para as alçadas e comissões, que tais são vossos colégios censíticos. Esta facção é pois grande: a facção da legalidade.

E não há facciosos? Há, e os verdadeiros facciosos são aqueles que rasgam com a faca da lisonja as paginas mais brilhantes da nossa história; os que riscam do seu calendário os dias de ovação nacional; os que tiram da colecção de suas leis a lei fundamental do estado; os que babam todas as instituições, que não sabem substituir; os que querem endoidecer a grave monarquia representativa, metendo-lhe na cabeça ora os rescritos do Império, ora os decretos da Convenção, ora as ordenanças da Restauração; os que, contrariando por sua vida desregrada todos os preceitos religiosos, querem firmar o ilotismo num culto santo de paz e igualdade; os que, apregoando-se amigos do trono para o intrigarem e comprometerem no conceito do país, excitam contra quem os denuncia todas as fúrias do poder: finalmente facciosos são aqueles que, saindo há pouco dos conselhos dum partido, em que tinham França entrada, quando ele os podia tomar por testemunhas da sua inocência, se convertem em seus insensatos e falsos acusadores, fazendo para isto a mais nojenta rapsódia dos convícios que sujam a parda Gazeta de Lisboa, e os escritos do padre Macedo e de Alvito Buela.

No meio destes facciosos anda um grupo de guerrilhas políticas, que ora acompanha os pendões do castelão, ora as insígnias das cidades livres, que se mete nas tendas dos generais e nas barracas dos soldados, que atiça os combates, e colhe os despojos das batalhas, que aparece sempre ao pagar o estipendio, ao repartir as rações, e que grita por toda a parte: Ordem! Ordem! - ordem que não tem, ordem que não quer, ordem que não respeita, ordem que detesta.

E este grupo de guerrilhas é composto de filhos bastardos de mãe nobre, em cuja herança tiveram largo quinhão, e que agora encobrem suas virtudes, exageram suas fraquezas, sem se lembrarem que a mais vergonhosa delas é o havê-los gerado! A mãe é a revolução, e os filhos são os deputados do centro, alguns dos quais só apareceram no parlamento depois da revolução, e por influxo dela.

Ordem! palavra mágica, que faz esbravejar aqueles que mais vezes a pronunciam! Ordem! palavra mágica, que é o martírio dos que a inculcam como sua coroa! Porque o doce nome de Deus fere, mortifica menos o coração do ímpio, que o pragueja, do que o do hipócrita, que o finge adorar. o ímpio, ao ouvi-lo, solta mais uma praga, e tem mais um prazer: o hipócrita é obrigado a acatar mais uma vezo ser que aborrece, e faz mais um sacrifício.

E sabeis vós os que estão no pireu? São aqueles que com uma carta de recomendação mercantil, assignada pela ordem, cujas letras no mercado político estão agora valendo tanto como os títulos azuis na nossa praça, julgam converter o país em uma feitoria sua de poder, alcançando que todos os ministérios lhe venham sempre consignados.

«Não se quebrou o poder da Carta!» Onde está a mão fatídica, que pode delir de cima dos acontecimentos a cicatriz desta grande cisura política? Quem pode sufocar os brados populares. que ainda Se ouvem, ao som dos quais se abateu todo o edifício social? Quem pode riscar da memória os longos trabalhos de uma Constituinte, que velo soldar o golpe da revolução?  Sim. senhores, leis, trono, instituições, tudo esteve por momentos aos pés do povo: e lá estiveram também as becas dos desembargadores e as pastas das enviaturas!

Esta aristocracia de orçamento, que só tem por armas as cifras de seus ordenados, e por pergaminhos os diplomas dos seus ofícios, lá foi tirar ao meio do forum algumas dessas becas e dessas pastas, e lá foi com elas, salpicadas ainda com a lama da revolução, aos paços reais, onde seu talon rouge, que tão mal fica a pés plebeus, é entre disfarçadas caricias objecto de escárnio e motejo.

Quem conteve, porém, em respeito essa revolução? Quem lhe abrandou as fúrias no dia do seu triunfo? Seriamos especuladores políticos, que à noite vinham fazer a corte a anojada Carta, e que de dia cumprimentavam a revolução, remendando ao mesmo tempo a velha sotaina de tribunos, não usada nas contendas da liberdade e nas orações do parlamento, mas nas arengas de esquina e nas orgias da insurreição, e compondo e enfeitando os galões da farda bordada para estarem prontos a oferecer os seus serviços ao poder a quem a sorte desse a vitória? Seriamos especuladores políticos, que durante os tempos duvidosos ajustavam aos pés as sandálias de Gracho, e limpavam a facha patriciana, para virem a praça, ou beijar o punhal vingador de Bruto, ou ouvir a oração do ordeiro Marco António e seguir a toga ensanguentada de César? Não, senhores; quem sossegou a revolução, quem a livrou das garras da anarquia, foram esses infernais anarquistas, que, superiores a todos os prejuízos, conhecem que as paixões dos reis e dos povos são fraquezas, que é mister antes mitigar que exasperar, e cujo único crime é o haverem-se recusado a vender aos ambiciosos os cadáveres de seus concidadãos a troco de miseráveis lantejoulas!

E se nós realmente somos anarquistas, porque não deixamos sem freio esse furor de retrogradação, que vos devora? Porque não vos abandonamos ao vosso fanatismo político, ao desatino das vossas paixões? Porque não fazemos acender como nosso silencio as fúrias do povo, que mais se exacerba quando se é desamparado, para vós levantardes contra ele as forças da opressão, e ele contra vós os punhais da vingança, convertendo o país por estas reacções tirânicas num lago de sangue, contemplando-vos com prazer sobrenadando nele sempre a gritar: Ordem! Ordem! - a ordem dos cadafalsos, a ordem das turbas, a ordem da anarquia do povo e da anarquia do governo?

Passo à história da ordem. Nela tudo é grandeza, doçura, prazer e maravilha; assim a empresa não fosse difícil! Que língua pede revelar os seus misteriosos trabalhos, descrever com delicadeza a eficácia portentosa de seus meios e a pompa de seus resultados? Que engenho pede compreender todos os fenómenos da ordem, e abranger a extensão de seus domínios? Quem pede, arrombando os umbrais da eternidade, ver a ordem lutando como caos obrigar a natureza às leis da harmonia?

A ordem, primeiro, encerra no centro desse caos as matérias vulcânicas, essas massas anárquicas da natureza; depois empola os montes, e cava os vales, encana os rios, recolhe os mares, azula o céu, alumia a terra, suspende os pássaros nas azas, equilibra os peixes no nado, levanta nos pés os outros animais, tira do pó o rei gozador destas maravilhas, da costela desse rei a rainha sua companheira, e inspira a esse par ditoso o seu primeiro beijo, beijo criador e fecundo, de que a nossa vida é um presente! Ingratos! Devemos a vida à ordem, e negamo-lhe os respeitos que ela merece!

Por outro lado, quem forjou a espada organizadora de Nemrod? A ordem. Quem salvou das águas do Tibre os infantes fundadores de Roma, e com eles os fados do Lácio? A ordem. Quem ensinou os caminhos, quem conduziu através de todas as dificuldades os bárbaros do Norte? A ordem. Quem fez de um almocreve árabe o chefe duma religião? A ordem. Quem deu a Carlos Magno a sua poderosa espada? A ordem. Quem compôs o bálsamo de Ferrabraz? A ordem. Quem fez as botas de Carlos XII, o chapéu de Enrique IV e o casaco de Napoleão? A ordem. Quem, finalmente, inventou as belas artes, a música, a pintura, a escultura, e a grande e nobre arte da gastronomia? A ordem. Ingratos! Devemos tudo à ordem, e não lhe damos a consideração de que é credora!

Quando a expedição restauradora, epílogo romântico de esperanças, de receios, de saudade e valor, quando essa expedição, que em si encerrava maiores fados que a nau sagrada dos atenienses, atirou peca de leva nas águas dos Açores, quem se pôs ao leme de seus navios? A ordem. Quem abateu os mares, quem enfreou os ventos, quem fez singrar os escaleres, quem deu a mão ao soldado para saltar em terra, quem tangeu os clarins, quem rufou os tambores, quem limpou o fuzil, quem fez rodar o canhão? A ordem.

Eu mesmo, que então tinha no braço as minhas insígnias de cabo de esquadra, e que com os granadeiros da minha peça marchávamos, silenciosos e sofredores, carregando muitas vezes como peso dos canhões; vós mesmos, companheiros de batalha, que vos sentais ao meu lado, quando depois saíamos das baterias, salpicados como sangue de nossos irmãos de armas, e abríamos caminho com as baionetas por entre os inimigos, nós todos, que julgávamos que estas vigílias, estes perigos, estes transes, este valor eram filhos do nosso patriotismo, da nossa devoção pela liberdade, enganávamo-nos, porque todos estes feitos eram devidos ao influxo mágico da ordem, de que tínhamos sido tocados! Ingratos! E devemos à ordem toda a nossa glória e nome, e negamo-lhe o acatamento a que tem direito!

E, nos dias de perigo, não apareceu em nossas fileiras o oráculo da ordem, e nós suspeitamos do seu patriotismo?! Como fomos loucos! Nesses momentos operava ele todas as maravilhas e todas as gentilezas das nossas armas, desenvolvendo por um gasómetro ordeiro o espírito vivificador da ordem, e repartindo por condutos invisíveis a todos os soldados da liberdade.

Está decidido: não há outro poder na terra senão a ordem; todo o mundo material e político lhe pertence. Entelequias de Malebranche, turbilhões de Descartes, monadas de Leibnitz, gravitação de Newton, princípio utilitário, escola sentimental, força dos costumes, educações religiosas, génio dos legisladores, - tudo isto é nada, e o mundo não lhe deve nem bem nem mal. Só a gramática se pode apresentar como rival da ordem, e disputar-lhe o império do mundo: também ela tem pretensões anteriores, grandes e importantes, e já um seu predilecto as sustentou com gravíssimas razões.

A paz é hoje um voto universal; e para que esta contenda a não altere, divide-se o mundo em império do Oriente e Ocidente, e fica um deles para a ordem, e o outro para a gramática!...

Esta partilha, se se fizer sem sangue, aparece em bom ensejo, porque corta pela raiz a embaraçada questão do Oriente. A astúcia do Bacha, a coragem do Divan, a ambição da Rússia, a doblez da Inglaterra e a perplexidade da França, tudo se tornará inútil, e nós desta vez com duas palavras ditamos a lei a Europa, e mudamos a face do mundo.

Mas a que veio o pedantismo parlamentar, a charlatanearia literária, a que me vi obrigado a responder para a ridicularizar como merecia? Que quer dizer tirar as questões políticas do seu campo próprio, e descrever os partidos por dissertações metafísicas? Que têm os actos dos homens como valor das palavras, que eles tomam por senhas? Que tem a religião, doce e pura, com os crimes que se cometem em seu nome, com as fogueiras que se acendem para a ultrajar? Que tem a literatura com as obras que se lhe filiam, e que ela reprova e desconhece?

Sabeis vós os que estão no Pireu? São os que tendo feito alguns lucros de reputação, quando a praça tinha menos negociantes, julgam que pedem esperdiçar o ganho, reputando que alguns papéis de crédito, que ainda têm em suas carteiras, são efeitos de grande valor, e não vendo já sobre os seus escritórios o selo da quebra, e a impossibilidade de apurar da massa falida somas que possam exceder as quantias necessárias para o pagamento privilegiado de caixeiros, criados e outros, que lhes ajudaram a granjear suas poucas riquezas cientificas.

Se se fala da ordem, como princípio político, nós também somos ordeiros, e eu já descrevi a ordem, como a compreendemos.

Sim, senhores, a nossa ordem tem toda a eficácia de um princípio, sem ter os desvarios de uma paixão; é um elemento governativo, e não a bandeira de um partido; é um sedativo, e não um cautério para as paixões populares; a nossa ordem confessa-se sem alarde, e serve-se sem galardão.

«Mas a ordem não é exclusiva, não afastou cidadão algum da uma; abriu as portas do parlamento a todos os partidos, propôs a lei das reintegrações, e reuniu assim a família portuguesa em volta do trono.» Examinemos estas alegações.

