Dois castigos sem ter de quê

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O Ensino Recorrente
Prof. João Paulo

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Dois castigos sem ter de quê
Prof. H. J. C. O.


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Dia da Poesia
Entrevista a Teresa Castro
Profª Paula Tribuzi

 

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A família há alguns anos
Odete Nogueira, 12º Turma E

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Voltar de novo a estudar?
A. Alberto Teixeira, 12º M


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Avaliação do Ensino Recorrente
Profs. Cristina Campizes e João Paulo

 

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Dia da África

PÁGINA 8
Literatura Africana em Língua Portuguesa
Nilton Garrido Sec. Turma SA

 

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O Movimento da Negritude
Nilton Garrido Sec. Turma SA

 

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Poetas da Casa

 

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Televisão - Janela aberta para o mundo?
Trabalho de grupo Sec.

 

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Hora do Recreio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(...) No ano seguinte comecei mal a actividade no Liceu D. João III. Para meu grande desgosto, não me foram