Acaso nos colégios eleitorais, em que a ordem apresentou os seus candidatos, não havia outros que procurássemos sufrágios públicos? Se eles não fossem eleitos, ficaria sem representação essa parte do território português? Se os escrutínios lhe fossem avessos, ficariam as cadeiras que hoje ocupa a ordem cobertas como pálio ordeiro, como cadeira episcopal em sé vacante? Não; os ordeiros afastaram da uma tantos cidadãos, quantos deputados contam neste parlamento. A ordem não afastou alguém da urna, e aos pés das cadeiras da ordem está como trofeu a clavina do Pedreira, e as cabeças de dois apóstolos ordeiros ainda estão polvilhadas com as cinzas das actas de Guimarães.

A ordem precisava de governar, mas não tinha toda a gente necessária para fazer governo; precisava maioria nas câmaras, e não tinha candidatos para a formar. Neste apuro meditou, e resolveu o problema de sua influência pelo seguinte modo: «Se nenhum dos dois grandes partidos do país trouxerem ao parlamento uma força, que lhe de vitória segura; se conseguirmos igualar o número de seus eleitos, nós, posto que poucos, usurparemos o privilégio de decidir as questões, encostando-nos aquele que melhor nos convier.» Isto se pensou, e isto se fez; para o conseguir o governo, que então era ordeiro, desenvolveu junto à uma todos os recursos da intriga, paralisando os esforços de um partido com os esforços do outro; e daqui nasceu a actual câmara, em que os ordeiros tiveram até à última votação a regalia do desempate.

Eis aqui a que se reduz toda a táctica ordeira, que disfarça os seus fins ambiciosos num princípio generoso!

Este recurso da intriga, que se empregou junto às umas, ainda agora se exercita no parlamento. A ordem em suas conversas de corredor, em suas expansões políticas, diz à esquerda: «Os da direita são devoristas»; diz à direita: «Os da esquerda são anarquistas»; diz à esquerda: «Nós cá somos da revolução»; diz à direita: «A revolução foi uma calamidade»; diz a estes: «Vós tendes talentos e oradores, o governo pertence-vos, os vossos adversários estão gastos»; e logo repete aqueles: «Estadistas, só vós os tendes; vossos contrários são gárrulos e nada mais». E assim se joga com dois partidos, e se escarnece do país na pessoa deles! Que miséria! Que mistificação!

A ordem calçou as forças da revolução, e conheceu, porque a preparou, a sua decadência. Então os ordeiros, que dela haviam recebido empregos, procuraram segurá-los, obsequiando o partido a quem o poder devia dentro em pouco ser entregue. Daí veio a lei das reintegrações; essa lei é uma impetra do cumpra-se da chancelaria cartista nos despachos da revolução. Mas, se essa revolução deu aos ordeiros talher na mesa do orçamento, ou se os passou do fundo para a cabeceira dela, porque não cedem eles os lugares, que não eram seus, aos primeiros comensais? Em vez deste procedimento, procuram alargar a mesa, fazendo mais dispendioso o jantar, e obrigando o povo, que nada tem com estas generosidade, a pagar para os novos convidados! E é isto que se chama reunir a família portuguesa em volta do trono? Sim, é reuni-la, mas em volta do orçamento.

Quereis vós saber os verdadeiros planos da ordem nesta decantada reunião da família portuguesa? Eu os descubro. Quando nós, com pesar, combatíamos por nossas dissenções políticas, os adeptos da ordem lembraram-se de se constituir em tribunal de paz, de fazer subir à sua presença os memoriais de nossos recíprocos agravos, de decidir o nosso grande litígio como uma questão caprichosa de servidão entre dons vizinhos poderosos, e de fazer uma constituição de retalhos, como se fosse um discurso ordeiro, anulando o voto e a missão da Constituinte. Os adeptos da ordem, depois desta grande obra, ficariam padres definidores, e nós receberíamos o hábito e cordão de leigos para os servirmos no refeitório. Ainda agora não perderam estas pretensões de domínio: um presta apoio ao ministério, com tanto que ele se sujeite as suas correcções, e assim quem fica governando menos é o governo; outro declara que o seu apoio a administração não passa duma neutralidade armada.  Sabeis vós os que estão no Pireu? São os que sem cabedais, sem crédito, vendo que todas as letras lhes são protestadas, que os seguradores se recusam a pagar-lhes a importância das apólices, que todos os navios lhes naufragam, ou varam, se metem cegamente em especulações deste lote!

«E a ordem é consequente, e vós sois díscolos.» Um homem que nós quisemos elevar ao poder, um homem cujo nome vós tomastes como um mau agouro para a liberdade, um homem que vós arredastes da administração com ferro e sangue, foi afinal o vosso ídolo: cantastes a palinodia, e reconhecestes a pureza de nossas intenções. E esse homem, respondo eu, cujo crédito vós prejudicastes momentaneamente com as vossas recomendações, cujo carácter procurastes perverter, e que quisestes levar ao ministério através de todas as considerações, e não obstante as maiores calamidades, esse homem é desalojado da administração, esse homem é substituído antiparlamentarmente, - e vós não inquiris a causa desta mudança, mas antes vos abraçais como s sucessores dele!

Mas um de vós tomou do Sr. Derramado, lavrador sem pretensões, e fez-lhe os martírios que se fizeram ao Redentor. E vós, oráculo da ordem, pusestes a coroa de espinhos sobre uma cabeça nobre: achastes nela cicatrizes de feridas gloriosas, e rompeste-lhas com os espinhos! Quisestes amarrar-lhe os dois braços valentes: achastes um cortado, e lançastes a corda a parte, que as balas do tirano respeitaram. Quisestes meter-lhe na mão, assim atada, a cana da irrisão: encontrastes já uma espada ilustre, e lançaste-lha aos pés. E, para tudo isto, metestes-vos pelas catacumbas das nossas organizações ministeriais, para lá irdes tirar um cadáver já mirrado! E tínheis ao vosso lado o maior exemplo de surreições ministeriais, que melhor servia ao vosso intento, e respeitaste-lho, só para não ofender as imunidades da ordem. E que terão feito estes dois homens para merecerem de vós tão diverso tratamento? Estão fora do poder, e resistiram ao estrangeiro.

«Mas a ordem é modesta: não se acham em seus bancos esses barões de fresca data, cujas famílias ninguém conhecia.» Permita-me a câmara que, a este respeito, lhe conte uma história. Um sargento relaxado deu licença a toda a guarda, e ocupou o lugar da sentinela. Veio o oficial de ronda, perguntou pelo sargento, e ele respondeu: pronto; pela sentinela, e ele respondeu: pronto; pelos outros soldados, e o sargento respondia sempre: pronto, pronto. Assim está a ordem: deputado, pronto; senador, pronto; marquês, pronto; conde, barão, etc.: pronto, pronto. Enfim, a ordem não tem gente para tanta coisa, e é forçoso que o mesmo homem acumule diversas dignidades, o que lá não falta, e que apesar disto não tenha todas quantas deseja, o que é uma pena. E não haverá na ordem pessoa, que, trajando não a sotaina de tribuno, que nem todos pedem vestir, mas a roupeta multicor, cujos retalhos foram presente de diversos partidos, saísse com ela do meio das turbas, e no caminho para os paços reais a fosse rasgando, e tomasse na primeira adéla uma casaca safada de rasteiro áulico? Se tal personagem não está na ordem, então nem todo o ministério é ordeiro, e há lá fazenda de contrabando.

A ordem é sábia, inocente, e protectora de todas as classes.» A Bretanha foi um mar de sangue, quando as facções lhe quiseram incutir uma lei e um culto, que repugnava a seus hábitos: a ordem restituiu-lhe a paz. E o dinheiro inglês, distribuído entre aquelas povoações pelo ordeiro Pitt e as pregações dos padres fanáticos, que também eram ordeiros, não concorreriam para as horrorosas cenas que se passaram naquele desgraçado país? Mas que tem essa época de frenesi revolucionário, em que só pecou menos quem pecou para melhores fins, como estado actual da Bretanha, a que me referi, estado que comprova as benéficas influências do progresso, e a debilidade da resistência ordeira?!

A Irlanda também deve as suas desgraças às facções, que lhe não permitiram o exercício de sua religião. E quem são essas facções que disputaram a Irlanda a liberdade do seu culto? São os tories: e os tories são ordeiros. E que tem a época da luta religiosa, que já acabou na Irlanda, como seu estado actual, em que suas garantias municipais estão sofismadas, seus direitos políticos restritos, e o suor de seu trabalho entregue a uma aristocracia a - vida e indolente? Quando o povo irlandês, libertado pelos esforços de O’Connell, feliz, vitorioso e agradecido, levantar estátuas ao seu corajoso defensor, ou as mãos invejosas da ordem irão derrubar esses monumentos de gratidão pública e levantar o seu ídolo sobre as ruínas deles, ou o tribuno O’Connell será declarado ordeiro em concílio ecuménico.

A ordem não propõe o censo; esse está decretado na Constituição; a nossa lei só regula a prova do censo.» A prova do censo! Que agudeza! que descoberta! Inveni! inveni! Sim: uma prova que destrói o princípio, e que une a todos os erros da doutrina a deslealdade dos meios; uma prova que ofendeu preceito constitucional, que se diz corroborar! «A nossa lei de prova do censo só quer destruir o vago árbitro das juntas de paróquia, substituindo-lhe uma regra fixa e invariável.» Sim: a regra fixa e invariável da vontade do governo, que mandará de suas secretarias a lista das pessoas que quiser recenseadas, e que terá nos empregados de sua nomeação, a quem esses recenseamentos vão ser cometidos, fiéis executores de suas indicações.

Mas a ordem não quer, nem a nação deseja, ver lutar entre si as diversas classes de que se compõe; e a ordem, que nos está pregando sempre esta doutrina, fala-nos continuamente da classe média. Onde está esta classe media, se não há uma inferior e outra superior? Quais são os limites, que marcam a raia destas diferentes classes? A classe média, direis vós, é composta dos cidadãos que têm o censo marcado na lei para votar. E quem são os cidadãos que têm esse censo marcado na lei para votar? São os que formam a classe média. Assim a descrição desta classe e a constituição do corpo eleitoral são coisas que dependem da vossa lei, e a vossa lei do vosso árbitro.

Sabeis vós os que estão no Pireu? São aqueles que vem despachar as alfândegas da publicidade estes fardos avariados de história, sem o selo da crítica, e expor à venda no bazar do parlamento, em vez dos panos finos da verdade, as baetas do sofisma.

Estão também no Pireu os que, vendo voltar dos bancos das eleições muita embarcação carregada de quartolas de confiança, de barris de votos, de dornas de actas, e tendo muitas vezes empreendido sem sucesso esta peca do alto com perda de barcos e aparelhos, agora julgam fazer-se senhores do ganho de toda esta especulação, fingindo-se caixeiros e guarda-livros da nação, e querendo comprar per sua conta todo o pecado, passando para tudo isto letras em nome dela, como mesmo direito com que uma vez três alfaiates ingleses proclamaram em nome da Grã-Bretanha.

Estão no Pireu os que, considerando a coroa como uma mina, se associam a todas as companhias nacionais e estrangeiras para a explorar, meditando largar a empresa, logo que a veia estiver pobre e as galerias de mineração inundadas.

Estão no Pireu os que, dos livros que lêem, só ficam cogumentos com a recordação de suas vigílias e habilitações académicas; os que cirzem de fazenda emprestada relatórios, leis e discursos; os que chamam ignorantes aos que lhes ; e finalmente os que, para que se não estrague o gosto público, recomendam as suas obras com prefácios panegiristas, escritos por sua própria e modesta mão.

Estão no Pireu os que no século XIX mandam vir de França, por atacado, quintais e quintais de discursos do Abdas com molho de Guizot e Royer Collard, expõem à venda, como iguana esquisita, a chanfana da soberania da razão, da supremacia legal das capacidades, julgando que a grosseira cozinha doutrinaria, que com seus pastéis tanto tem arruinado a saúde de povos e reis, ainda pede satisfazer o delicado paladar das nações, acostumadas aos apetitosos guisados da soberania popular, da igualdade e da justiça.

Estão no Pireu os que, depois de terem feito suas genuflexões ante a estátua de ferro da usurpação, foram para a emigração adorar algumas estátuas de ouro, que por lá se levantaram, e que depois se recolheram ao país, para se associarem, não com aqueles que haviam sustentado o colosso da tirania, julgando que combatiam pelo bem da nação e pelos direitos da realeza, mas com os que, sem  acreditarem em causa alguma, as seguem todas, que têm a cronologia das desgraças públicas marcada no peito com as insígnias das mercês, e que, havendo levantado o usurpador do pó do nada, depois que tiraram todo o partido dos seus malefícios procuraram minar o seu poder para servirem outro senhor, que melhor lhes pagasse.

         Estão no Pireu os actores de todos os entremezes, comédias e tragédias ministeriais, que vestem com a mesma facilidade a jaqueta do , o manto do rei tirano e o chambre de áulico retirado, sem lhes importar os apupos da plateia e as censuras dos literatos, procurando só que haja boas enchentes, que as escrituras da empresa sejam cumpridas, embora todos os dias mudemos empresários.

Estão no Pireu os que, deixando o licito comércio da virtude e honestidade, se puseram a traficar em galões, plumas e lantejoulas, e que solicitando um lugar nos mercados das cortes estrangeiras, para irem expor à venda suas fazendas, o não puderam alcançar.

Estão, finalmente, no Pireu os que vieram para a casa comercial Revolução & C.a, como a mocidade do Miacreditam e procuram arruinar por todo o modo.

Mas quem é toda esta gente que se acha no Pireu? Que está ela lá fazendo? Foi um sonho! No Pireu só vejo uma companhia de trabalhos braçais, que corre avidamente à praia, quando cega alguma carregação ministerial, e que carrega por todo o preço os fardos de que ela se compõe, qualquer que seja a firma comercial com que venham marcados.

Caminho de Madrid vem um pobre artista espanhol; traz toda a sua ferramenta em uma pequena seira, volta-se para a sua pátria, que deixa, e diz-lhe modestamente: Adiós, Madrid, que te despueblas. Caminho de Madrid vai um granadeiro a passo largo, de arma traçada; perguntam-me que destino leva: Me voi de refuerzo à Murillo. Nós, a esquerda, representamos Madrid saudosa e despovoada; a direita é a divisão de Murilo; e a ordem reúne em si a fatuidade do artista e do granadeiro espanhol. Bem! a nossa situação fica assim menos complicada. A ordem sumiu-se na última votação que tivemos; já não há senão esquerda e direita, e voltamos aos tempos felizes das câmaras da Carta.

Já que tenho estado a registrar o porto Pireu, e a verificar as fazendas que nele desembarcam, vou também verificar o fardo ministerial de 20 de Novembro.

No discurso da coroa, além das comunidades de etiqueta, tudo o mais em meu entender são consequências; essas consequências tem um princípio, que para nós ainda está oculto. Nós somos chamados a avaliar e julgar essas consequências, e esta tarefa é impossível, se o princípio donde elas se derivam nos for desconhecido. Estamos pois autorizados a pedir explicações aos Srs. ministros em nome da lógica.

Mas qual é este princípio? Eu vou dizê-lo: é a existência e a organização do actual ministério.

A folha oficial, as discussões, o testemunho de nossos sentidos, tudo nos certifica que nós temos governo, e que vós o formais. Como, porém, sois vós governo? Eis aqui um ponto capital, uma questão que domina todas, e sobre ela nada diz o discurso da coroa.

Talvez se estranhe este meu reparo: vou justificá-lo. O ministério actual apresenta um tal enlace de recordações antipáticas, de princípios opostos, de precedentes contrários, de índoles diversas, que é forçoso supor, ou que a perspectiva do poder deslumbro nos Srs. ministros para não veremos inconvenientes desta ligação, ou que algum grande fim governativo fundiu suas consciências e irmanou suas vistas políticas.

Saudade profunda pelas instituições abolidas, entretida pela lembrança de desastres domésticos; versatilidade selada como serviço a diversas causas; furor reaccionário contra todas as instituições populares; política astuciosa, que procura ganhar os corações, enlear as inteligências, e que ensina a deserção como uma virtude; finalmente, frenesi executivo, que considera os homens como obstáculos materiais, e as leis como peias impertinentes - tudo isto se acha representado no actual ministério com caracteres de sangue.

Por estas observações, que já são populares, a administração de 20 de Novembro apresentou-se ao paz. suscitando toda a curiosidade dum enigma e todos os receios de um mau presságio. As explicações, que posteriormente têm dado os Srs. ministros, têm legitimado esses receios, sem diminuir essa curiosidade.

Esta minha exigência de explicações não parte só dum princípio de conveniência, mas é, em meu entender, o cumprimento duma obrigação sagrada.

Ao encerrar as nossas sessões, deixámos à coroa um ministério coberto com os nossos votos, ungido com a nossa confiança, e esses votos e confiança valem bastante aos nossos olhos, e aos do país, para deixarmos de inquirir as cansas por que se frustrou o seu influxo.

A coroa retirou a sua confiança aos ministros; a acção da sua prerrogativa parou aqui. Mas sobre nós pesa tarefa mais árdua e odiosa: nós somos obrigados a trazer ao banco dos acusados os ministros que mal servem o país.

Assim prevenidos pela resolução da coroa, nós precisamos saber se o ministério transacto merece que entreguemos ao tribunal da segunda câmara o exame da sua política; é, pois, em nome da prerrogativa da câmara, que nós interrogamos a prerrogativa da coroa.

As lutas parlamentares tinham cansado o país; depois de embainhada a espada de nossas dissenções políticas, per toda a parte Se faziam votos por um sistema de tolerância e concórdia. A palavra conciliação foi repetida no meio desta casa entre os nossos aplausos, e inculcada como a senha de uma política protectora, que devia melhorar o nosso futuro e esquecer o nosso passado o ministério de 18 de Abril ia realizando este esperançoso programa; o timbre oposicionista do lado direito desvaneceu-se nas primeiras questões do governo, e tanta era a sua tendência para segurar o poder, que nós nos vimos obrigados a levantar nestes bancos alguma voz de oposição para sustentarmos o equilíbrio parlamentar. Que causas destruíram, pois, este desejado acordo? Que causas enlutaram outra vezo nosso horizonte político, que começava a limpar-se?

Recordemos a organização do ministério de 18 de Abril. A coroa chamou aos seus conselhos todos os homens importantes; rodeou-se de todos os partidos; ouviu as suas exigências. A missão organizadora foi incumbida a diversos caracteres, e uns depois dos outros pediram a sua majestade a exoneração daquele honroso encargo. Ensaiaram-se todas as combinações, tentaram-se todos os nomes, e nós aguardámos, sem a dificultar, a escolha da coroa. Afinal apareceu o ministério de 18 de Abril, e ninguém pode contestar que ele foi o resultado do mais livre e meditado exercício da prerrogativa real. Que causas, pois, anularam a expressão espontânea da vontade da coroa?

Finalmente, senhores, nós somos obrigados a julgar e comentar à face do país todos os sucessos importantes, que tenham acontecido no intervalo de nossas sessões; e a mudança de um ministério é na ordem constitucional um facto da maior transcendência. Não podemos, pois, ficar silenciosos sobre ela, sem abnegarmos do nosso mandato.

Esta obrigação de julgarmos o facto da nova administração redobra, se atendermos ás varias, mas importantes explicações, que geralmente se dão deste fenómeno político.

Uns dizem que se apresentou à coroa como iminente um grande perigo: que a ameaçaram com a desmembração dos nossos territórios, e que a diplomacia estrangeira, irritada pelas resistências nacionais, pediu o sacrifício do ministério de 18 de Abril para aplacar suas iras. Outros espalham que o ministério fora imposto brutalmente à coroa que ainda roxeiam em pele delicada os vergões da mão estrangeira, que cometeu tal atentado; e que este ministério há de ser dócil instrumento das vontades de quem o elevou ao poder. Outros, finalmente, sem negarem esta origem, afirmam que os nomes europeus dos Srs. ministros. conhecidos e respeitados em todos os gabinetes, hão de só como seu prestígio resolver a nosso favor todas as questões diplomáticas, e trazer-nos outra vez ao tempo em que vinham os embaixadores da Pérsia tributar homenagem aos nossos reis.

Se este perigo ainda existe, não obstante haver-se tomado uma providência para o conjurar, por que motivo não havemos de ser conhecedores dele, para resolvermos as medidas que demanda? Se com efeito existiu, e já não existe, por que razão, junto com a notícia da sua existência, se nos não há de comunicar a agradável nova de que já o não devemos temer? Se o ministério não tem a origem estrangeira, que se lhe atribui, nem está disposto a servir cegamente a diplomacia, por que razão se não hão de negar formalmente estas alegações? E se o ministério, em uma palavra, possui esse especifico de paz e grandeza, que se lhe atribui, porque há de cometer-se a barbaridade de no-lo encobrir?

Estas perguntas desagradam aos Srs. ministros, e S. Ex.as, para se livrarem delas, sustentam que eu estou pisando terreno que me é defeso pela lei fundamental, e cobrem com as prerrogativas da coroa o seu embaraço e pouco tacto. Este recurso é um pouco cobarde; mas, assim mesmo, é preciso inutilizar-lho.

A prerrogativa da coroa não é uma homenagem, é um princípio; não é um sentimento, é uma doutrina; respeitá-la é observar as leis, que marcam a sua acção. A prerrogativa é livre, libérrima; mas os actos do seu exercício geram responsabilidade, e essa responsabilidade está nos Srs. ministros. O primeiro acto por que o ministério é responsável é a sua própria existência, poiso sistema representativo fora um absurdo, se não tomasse alguém responsável pelo mais importante facto político que ele reconhece.

Os Srs. ministros dirão talvez que aceitaram as pastas, porque sua majestade lho ordenou. Mas uma organização ministerial não é um objecto de disciplina de quartéis; um ministério é um compromisso entre quem o aceita e o nomeia, e quaisquer que fossem as considerações que ditaram a coroa essa nomeação, elas encamaram na cabeça dos Srs. ministros, que, pelo facto de aceitarem o poder, as esposaram.  Assim, sem entrar na esfera irresponsável da prerrogativa, que eu respeito lealmente, o grande facto da mudança do ministério está debaixo da nossa censura.

A prerrogativa é livre, já o disse; mas não é muda. É verdade que ela não entende a grosseria de nossos dialectos, nem nos podemos compreender a sublimidade da sua linguagem.  Mas tem interpretes, tem línguas, que são os Srs. ministros, e a estes é que nos dirigimos. É, pois, um facto deplorável que eles tenham emudecido.

A prerrogativa da coroa é livre e independente, como a prerrogativa da  câmara; mas a independência das forças políticas não é a sua isolação: todas elas se podem entender sem se confundirem; e é isto que nós exigimos.

Quando as administrações mudam pelos votos do parlamento, sabe-se o sistema que triunfa, e a sorte publica fica logo manifesta. Então o facto da mudança ministerial explica-se a si mesmo, ou antes de sucedido o caracterizam as discussões que o produziram. Nos ministérios formados fora da influência parlamentar faltam estas condições.

Dir-se-á talvez que a vida dos homens públicos é conhecida, e que a consideração de seus princípios revela por si só o espírito governativo das administrações, a que são chamados. Isto, até certo ponto, é verdade nos países onde as cadeiras legislativas representam convicções, mas não no nosso, onde pela maior parte representam especulações, e onde, ao entrar nesta sala, muitos estadistas escolhem o assento, afim de que possam cegar mais depressa ao bem-aventurado país das pastas.

Além disto, nos ministérios formados à face do parlamento, os homens chamados ao governo vão satisfazer uma necessidade administrativa, ocupar um lugar, que os votos parlamentares tomaram vacante; não desalojam ninguém da sua posição.

Destas ponderações deduzem-se dois princípios: um de política e interesse público, outro de civilidade e decoro pessoal, que obrigam imperiosamente os Srs. ministros a darem explicações categóricas sobre as causas da  sua ascensão ao poder.

Numa palavra, as organizações ministeriais feitas anti-parlamentarmente são soprepções políticas na ordem constitucional, e só lhes podem tirar este vicio as explicações subsequentes, que legitimem aquela irregularidade.

Se S.as Ex.as se recusam a satisfazer as minhas justas exigências, a cominação que lhes faço é horrível, mas inevitável. Hei de combinar os factos como entender, e acreditar o que eles me revelarem; e S.as Ex.as ficarão gemendo debaixo das imputações que me vir obrigado a fazer-lhes. Se forem julgados à revela, não é por falta de citação.

Não é só sobre a organização do ministério que é omisso o discurso do trono; outras omissões lhe noto eu, que não posso deixar de atribuir a momentosos propósitos.

Na nação vizinha completou-se um grande facto; os ódios de uma guerra inveterada, a tenacidade de antigos preconceitos resolveram-se num abraço cordial, e dois exércitos separados pela mais rixosa campanha, dois exércitos, que tinham pleiteado entre si tiranias e assassinatos, aparecem num momento unidos num só campo e debaixo da  mesma bandeira.

O convénio de Bergara foi, senhores, um acontecimento europeu pelos seus resultados, grandioso pelos seus motivos. Foi um fenómeno político e uma conversão moral, que só a civilização moderna podia produzir. Foi mais do que um acontecimento europeu: foi uma coroa de glória para a humanidade.

O ministério, no discurso da  coroa, despe este acontecimento das suas qualificações, diminui a sua importância, restringe as suas consequências; em uma palavra, o ministério amortalha o convénio de Bergara no esquife do filho do Remechido, e faz-lhe as honras fúnebres em uma oração incidente.

Qual seria o motivo desta ridícula mistificação? Que razões levariam o nosso governo a depreciar esse grande acontecimento? Não as sei, mas aventuro sobre isso algumas conjecturas.

O convénio de Bergara foi, em grande parte, obra do ilustre caudilho da  liberdade espanhola; ele incorreu ultimamente no desagrado do ministério Peres de Castro pela publicação da célebre carta do brigadeiro Liñage, e não me admiro que o nosso governo, para fazer a corte ao gabinete de Madrid, quisesse que também no nosso discurso da coroa o general Espartero expiasse aquele grande pecado, cometido contra a ordem, que felizmente rege ambas as nações. Nem é isto muito inverosímil, se atendermos a que o ministério de 26 de Novembro também se diz ser feitura da  influência de Peres de Castro.

O Times fez a este respeito revelações importantes. O ministério espanhol apressou-se a desmenti-las; o nosso, porém, conservou a tal respeito na imprensa a mudez que ostenta no parlamento, porque a imprensa do governo é só empregada em doestos e calúnias, e não sabe satisfazer as conveniências e necessidades do sistema representativo.

Ainda mais: o ministério desnaturou o convénio de Bergara, para afirmar uma falsidade, e com ela fazer uma injuria ao nosso exército. É um facto, resultante das participações oficiais, que o estado do Algarve melhorou antes dos últimos sucessos de Espanha; é um facto que tudo ali deve ao zelo dos chefes, e à disciplina e constância dos soldados; e esta campanha, se não apresenta feitos gloriosos, é rica de trabalhos e privações.

O Sr. ministro do reino estranhou o meu zelo pelos ditos do exército, e emprazou o meu voto para apoiar as medidas que lhe fossem favoráveis.  Mas que medidas são essas? Não as vejo apontadas no discurso da  coroa, e isso que censuro. Referir-se-á S. Ex.a ao aumento de 400 contos, que para a despesa do ministério da  guerra se pedem no orçamento? Todos nós sabemos que esta soma é um acréscimo à dotação dos rebatedores, de quem nunca se esquece um governo dissipador.

Entre o ostentoso aparato de providências exigidas e anunciadas sobre todos os ramos de serviço público, como não mereceu atenção ao governo a contabilidade e a instrução desse exército, os códigos de suas leis obscuros e anti-nómicos, o regulamento de seus acessos ainda mal definido, finalmente os aperfeiçoamentos razoáveis da  instituição militar? Senhores, o ministério não deu ao exército nem uma recordação honrosa, nem um testemunho de solicitude.. que digo eu? nem uma palavra!

O Sr. ministro dos negócios estrangeiros quis coonestar esta falta, alegando que doutras repartições se não fazia menção no discurso da  coroa, mas nem esta asserção é exacta, nem, sendo-o, era concludente. Que tem de comum o exército, instituição social e política, por exemplo, com a Alfândega das Sete Casas ou como Terreiro do Trigo?

O governo inglês lançou mão de dinheiro que nos pertencia, para pagar dívidas que nós não havíamos reconhecido. Tão irregular foi este procedimento, que esse governo encontrou entre os seus a resistência da  probidade e da  justiça. As pessoas, debaixo de cuja guarda estavam essas somas, recusaram-se a entregá-las pelas ordens do seu governo, declarando que tais fundos nos pertenciam, e que só nós podíamos dispor deles.

Este atentado grosseiro e usurário do governo inglês não se acha mencionado no discurso da  coroa.

O governo inglês, com desprezo manifesto do direito das gentes, com infracção revoltante dos tratados existentes, escandalizou a Europa como famoso bill, que fez passar contra a nossa navegação em seu parlamento. O ministério comunica-nos este acontecimento num tom narrativo, como se fora a história de uma negociação feliz.

O brigue Columbine captura, saqueia e mete a pique os nossos navios nos mares de África, e o ministério empenha todas as suas faculdades retóricas para estigmatizar este acto, afirmando categoricamente que ele não pede ser filho de instruções do governo inglês.

Esta asserção é importante; o ministério repetiu-a na relação oficial, que publicou, das últimas ocorrências na costa de Angola, e o Sr. presidente do conselho de ministros expressamente declarou que o governo inglês nada tinha com aqueles procedimentos, que todos eram filhos dos excessos dos oficiais da  marinha britânica.

Se isto assim é, esses oficiais andam em perfeita pirataria, e o governo inglês nos agradecerá que com as nossas pequenas forças navais, que para tal empresa são de sobejo, castiguemos aqueles de seus súbditos, que abusam do poder que o seu país lhe conferiu, para comprometeremos interesses e a dignidade dele.

Destas observações deduzo eu: primeiro, que o ministério se fez advogado do governo inglês, e que proclamou a sua inocência em actos de que ele só é culpado; segundo, que regulou as suas queixas, não pela gravidade das ofensas, mas pela facilidade em obter desagravo delas.

Com efeito, uma interpretação favorável a alguns artigos das pautas, de que o Sr. ministro da fazenda já deu exemplo; a relaxação dos regulamentos da s alfândegas, que o mesmo Sr. ministro já prometeu; e, finalmente, os interesses dum futuro tratado comercial, valem a pena de tirar por algum tempo o comando a um capitão de marinha, indemnizando-o secretamente das perdas, que com isso houver de sofrer.

No meio deste esquecimento de nacionalidade, desta frouxidão de linguagem no desagravo do país, o discurso da  coroa, apartando-se do estilo usado em tais documentos, espraia-se num desenvolvimento de medidas reaccionárias, que sem remediaremos defeitos da  legislação pulverizam todas as instituições liberais.

Estes dois pensamentos de humilhação para como estrangeiro, e de destruição de todos os princípios populares, estão inuma e horrivelmente ligados.

Deixai o país livre no júri, livre na uma, livre nas administrações locais; deixai seus braços soltos, sua boca sem mordaça, seu peito em grilhões, e depois ide, se podeis e quereis, fazer dele oblação ao estrangeiro; ide, se podeis e vos atreveis. Não, que assim é impossível! Não, que um só golpe de seu braço vos lançaria por terra, envoltos na vergonha de vossos projectos! Para sujeitar o país ao jugo estrangeiro, é mister primeiro subjugá-lo com leis duras, e anular sua vontade nos negócios públicos. Todas estas medidas restritivas são pois uma operação preparatória para a questão estrangeira; são o assassinato do país para dispor do seu cadáver.

Quereis vós conhecer e avaliar uma prova desta verdade? A 15 de Fevereiro de 1839 escrevia Lord Howard a Lord Palmerston haver dito ao visconde de Sá da  Bandeira «que Portugal seria denunciado como protector do tráfico de escravos, e que os discursos mais injuriosos contra a nação e o governo português iriam sem resposta por todas as partes do mundo, enquanto as réplicas que nas cortes portuguesas se fizessem contra a Grã-Bretanha, não seriam ouvidas ou lidas fora de Portugal.» Abre-se a discussão da  resposta ao discurso do trono; é cegado o momento de fazer essas réplicas; é cegado o momento de desafrontar o decoro nacional, e o ministério, desejoso de que se realizasse a promessa de Lord Howard, empenhado em que as calúnias do governo inglês não fossem desmentidas, solicito por que o nosso nome se conservasse infamado por toda a parte, interessado em que a nossa voz morresse dentro destas paredes, manda apreender arbitrariamente grande número das imprensas empregadas na publicação de jornais, que advogavam a causa do país!

O ministério já aqui foi increpado por este inaudito procedimento, e ressentiu-se por o haverem comparado como atentado de Polignac. Eu também não acho exacta a comparação; porque o procedimento do ministério francês foi menos cobarde e brutal: fez um manifesto contra a imprensa: declarou-lhe a guerra, confessou o seu intento. Mas o nosso governo assassina-a traiçoeiramente e esconde a mão criminosa, pois lança toda a responsabilidade de tais actos sobre um poder estranho, que ele mesmo impeliu a estes excessos, sujeitando os juizes à tirania das transferências! Mas o nosso governo cai de assalto sobre a imprensa, corrompendo para isto um poder político e torcendo o sentido das leis! E, deste modo, liga ao horror do fim a vileza e malignidade dos meios, porque a mais maligna e vil de todas as tiranias é, segundo a frase de um escritor conceituoso, a tirania surda exercida em nome da legalidade.

Eu disse que os projectos do governo, a que se dão nome de organizadores, eram o assassinato do país, para depois se dispor do seu cadáver. Sim, do seu cadáver!... Porque a nossa nacionalidade morreu, e nós juntamos à vergonha desta situação o ridículo de a desconhecermos!

Estamos aqui reunidos, enquanto um firman do governo inglês não cassa o nosso mandato; os nossos juizes vestem suas togas, ocupam suas cadeiras, enquanto o governo inglês não restringe sua jurisdição, e não chama aos seus tribunais os súbditos portugueses; os nossos soldados levantam com ufania suas armas, a nossa bandeira tremula ainda entre nossas falanges, enquanto o governo inglês não põe aos pés duns poucos de oficiais seus os brios do nosso exército. Vós mesmos, ministros da  coroa, conservais o poder enquanto não resistirdes às exigências de quem vo-lo conferiu, e a filha de nossos reis, quando aprouver à Inglaterra, verá seu cetro despedaçado às mãos do governador da  Jamaica, sobre as prerrogativas de cuja espada nós ouviríamos então certamente as mesmas dissertações, que hoje se nos fazem sobre as prerrogativas da  coroa!

Sim, senhores, a coroa da  rainha não tem uma protecção leal da  parte do governo inglês, porque eu sei que Lord Palmerston disse mais de uma vez que muito desejava em Portugal o proscrito Miguel, e não sei mesmo se este dito do ministro inglês está exarado em algum documento oficial (Alguns membros do lado direito e o Sr. ministro do reino emprazaram a orador para declarar se esta comunicação lhe havia sido feita pelos actuais ministros, e qual era o documento a que se referia).

Sr. presidente, comunicações desta natureza nunca se recebem dos ministros da  coroa, e os receios manifestados pelo Sr. ministro do reino de que elas fossem atribuídas a algum membro da  actual administração, denunciam em S. Ex.a a convicção do pouco crédito de que o seu ministério se julga revestido. Se só os ministros da  coroa pudessem fazer revelações diplomáticas, mal iria às oposições. Não asseverei positivamente a existência de documento algum, em que o dito de Lord Palmerston esteja consignado; disse somente que não sabia se um tal documento existia, e a este respeito guardarei também a minha reserva diplomática. Continuo.

Sim, senhores, nós vivemos vida de homens livres atados ao cepo da  escravidão, e julgamo-nos nação independente, quando talvez dentro em pouco só gozemos da  regalia de pagar tributos e do prazer de os vermos repartir pelos filhos do orçamento!

Ainda a sessão de ontem nos deu sobejas provas da  perdição da  nossa nacionalidade, e algumas têm tanto de deploráveis como de burlescas.

O Sr. Gorjão perguntou ao Sr. ministro dos negócios estrangeiros se o tratado, que s. Ex.a anunciou como provável com a Inglaterra, seria feito sem mediação. Que o ilustre deputado por Santarém, cuja diplomacia não é a mais ortodoxa, fizesse uma tal pergunta com a aparência de grande importância, não admira; mas que o Sr. ministro dos negócios estrangeiros, encanecido no serviço diplomático, respondesse com grande satisfação, e como quem se inculcava salvador do país, que tal tratado se faria sem mediação, e que um jornal semi-oficial escrevesse hoje que esta só declaração acabava a questão estrangeira, isto é de tal modo miserável que provocaria riso, se nos não devesse envergonhar. As mediações de nação para nação são uma praxe, um estilo diplomático que nada significa. Agora e sempre, nações pequenas e grandes recorreram às mediações, sem julgarem que daí lhes proviesse algum desaire.  Em quase todos os tratados que temos feito tem sido mediadora a Inglaterra, em alguns a Espanha, e mesmo a França; ainda há pouco esta mesma nação aceitou a mediação do comodoro americano na questão com Buenos-Aires; e os assuntos políticos do Oriente estão entregues agora à mediação das três grandes potências; cm uma palavra, apenas há alguma negociação diplomática em que se não tenha empregado este meio.

Que se pode pois dizer da  nacionalidade de um país, cujo ministro dos negócios estrangeiros a julga salva porque trata, sem recorrer a mediações? E já que S. Ex.a se inculcou cavaleiro da  nossa nacionalidade, emprazo-o para que me responda se tenciona fazer algum tratado com a Inglaterra, antes que seja revogado o bill. Esta cláusula é um pouco mais importante do que a mediação, e é de crer que S. Ex.a a não esqueça.

O mesmo Sr. ministro asseverou que o estado de relações com a Inglaterra era pior do que o estado de guerra, e depois fechou um período dizendo que as guerras se acabavam às vezes por tratados desonrosos. Ora se as guerras, digo eu, acabam às vezes por tratados desonrosos, por que tratados acabará um estado pior do que a guerra? Eu creio que estas observações de S. Ex.a foram uma insinuação delicada do desfecho, que devemos esperar, das suas negociações pendentes com a Grã-Bretanha. Esta insinuação foi talvez imprudente, mas é também uma prova da  pouca vida que tem a nossa nacionalidade.

As exigências do governo inglês, que retardaram a conclusão do tratado para a abolição do tráfico da escravatura, são sabidas, certas e determinadas. Ninguém se atreve a negar que elas sejam extraordinárias e infundadas; a minoria da  comissão redigiu, pois, o seu artigo fazendo a elas uma referência directa; a maioria substituiu a esta redacção a palavra algumas, e da força desta expressão deduz-se ou que há exigências do governo inglês, que não são extraordinárias e infundadas, e nós queremos saber quais são, para as confessar por tais, ou que algumas exigências, posto que infundadas e extraordinárias, não retardaram a conclusão do tratado, e então o ministério transacto acedeu a elas; e neste caso ainda precisamos de saber quais foram, para podermos julgar a administração de 18 de Abril.

Uma explicação a tal respeito é já indispensável, depois que os Srs. ministros dos negócios do reino e dos estrangeiros puseram em dúvida a necessidade da  aprovação do corpo legislativo para o tratado da  abolição do tráfico da  escravatura, porque era este um dos pontos questionados com a administração transacta, e a escusa de tal aprovação uma condição proposta pelo governo inglês.

Nós reputamos todas as exigências do governo inglês extraordinárias e infundadas, não só consideradas em si, mas em relação umas as outras. O governo inglês exigia que nós declarássemos pirataria o tráfico da  escravatura. Mas a pirataria pelas nossas leis tem a pena de morte e assim o governo inglês consentia que nos aplicássemos a este crime as penas mais brandas, que agora na legislação inglesa lhe são aplicadas. Ora esta reforma nas nossas leis não se podia fazer sem intervenção do corpo legislativo: e o governo inglês exigia que o tratado fosse ratificado em quatro semanas. Em tão curto intervalo nem as cortes se podiam reunir. Logo o que o governo inglês queria conseguir pelo complexo destas exigências era, pelo menos temporariamente, a faculdade de enforcar portugueses.

O governo inglês queria que nós fizéssemos um tratado perpetuo para a abolição do tráfico da  escravatura, e recusava-se a nomear, no preâmbulo desse tratado, todos os nossos estados. Instado para nos garantir as nossas províncias ultramarinas, cuja tranquilidade e fidelidade à metrópole podiam ser prejudicadas pela abolição repentina do tráfico, não quis conceder esta garantia por mais dois anos. Logo o que o governo inglês queria, pelo complexo destas estipulações, era apoderar-se das nossas possessões ultramarinas, porque a garantia que ele estipulava acabava no prazo em que ela era mais necessária.

A insólita reserva do ministério, e muito mais da  maioria da comissão em pronunciar seu juízo sobre estas exigências, é uma prova da  pouca vicia que tem a nossa nacionalidade.

Mas, senhores, esta ficção de nacionalidade será um estado transitório, filho das nossas actuais desavenças com a Inglaterra, ou efeito de uma situação antiga para com aquele governo, um sintoma do corrosivo, que há muito tempo rói as entranhas do país? Ah! senhores, a nossa ignominia, a nossa miséria, o nosso abatimento datam das nossas ligações com a Inglaterra! É um fado de baixeza, com que os governos daquela nação têm premiado nossa fidelidade e nossos sacrifícios pela sua honra e pelos seus interesses!

A questão, assim encarada, demanda mais longos desenvolvimentos; mas e assim que ela deve ser estabelecida e tratada. Eu vou ver se preencho esta indicação: em tempos, em que a irreligião da nacionalidade tem de apodrecer muitos corações, façamos ao menos este exercício penitenciário, recordando-nos das injúrias, dos vexames, que devemos aos nossos amigos. E com isto também responderei a um discurso grego e romano, poético e prosaico, terrestre e marítimo, um discurso altamente administrativo e profundamente diplomático, cujo mérito consistiu na repetição de uma trivialidade tratando a Inglaterra de nossa antiga e fiel aliada, mérito que de nenhum modo compensou o cansaço do orador e o enjoo da assembleia.

Eu deixo os tempos, em que as nossas relações com a Inglaterra não tiveram um carácter de regularidade e permanência, que pudessem formar um sistema diplomático digno de análise, e próprio para fundamentar um juízo. Começarei pois as minhas observações desde o reinado de D. Fernando I.

Este rei fraco e versátil tinha uma filha formosa…

O SR. GARRET:   Não era formosa.

O ORADOR: - Não seria: julguei que fosse contra as prerrogativas da coroa chamar feias às princesas... Tinha uma filha, como dizia, o nosso fraco e versátil rei Fernando I, e prometia a mão dela a todos os príncipes, e per isso com todos eles fazia e desfazia alianças. Afinal ajustou-se o casamento com el-rei de Castela, e as estipulações desta aliança eram-nos vantajosas, podendo, em virtude dela, reunir-se na dinastia portuguesa a coroa de Castela. Nesta negociação não teve parte a rainha D. Leonor, que meditou logo contrariá-la. Na casa de Lencastre suscitaram-se pretensões à coroa de Castela, e a mão da princesa Beatriz foi logo prometida ao duque inglês, e com ela a ajuda de nossos braços para conquistar o trono de Castela. Estes recíprocos empenhos estipularam-se no tratado de 1372, e o devasso João Fernandes Andeiro foi o seu negociador.HotwordStyle=BookDefault;

         Notai, senhores, que ligado ao primeiro tratado com a Inglaterra, aparece o nome mais antipático ao país: e os princípios desta aliança como que foram logo sentenciados pelo rancor do povo, nos tratos que ele deu depois ao diplomata que a encetou.

Em virtude do tratado de 1372 começou a guerra. Os ingleses desgostaram-se em breve das fadigas da campanha; depois de vários desastres ajustou-se a paz, e para fazer cumprir os seus artigos tão pouco ajudado foi o rei Fernando pelos seus aliados, que teve de cometer a sua espada a execução do tratado. El-rei de Castela afinal houve-se com lealdade por medo dum desafio.

As forças inglesas tantos flagícios fizeram em nossos campos, tantos distúrbios em nossas cidades, que a animadversão pública se levantou contra elas, e para nos livrarmos de tão impertinentes hospedes se estipulou, no tratado de paz como rei de Castela, o transporte deles para a sua filha.

Há pois quase cinco séculos que os ingleses negoceiam com as mãos das nossas princesas, que vem ao nosso território combater pelos seus interesses, que arrastam nossos soldados a pelejar pelo seu engrandecimento, e que vexam nossas povoações com suas violências; há quase cinco séculos, finalmente, que nos excitam a guerra, e que nos desamparam na paz.

A nossa bandeira tremulou nos mares de África; ali a espada de nossos capitães avassalou-nos régulos, conquistou-nos terras, e assim ficamos senhores dum novo e rico manancial de comércio. os ingleses, como nossos fiéis aliados e sinceros amigos, não nos quiseram deixar desfrutar sós o resultado de nosso esforço e espírito aventureiro; seus navios começaram a frequentar os portos de África, e a partilhar do comércio daquelas possessões. Isto foi considerado como uma verdadeira intrusão, e deu origem as mais serias desavenças e justas queixas da parte dos portugueses. Para obviar a estes inconvenientes, a rainha Isabel negociou connosco o tratado de comércio de 1571, onde se acham estas palavras: Ut perfecta sit amicitia, et liberum utrimque commercium.

Esta mesma rainha Isabel, a quem nunca faltou ferro para se vingar das suas rivais e dos inimigos da sua coroa, com manifesta violação do tratado, que mencionei, com quebra de todos os princípios do direito das gentes, só porque seus súbditos se lhe queixavam de que sofriam violências e pilhagens no comércio da costa de África, feitas pelos portugueses, mandou formar uma comissão para julgar estas reclamações, ordenando que fosse paga a sua importância pelas propriedades, que nossos negociantes possuíssem na Grã-Bretanha.

Há quase três séculos, senhores, que os ingleses, debaixo do titulo de nossos amigos, procuram arruinar nossos interesses; há quase três séculos, que nos pregam a doutrina da liberdade de comércio, que nunca seguiram; há quase três séculos, que mandam julgar pelos seus tribunais as reclamações que seus concidadãos fazem contra nós, e que se assenhoreiam das nossas propriedades para satisfazerem essas exigências!

Notai, senhores, a homogeneidade do procedimento do governo da rainha Isabel e do da rainha Vitória; e pasmai desta analogia histórica! Em 1573 a rainha Isabel manda dispor da propriedade portuguesa para pagar as reclamações dos negociantes ingleses da costa de África; em 1039 a rainha Vitória manda dispor dos nossos fundos para pagar as reclamações de Sir John Myl Doyle.

Tais eram as nossas relações comerciais com a Grã-Bretanha, quando o moço D. Sebastião, vítima duma intriga diplomática e dos erros de sua educação, foi deixar em África, com a flor de nossos guerreiros e com as esperanças de sucessão, os penhores da nossa independência. A nossa nacionalidade, ferida mortalmente na batalha de Alcácerquivir expirou nas mãos dum eclesiástico, cujo animo, índole e hábitos eram muito inferiores a grande missão de segurar coroa vacilante.

Portugal foi no fim unido a Espanha, e esta uma o foi a morte do comércio e da influência inglesa no nosso país. Saída dos nossos portos, a armada invencível assoberbou as costas da Grã-Bretanha, e o princípio taxativo, sempre predominante em Espanha, vexou o seu comércio, que até ali gozava as franquias que nossos tratados lhe concediam.

Quando o trono popular de João IV se levantou de entre os piques e machados dos anarquistas do largo da Sé, desses anarquistas que têm sagrado mais tronos do que o direito divino, Portugal, saído do domínio estrangeiro, apareceu fraco, abatido, roubado, e desprovido diante duma Europa nova, da Europa que se tinha engrandecido durante o longo sono de nossa servidão.

Na Inglaterra fervia a luta dos princípios políticos e religiosos, e todos os elementos sociais se dispunham a tomar uma nova organização. Estas lutas as vezes gastam a vida dos povos e extinguem o seu poder, outras vezes remoçam-nos, validam-nos, e depois de longas enfermidades dão-lhe, como por encanto, a saúde e a força da juventude. As revoluções de Inglaterra tiveram esta sorte; custaram sangue e mortes, mas criaram uma nação, de cujo exorbitante poder nós somos agora a mais nobre e deplorável vítima. A Holanda tinha criado a sombra da sua constituição um grande poder marítimo; seu pavilhão dominava todos os mares, e tremulava afincado em todas as partes do mundo conhecido. A Haya era a sede da diplomacia, e a árbitra dos destinos europeus. Em França já começavam a raiar as luzes que enobreceram o reinado de Luís XIV, e principiava a criar-se esta força de concepção governativa, que depois desfechou nos mais gigante cos projectos. Finalmente toda a Europa entrava numa nova era de força e vigor: e nós, diante deste século novo, apresentamo-nos pequenos, mas atrevidos, mostrando nos fragmentos duma coroa estrangeira a alforria da nossa nacionalidade.

O cometimento da revolução de 1640 foi sem duvida audaz; mas não podia a sua obra consolidar-se só pela força de nossos braços, e o trono de João IV pediu a Europa a sanção de seus direitos. Aqui nasceu uma sede de negociações e tratados com os ingleses, que, se nos asseguraram até hoje a dinastia da casa de Bragança, arruinaram, é força confessá-lo, a nossa prosperidade.

Ainda no reinado de Carlos I estipulámos o tratado de 1642, e, a troco do reconhecimento da nova dinastia, concedemos a Inglaterra entre outras vantagens a franquia de nossos portos da Europa, a extinção de todos os monopólios de comércio, a liberdade de seu culto, a segurança de suas propriedades e a restrição dos confiscos da inquisição sobre os bens portugueses hipotecados a credores ingleses. E notai, senhores, que no artigo 4.º deste tratado se repõem no pé em que se achavam antes da união com a Espanha as nossas relações comerciais com a Inglaterra; estipulação esta altamente significativa, e que reúne em si os dados para a resolução de grandes problemas políticos.

Há, pois, quase dois séculos, senhores, que os ingleses alcançam de nós concessões repugnantes a natureza do nosso governo; há quase dois séculos, que os ingleses revogam nossas leis e nossos usos em proveito seu: há quase dois séculos, que os ingleses procuram a entrada de nossos portos como objecto 4e grande interesse; há quase dois séculos, que eles diligenciam a extinção de todos os privilégios protectores de nossas indústrias!

Por estes tempos D. Francisco de Sousa Coutinho, este Atílio Régulo da diplomacia portuguesa, arredava por um engano político da cidade de Pernambuco uma armada holandesa, e escrevia a el-rei seu amo: «Senhor, salvei-vos Pernambuco, prometendo que vós o entregareis ao inimigo; aproveitai-vos deste engano para o abastecer de armas e homens, e eu ponho nas vossas mãos a minha cabeça, por empenhar em vão a vossa palavra». Esta devoção do diplomata português desagradou ao governo da Haia, e as instancias repetiram-se para que ele fosse retirado. Enfim, estas instâncias foram atendidas, e António de Sousa Macedo foi substitui-lo. Este homem também era português; os interesses do nosso país eram os mesmos; ele adoptou portanto a política do seu antecessor, e o governo holandês não tardou a queixar-se de que lhe tinham mudado a pessoa, mas não o ministro.

Ah! senhores, se esta política de iludir as instâncias do estrangeiro, de galardoar com provas de confiança os ministros beneméritos; se esta política de satisfazer as exigências da diplomacia, mudando-lhes as pessoas, mas nunca os ministros; se esta política enérgica e prudente, autorizada como exemplo do augusto chefe da casa de Bragança, acreditada com a salvação da sua coroa, nunca desamparasse os conselhos do mais nobre, mais virtuoso, e mais augusto ramo desta dinastia nacional!... Notai, senhores, esta confrontação histórica, e moralizai-a como ela merece...

Quando a cabeça do infeliz Carlos I se inclinava já para o cepo ensanguentado das revoluções da Inglaterra, a marinha britânica, lutando entre a lealdade monárquica e o princípio revolucionário, desmembrou-se, seguindo diversos partidos e tomando por isso diferentes destinos. A parte fiel a realeza, saindo dos portos de Holanda para fugir as perseguições do protector Cromwell, entrou acossada do tempo pela foz do nosso Tejo, e pediu a protecção das nossas leis e da nossa hospitalidade. Uma esquadra da republica bloqueou Lisboa, e pediu a entrega dos rebeldes. Que respondemos nós a esta feroz exigência? «Não queremos, porque o infortúnio achou sempre amparo na nossa terra; porque nós não atraiçoamos quem se confia aos nossos lares!» O almirante inglês não ousou penetrar para a quem das nossas fortalezas, e vingou-se da nossa firmeza fazendo uma rica presa em nossos navios. Deste modo os ingleses acrescentaram suas riquezas, contentaram sua ambição; nós demos um exemplo de virtude, e acrescentamos mais uma página brilhante a nossa história.

Este procedimento do protector foi uma ofensa flagrante dos princípios da neutralidade, e uma infracção manifesta do art. 19.º do tratado de 1642, que determinava que «e alguma coisa se empreendesse, perpetrasse ou fizesse por alguma das partes contratantes, contrário a força e efeito do tratado, isto não dana direito ao rompimento das hostilidades, mas simplesmente a uma justa satisfação dada pela parte infractora.» E deve notar-se que além disto os ingleses, a despeito do referido tratado, forneceram sempre armas aos nossos inimigos castelhanos.

Estes acontecimentos, o poder do protectorado e a debilidade da nossa monarquia nascente, tomaram necessária a renovação de estipulações de aliança e de comércio com o novo governo de Inglaterra, e negociou-se o tratado de 1654, que em cada um dos artigos atesta a prepotência de nossos aliados e a miséria da nossa fraqueza. Neste tratado renova-se e revalida-se tudo o que se havia contratado no anterior, e de mais estabelecem-se as conservatórias, concede-se aos ingleses a franquia do comércio das colónias, e entregam-se as desavenças ocorridas entre negociantes ingleses e oficiais da alfândega a decisão de árbitros ingleses, colhidos pelo governo ou cônsul inglês; e finalmente obriga-se Portugal a pagar todas as dividas contraídas entre o nosso governo e súbditos ingleses, e por um princípio de bela reciprocidade sujeita-se a restituição toda a propriedade britânica, que se havia apreendido em represálias da pirataria do almirante Blake.

Há quase dois séculos, senhores, que os ingleses tomam arbitrariamente os nossos navios; há quase dois séculos, que os ingleses castigam como roubo a nossa virtude; há quase dois séculos, que os ingleses infringem descaradamente os tratados para nos vexarem; há quase dois séculos, que os ingleses, depois de nos injuriarem, nos obrigam a estipulações desonrosas; há quase dois séculos, que os ingleses sujeitam nossos concidadãos ao árbitro de seus juizes; há quase dois séculos, que se declaram legítimos senhores daquilo que contra direito houveram de nos, e nos pedem o pagamento do que devemos!

E quando nós assim favorecíamos o comércio inglês com concessões tão vantajosas, Cromwell prejudicava altamente os interesses da nossa marinha mercante, promulgando o celebre «acto de navegação», base fundamental do poder marítimo da Inglaterra: esse acto de navegação, de que o sistema continental de Napoleão é apenas uma paródia; esse acto de navegação, que o protector decretou principalmente para castigar a Holanda da resistência que opunha a revolução popular da Inglaterra; esse acto de navegação, que nós deveríamos copiar agora, para nos desforrarmos das resistências, que a Inglaterra tem oposto a revolução popular de Portugal!

Pela morte de D. João IV as pretensões da Espanha tomaram novo vigor. O gabinete de Madrid julgou que os brios da nossa nacionalidade iam ao túmulo com o cadáver do nosso rei. A França era inimiga da nossa revolução; a influência do cardeal Mazarino entretinha esta hostilidade, e a corte de Paris era inspirada tal política por algumas vistas interesseiras e por intrigas mulheris. Afinal na paz dos Pirenéus, a França por seus enviados propôs abertamente a conveniência duma restauração em Portugal deixando apenas a casa de Bragança um vice-reinado interino. O nosso plenipotenciário respondeu a tão humilhante proposta com lealdade e energia, e lá soou nas terras de França esse primeiro não histórico, que tantos anos depois foi repetido por outro português nas mesmas terras diante do maior capitão do século! Ah! senhores, quando aprenderemos nós também a dizer não ao governo inglês?… Dentro em pouco a morte do cardeal ministro e outras ocorrências abrandaram o governo francês sobre as coisas de Portugal, e a nova dinastia de Bragança contou de menos um adversário. Então a política instintiva de dominar Portugal e enfraquecer a Espanha, que a Inglaterra tem sempre seguido. aproveitou-se deste ensejo para segurar com menos embaraço os seus interesses, segurando a revolução de 1640, que lhe tinha aberto novamente a influência na Península. Para isto estipulou-se o tratado de 1661.

E que concedemos nos a Inglaterra por este tratado? A mão da princesa Catarina para o seu rei, princesa que não só se era formosa, mas que podia ser esposa de Luís XIV: a posse de Tanger, troféu glorioso de nossas campanhas africanas: a cessão de Bombaim, hoje importante capital de todos os domínios ingleses na Índia: finalmente; boas somas de dinheiro, e o direito a todas as conquistas, que das nossas terras fizessem aos holandeses.  E a que se obrigaram os ingleses no mesmo tratado? Obrigaram-se a defender-nos como a si próprios; a segurar-nos as nossas colónias; a restituir-nos todas as possessões que a Holanda nos tomasse depois daquele tratado; e finalmente a restituir-nos a parte das rendas e território de Columbo, quando esta ilha por qualquer modo lhes viesse a mão. E como cumpríramos ingleses estas estipulações? Escuso recordá-lo, porque os factos aí estão bradando contra a sua deslealdade e má fé!

Já que toquei na questão de Columbo, eu rogo aos ministros que se expliquem categoricamente sobre o direito com que nos julgam a esta reclamação. Tem-se escrito tanto sobre este objecto; tem-se interpretado de tal modo os tratados; o Corrojo, conhecido jornal da diplomacia inglesa, e órgão semi-oficial do governo, tem apresentado tão risíveis dissertações sobre este assunto, que eu julgo necessário invocar a autoridade dos Srs. ministros para fixar este ponto controverso.

O tratado de 1661 acha-se julgado pelos ingleses em importantes documentos. No discurso que Carlos II pronunciou na primeira apertura do parlamento, depois de concluído esse tratado, dando parte do ajustado casamento com a princesa de Portugal, o rei diz «que o seu conselho privado julgava aquela aliança preferível a todas quantas lhe cometeram, e que esperava que as câmaras seguissem a mesma opinião.» Depois disto o chanceler fez um longo discurso, para provar as vantagens da aliança com Portugal, e analisou, ridicularizando-os, todos os partidos que a diplomacia tinha oferecido ao seu rei.

O tratado de 1661, posto que desagradasse a Espanha, não a fez desistir de seus planos: a guerra continuou por algum tempo, e com sucessos. Os auxiliares ingleses combateram a nosso lado, acompanharam-nos, e, se a bravura dos soldados não prejudicou nossas operações, a rivalidade dos seus chefes não lhes suscitou poucos embaraços. A despeito deles, a vitória favoreceu-nos no Amexial: as armas de D. João da Áustria caíram aos pés dos nossos soldados, e grande foi a colheita de pendões castelhanos. Aqui, Senhores, se levantou uma espada portuguesa; aqui e enobreceu e fez célebre. A munificência do rei enfiou então nesta espada uma coroa de conde; nesta coroa, que atravessou dois séculos sempre fiel, rebenta agora um florão ducal, e sobre este florão esta um açor aberto com pólvora e sangue. Esta espada sagrada para a independência e glória do país, e todas as espadas tão nobres como esta, e todas menos engrandecidas, mas tão patrióticas, e as alabardas dos nossos sargentos, e as baionetas dos nossos soldados, e os chuços dos nossos paisanos - todas são do país, todas lhe pertencem! O pó dos partidos não as pode enxovalhar, nem elas podem dormir aos pés dum governo, que só vela para comprometer a dignidade nacional! Sim, senhores, todo o nosso exército, tão pequeno como bravo, tão pobre como patriota, cerra os ouvidos à voz das facções, para escutar as queixas da nação agravada. E nesse exército há uma mocidade desinteressada e cavalheiresca, em cujos corações as rixas políticas não têm amortecido a luz da virtude, mocidade a que eu me desvaneço de pertencer, e que como eu saiu das escolas com as mãos ainda doridas das palmatoadas, para ir tomar as armas a favor da liberdade; mocidade, que comigo despreza as rabuges da velhice e o despeito da obscuridade; mocidade, que só tem por timbre a honra do país, e por glória e fortuna - morrer para a conservar!...

Em Montesclaros, Aljubarrota da família Bragantina, outra espada portuguesa abateu o orgulho de Castela, e o trono de João IV ficou cimentado em cadáveres portugueses.

Os ingleses não se deram em como cheiro da pólvora destas duas grandes batalhas, e, apenas começada a guerra, trataram logo de nos conduzir A paz. Queriam-se desembaraçados para desfrutarem no Oriente o tratado de 1661. empregando todas as suas forças para conquistarem aos holandeses as terras, de que lhes havíamos cedido nossos direitos. Além disto, contavam shilling por shilling todas as despesas que faziam na guerra com Castela, e sobre tudo queriam estorvar a aliança da França, que já se inclinava para nós, e que começava a ser infesta às pretensões espanholas. A grande rivalidade com a França, que depois desfechou com a guerra da sucessão, e o crescente poder de Luís XIV já inquietavam a nossa aliada. Por todas estas considerações, e por meio dos mais astuciosos manejos, a Inglaterra levou-nos à paz com a Espanha pelo tratado de 1668, tratado inspirado ao gabinete de Londres por economia, por política e por princípios de engrandecimento. Uma das condições da paz foi a cessão de Ceuta, primícia de nossa glória Africana; e os ingleses, que e tinham obrigado a defender-nos como a si próprios pelo tratado de 1661, e a garantir a integridade do nosso território, foram os mesmos que nos obrigaram a uma paz feita A custa da desmembração dos domínios da coroa portuguesa! E eis aqui como os ingleses entendem e cumprem os tratados!

Não foi adoptada sem oposição esta paz desonrosa, e o partido do povo que então era poderoso, porque o trono era feitura dele, como agora é também poderoso, porque tem imposto ao trono por três vezes o selo das suas armas, foi arrastado pelas intrigas e pelas corrupções inglesas a adoptar a opinião pacificadora. Então Roberto Southwell, negociador inglês, comprou o Juiz do Povo; hoje que o povo tem aqui muitos juizes, e que não são venais, Lord Howard manda-os matar, - e o punhal é o censo! Notai, senhores, ainda mais esta analogia histórica.

Assim, senhores, dentro do espaço de 28 anos negociamos com todos os partidos de Inglaterra; com a monarquia de Carlos I; com a república; como trono restaurado. E encontramos sempre o mesmo empenho em defraudar nossos interesses, em nos arrastar a estipulações ruinosas; encontramos sempre, em vez de aliança, opressão.

A necessidade de distrair os espíritos assaz aplicados aos assuntos políticos, e o desejo de abater o poder crescente da França, levou as armas britânicas a guerrear a sucessão do neto de Luís XIV ao trono de Espanha. Nos também, com promessas de acrescentamento de território e da aliança matrimonial da princesa Teresa como pretendente da casa de Áustria, fomos envolvidos por instigações da nossa aliada nesta guerra desastrosa, e assignamos para isto, com os mais coalizados, o tratado de 1703.  Vários foram os sucessos desta demorada luta: durante ela algumas das nossas províncias foram assoladas, e muitas praças de guerra destruídas. Entretanto o nosso exército, num audaciosíssimo cometimento, penetrou até Madrid. Quando principiamos a guerra já a princesa noiva tinha morrido, e per isso uma das condições do tratado era já impossível; a paz fez-se, e nos ficamos possuindo as mesmas léguas de terreno, de que até ali éramos senhores.

No mesmo ano em que assinámos o tratado de aliança de 1703, negociámos outro de comércio, que se conhece vulgarmente pela denominação de tratado de Methwen; esse tratado, que arruinou a nossa indústria; esse tratado, que destruiu a pauta proibitiva do conde da Ericeira; esse tratado, fruto da venalidade de nossos ministros, que tem servido de molde a todas as estipulações comerciais, que posteriormente fizemos com a Inglaterra, e que ainda hoje é objecto da sua saudade!

Com as vantagens e riquezas que este tratado dava a Inglaterra, meditou ela fazer face às despesas a que pela guerra da sucessão ia sujeitar-se, e assim negociou primeiro a ajuda de nossos soldados, e depois o auxílio de nossos teres. Esta é a política de Inglaterra connosco; tratado de aliança para a ajudarmos a fazer a guerra, tratado de comércio para contribuirmos para as despesas dela! Também em 1810, como em 1703, houve dois tratados, um de aliança e outro de comércio.

O tratado de Methwen, em virtude do qual admitimos as fazendas inglesas de Ia, que até ali eram proibidas, a troco dum favor de direitos diferenciais nos nossos vinhos em relação aos franceses, foi julgado e caracterizado pelos efeitos comerciais, que dele resultaram, pela opinião dos negociantes ingleses, pela discussão da sua imprensa e por ocorrências parlamentares da maior importância.

O comércio de Inglaterra com Portugal, depois deste tratado, subiu de 300.000 libras a um milhão sterlino. O número de navios ingleses entrados nos nossos portos quadruplicou; e um meeting de negociantes de Exeter, reunido para julgar da conveniência das relações comerciais com Portugal, adoptou a seguinte resolução: «Que conservar intactas essas relações era ter segura a prosperidade da Inglaterra, e que a infracção do tratado de Methwen seria a sua ruína, porque (diziam os negociantes ingleses) com grande custo e acha entre nós moeda, que não seja feita com ouro português.» Também a imprensa da oposição, que a pena de Charles King ilustrava, demonstrou minuciosamente as vantagens do tratado de Methwen, e os esforços do Mercator foram de todo confundidos por aquele hábil escritor. Finalmente, depois da paz de Utrecht, quando, em consequência das projectadas estipulações comerciais com a França, que davam em resultado a destruição do tratado de Methwen, e apresentou no parlamento de Inglaterra um bill para a diminuição dos direitos dos vinhos franceses, foi tal o número de petições e folhetos, foi tão grande a instância dos oradores da oposição, tão explicitas as demonstrações das classes fabril e comercial, e tão terminantes as conclusões dos inquéritos a favor da aliança comercial com Portugal, que o bill foi rejeitado, apesar da pertinácia do ministério, que estava cercado do prestígio da paz que com a França fizera, e rejeitado por um parlamento onde a corte exercia a mais poderosa influência. Tão populares eram em Inglaterra as relações com Portugal!

A condição dos direitos diferenciais para os vinhos portugueses era uma estipulação indefinitiva, de que a Inglaterra podia abusar, carregando tanto os vinhos franceses, que os nossos, apesar de favorecidos, não pudessem ter um amplo consumo, e ainda assim desta pequena vantagem nos privou o seu governo em 1832.

Quando em 1761 e fez contra a Inglaterra a coalizão, conhecia pelo Pacto de Família, fomos instados pela França para nos unirmos a ela. A resposta que demos a essa arrogante missão é histórica; recordá-la só, é cobrir de vergonha a Inglaterra. Guarnecemos praças, levantamos exércitos, e combatemos pela causa da Grã-Bretanha. E que proveito tiramos de todas estas fadigas? A perda da colónia do Sacramento.

Quando a espada de Napoleão se levantou no meio da Europa revolucionada, nós fomos levados a guerra pela nossa aliada. A França contentava-se com a nossa neutralidade. Pelo tratado de Badajoz nós éramos obrigados a fechar os portos a Inglaterra, e ceder Olivença à Espanha.o imperador, nestas e noutras estipulações, só queria ganhar vantagem sobre os aliados de Inglaterra para negociar uma paz favorável aos aliados da França. Com efeito, na paz de Amiens, depois de prolongadas discussões entre as duas partes contratantes, depois de aceitadas e rejeitadas diversas bases da negociação, os ingleses, para ficarem com a ilha da Trindade, deixaram-nos sem Olivença.

Em 1807 a nossa nacionalidade foi garrotada em Fontainebleau. A nossa lealdade para com a Inglaterra levou-nos a este desonroso sacrifício: o imperador só nos feriu para cegar a sua rival. A bandeira tricolor tinha já passado nossas fronteiras; a águia francesa quase já assomava como um agouro de morte sobre as torres de Lisboa, e o pavilhão inglês, arvorado no Tejo em 30 de outubro, levou para as terras do Brazil esse rei benéfico, cuja coroa neste momento representava, não tanto a nossa nacionalidade, como os interesses da Grã-Bretanha. No bojo da nau, que conduzia a família de reis, iam já as estipulações e decretos fatais, que deviam dar o último golpe no nosso comércio e indústria; já ia o tratado de 1810, esse tratado ignominioso, arrancado no meio da angústia a um governo tímido, como e arranca a bolsa a um viajante para resgate da vida.

Os ingleses queriam então Portugal sem governo, sem corte: o nosso território era o seu arraial, o seu desembarcadouro, o seu depósito de viveres e recrutas, a sua base de operações. Precisavam dominá-lo absolutamente para o poderem aproveitar para tais usos. o Brasil era uma mina, que até ali não tinham podido explorar a sua vontade: seu comércio não lhe tinha sido até então completamente franqueado, e as eventualidades da luta pendente obrigavam o governo inglês a considerar o Novo Mundo como um refúgio em suas últimas calamidades. os tratados de 1810 são a expressão destes pensamentos.

Depois destes sucessos, sabido é como nos lançamos na grande luta, que para a Inglaterra era de vida ou de morte, na luta em que ela, ou teria de sucumbir, ou de que colheria, como colheu, todos os frutos. Sabido é como a flor da nossa juventude, o ouro de nossos cofres, a paz de nossos campos, a gala de nossas cidades, o sangue de nossos soldados, a devoção de nossos povos, e empenharam pela destruição do poder colossal do império. Sabido é como a Inglaterra considerou pouco estes esforços, depreciou o valor destes sacrifícios, e calou a gentileza de nossas armas!

E, depois disto, a Inglaterra apregoa-se como salvadora da nossa nacionalidade  ela que só combateu e nos fez combater pela sua independência!! Ah! senhores, quanto melhor nos não fora, jugo por jugo, tirania por tirania, a dessa espada criadora de Napeleão, dessa espada portentosa, debaixo de cujos golpes a Itália saiu do seu longo entorpecimento, viu desenvolver em seu seio o génio das artes, e fez pasmar depois seus legítimos soberanos das maravilhas, que só a ausência de seus estúpidos governos tinha ali produzido; dessa espada portentosa, que aperfeiçoou as oficinas da Bélgica, que a fez rival da indústria francesa, e que lançou aí os germens desta nova nacionalidade, que a revolução de Julho desenvolveu e sancionou! Sim, senhores, quanto melhor nos fora a espada organizadora do imperador do que o bastão desses procônsules orgulhosos, que insultaram nossos brios militares, que acenderam as fogueiras da inveja para nelas queimaremos nossos capitães. e que, mais ferozes que os inimigos, reduziram a cinzas todas as nossas fábricas?!

Depois da prolongada luta que deu à Inglaterra o império dos mares, que a fez senhora de tantas possessões e que estendeu tanto seu comércio e poder, nós, seus constantes auxiliares, seus companheiros em todos os perigos, e não poucas vezes os salvadores da honra de suas armas, que proveito tirámos, que parte nos coube no rico despojo desta batalha europeia?!

Perdemos a Guiana, de que a Inglaterra dispôs, sem sequer nos ouvir. Tivemos uma soma de indemnizações inferior à que alcançou a mais insignificante potência. E nem e nos perdoaram as dividas da guerra, que foram saldadas aos aliados do norte!

A memória destas injúrias não e apagou entre os portugueses; recolheram-na em seus peitos, excitando com ela seus brios e esforço, até que em 1820 rompeu o grito revolucionário. Foi um brado de indignação contra os ingleses; foi o estalar dos grilhões, que a nossa aliada nos lançara, e que nós despedáçamos.

Quando em 1823 as armas francesas, ao mando da Santa Aliança, vieram submeter a Espanha ao pesado cetro do ingrato rei Fernando, a Inglaterra viu com ciúme esta invasão. o ministro inglês esgotou todos os recursos da diplomacia, todas as insinuações da amizade, todo o vigor da lógica para dissuadir a França daquele projecto: até a mediação ofereceu, e a mediação foi rejeitada. Harcourt, separado dos embaixadores de todas as potências, fez a corte ao governo constitucional até aos últimos dias da sua existência e vós sabeis, senhores, que cada passo dum embaixador vale o pensamento dum governo. A fortuna coroou os esforços liberticidas do gabinete francês, e a invasão da Espanha ficou como um espinho no coração e memória da Inglaterra. Em Portugal, a causa da liberdade teve a mesma sorte que a constituição de Cadiz; a França lucrou com isso alguma influência nos conselhos do nosso rei. A Inglaterra meditou pois, desde então, uma desforra pelos acontecimentos de Espanha, e um. meio de segurar a sua influência em Portugal. Eis aqui a origem da Carta: ela representa só um interesse dinástico, e a influência inglesa nas suas pretensões de desagravo e predomínio: o que nela havia de real era a sinceridade do imperador que a doou. E este imperador morreu - disse há pouco com voz sentida o Sr. ministro do reino. Sim, morreu: e seus apregoados amigos honram a sua memória preparando sobre a sua campa as horrendas bacanais do absolutismo! Lágrimas nossas (voltando-se para o lado esquerdo) de saudade e respeito ao nosso libertador; lágrimas, que sejam protestos de defendermos a sua obra se alguém duvida que este é o verdadeiro espírito dos acontecimentos de 1823 e 1826; se alguém julga cerebrina a explicação que deles dei, ouça-se a tribuna da França e da Inglaterra, que o seu testemunho é irrefragável em tal assunto.

Em 1826, o talentoso Canning dirigia a pasta dos negócios estrangeiros em Inglaterra. Tinha chegado do Brasil a Carta portuguesa; levantou-se contra ela uma reacção armada, e os nossos soldados insurreccionados receberam acolhimento, protecção e armas no território espanhol. Era cegado o momento para a meditada desforra contra a França. Canning fez sair para Portugal a expedição do general Clinton; e todos nos podemos recordar das apreensões diplomáticas que este procedimento da Inglaterra suscitou então Canning, chamado neste ensejo a explicar no parlamento a verdadeira situação da Inglaterra à face dos acontecimentos de Portugal e do estado da Península, depois de ter enumerado a série de tratados, que nos ligavam àquela potência, depois de ter engrandecido poeticamente o poder do seu país, tendo descrito a posição da França, exclamou: «Não pensais vós que a Inglaterra fica com isto compensada do agravo, que experimentou, vendo a Espanha invadida por um exército francês, e Cadiz bloqueada pelas forças navais da mesma nação?» E mais abaixo: «Olhei a Espanha debaixo de um outro ponto de vista: considerei a Espanha e as Índias; chamei um novo mundo à existência naqueles países, e equilibrei assim a balança do poder; a França ficou carregada com todos os resultados da sua invasão. Eu achei, pois, uma compensação para a invasão da Espanha, porque deixei A França todo o peso da sua obra, peso de que muito se quereria desembaraçar, e que ela não pode sofrer sem o queixume. É assim que eu respondo ao que se disse sobre a ocupação da Espanha.»

Quereis, senhores, expressões de maior amargura e ressentimento? Quereis maior prova de que a Inglaterra tomou como um desaire a invasão da Espanha?

Estas vozes da tribuna inglesa ressoaram na França, e o velho Chateaubriand considerou-as como uma alusão pessoal: eram um epigrama ao grande acto do seu ministério. Ele contrariou-as, e eis aqui o juízo que por esta ocasião formou o ilustre competidor de Canning dos acontecimentos de Portugal: «A ocupação de Portugal pelos ingleses, que «pode ter algumas vantagens considerada em geral, é, entretanto, para nos muito incomoda, porque nos condena a ficar em Espanha. É o casus fœderis da honra. Os franceses não sabem recusar-se a seus encargos.» Falando do embarque das tropas inglesas para Portugal, acrescentou: «Buscam-se culpados: os espanhóis estão por traz da insurreição portuguesa; se não são os espanhóis, são os franceses. E porque não serão mesmo os austríacos? Não está «D. Miguel em Viena? Naquele país não há muito amor pelas cartas constitucionais. Por que motivo não volta pois «O gabinete inglês a sua cólera contra aquele governo? Por que motivo, senhores? Boas razões haverá para isso, e são «estas certamente as mesmas que fazem que o liberalismo inglês traje o bonet da liberdade no México, e o turbante em Atenas.»

Este gosto de vestir a Inglaterra pelos figurinos da conveniência, segundo os países e as estações, mereceu a aprovação de Lord Palmerston, porque também agora o governo inglês considera em Espanha como um grande feito a revolução da Granja, e em Portugal como um grande crime a do Rocio.

E que consequências devemos nos tirar de todas estas confrontações históricas? Uma só, humilhante, mas instrutiva: e que a França e a Inglaterra vêm de contínuo ao território da Península disputar e decidir as questões da sua rivalidade, que nossa fortuna e destinos são sempre sacrificados aos seus caprichos, e que para acabar este fado ignominioso é indispensável atravessar na estrada dos Pirinéus a espada do Cid, e assestar na torre de Belém o canhão de Diu!

A expedição do general Clinton, depois de alguns passeios militares, viu consumar-se a usurpação, e, deixando-nos já nos pulsos as algemas da tirania, desapareceu das nossas terras. Agora o governo inglês exige que lhe entreguemos Goa em compensação das despesas feitas per aquela força em Portugal. Eu rogo aos Ss. ministros, que, quando julgarem conveniente, hajam de informar a câmara e com efeito há algumas notas do governo inglês sobre tal exigência.

O SR. MINISTRO DO REINO: - Respondo já; é uma insinuação abominável contra o governo…

O ORADOR: - Não é insinuação, nem me refiro ao actual ministério.

O SR. MINISTRO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS: - Ainda não achei tais notas na minha secretária.

O ORADOR: - Pois tenha S. Ex.a a bondade de as procurar, que eu lhe afianço que as há de encontrar.

Enquanto no cerco do Porto o poder constitucional não representava um governo estabelecido, mas as eventualidades duma campanha, o governo inglês conservou sempre entre os dois partidos contendores uma política dúbia e calculada, e talvez uma pena imparcial não tarde a fazer revelações importantes sobre esta parte da história das nossas relações com a Inglaterra.

Repete-se sempre que o partido constitucional recebeu grandes auxílios do governo inglês, e que este fora sempre infesto ao governo tirânico do usurpador. Para não cansar a câmara, abstenho-me de profundar a verdade destas observações; mas os tiros da Terceira aturdiram a Europa, e não podem deixar de ser considerados nesta confrontação. Por que motivo, porém, foi o governo inglês adverso ao governo do usurpador? Porque este (é força confessá-lo! prezava a dignidade do nosso nome, e resistia às sugestões externas: era um governo duro, mas português. Enforcava-nos, sim, mas por desembargadores portugueses, com carrascos portugueses, e com cordas portuguesas.

O SR. MINISTRO DO REINO: - Deus nos livre de tal nacionalidade!

O ORADOR: - Eu faço os mesmos votos que S. Ex.a, mas antes quero uma corda com honra do que uma pasta com ignomínia; antes uma força por um tirano português do que o poder por um embaixador inglês!

Agora, senhores, esse governo, cobrindo-se com uma ideia nobre e generosa, em que ele não crê; rebuçando suas vistas mercantis em expressões de filantropia; promovendo à sombra dos interesses da humanidade o emprego de seus marujos, o exercício de seus oficiais de mar, a extensão de seu comércio e o consumo de suas manufacturas; agora esse governo inglês, recolhendo os votos sinceros feitos a favor da abolição do tráfico da escravatura pela nação a que é indigno de presidir, - converte a moralidade do seu país numa especulação vergonhosa; e levado destas sórdidas vistas, e de ofensas pessoais, insulta, enxovalha e rasga, como um insolente pirata, a nossa heróica bandeira, a nossa bandeira, debaixo de cujo influxo e realizou primeiro o grande pensamento da civilização africana; a nossa bandeira, diante da qual se abriram as portas do Oriente; a nossa bandeira, que muitas vezes obrigou o pavilhão holandês a servir de mortalha aos seus almirantes; a nossa bandeira, que ainda agora nos mares da Quina dá amparo e guarida aos contrabandistas ingleses; a nossa bandeira, que, e tremulando nas popas da forte esquadra que acompanhou a família real ao Brasil para aí apodrecer em suas enseadas, tivesse aparecido na batalha de Trafalgar, talvez, com o formidável enlace das quinas portuguesas e do leão ibérico, teria sepultado no mar o cadáver de Nelson, e hoje não seria rota pelas cobardíssimas balas do Columbine nem teria beijado as águas do Oceano, em que até agora por mal ninguém a molhou, sem elas estarem tintas como sangue de seus inimigos!…

Por esta comemoração longa, verdadeira, mas dolorosa, das nossas relações com a Inglaterra, conhece-se que desde longo tempo nos temos sacrificado a uma ficção de amizade nossos interesses, nossa prosperidade, nossos destinos, nossa história, o sangue de nossos filhos, a fama de nossos capitães, o poder de nossas armas, e que o leão britânico tem abertas as garras sobre a nossa cabeça com mais avidez do que a águia russiana olha para a triste Constantinopla! Ah! senhores, e para que nenhum princípio generoso e santo fique sem gemer nesta questão, até a religião de Cristo, a religião de nossos pães, a religião de nossas vitórias, a religião das nacionalidades, se vê abatida e humilhada aos pés do falso profeta, vendo crescer, nas terras onde impera a sua lei, mais patriotismo, mais virtude e mais dignidade, do que no país, querido filho de sua escolha, objecto de seus favores e teatro de suas maravilhas! Sim, agora mesmo que o império de Selim II está jogado entre a ambição das potências europeias agora mesmo que elas disputam uma a uma a glória de o aniquilar; no meio de tantas dificuldades, depois de tantos revezes, um jovem turco, cercado de conselheiros experimentados, enquanto seus inimigos maquinam a sua ruína, trabalha assiduamente no plano de reformar o seu povo, plantando entre as pedras áridas do despotismo oriental a viscosa planta da liberdade do meio dia. E nós?!... e nós?!... Não posso acabar a confrontação!

No meio de nossa miséria possuímos um grande tesouro. Foi a Inglaterra que no-lo deu. É a colecção de suas orgulhosas e insolentes notas. Legaremos a nossos filhos este livro precioso, e quando a sentença poética do filósofo de Ferney se começar a cumprir contra a Inglaterra, eles a tomarão nas mãos como uma bandeira de insurreição, e farão correr todo o nosso povo para ajudar a despedaçar o manto ensanguentado da Grã-Bretanha, que, aos brados de vingança, seu  repartido nesse dia de justiça entre todas as nações que ela tem oprimido. Então todo o povo português irá cuspir sobre as lousas sepulcrais dos estadistas covardes, que tiverem defendido mal a nossa dignidade, se antes disto alguma furtiva explosão de brio nacional, rompendo através de leis duras e de armas pretorianas, não as tiver despedaçado e coberto de terra!

Só uma grande revolução em Inglaterra pode apartar do ciclo dos acontecimentos estas negras predições.  Só esse partido, que hoje está debaixo das baionetas dos soldados e da corda do carrasco, só essas virtuosas massas (é preciso autorizar a frase, que até aqui tem sido uma senha de escárnio), só essas virtuosas massas, derrubando uma aristocracia orgulhosa, que para conservar suas regalias não se peja de criar inimigos ao seu país, vigorizando por leis justas os verdadeiros elementos sociais, podem formar um governo que tenha de prosperidade e ventura no interior, paz e união com as nações suas irmãs.

Se este futuro se rializasse, nós seríamos o primeiro povo que abraçaríamos cordialmente a Inglaterra regenerada. Ela respeitaria nossos direitos, como nos respeitaríamos os seus, e a memória dos agravos, que dela tivéssemos recebido, servir-lhe-ia de estímulo de ódio contra os homens e sistema que a têm comprometido. Então nossos recíprocos perdões seriam fáceis, porque os povos, mais que os governos, sabem perdoar-se.

Mas, enquanto tal futuro e não realize, é necessário resistir com coragem portuguesa às prepotências do estrangeiro! E se a nossa nacionalidade tem de morrer de todo, ao menos não lhe sirva de túmulo a casa do seu parlamento!

O que eu vos tenho dito, já nos salva de certo desta vergonha.

 

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Dez.2000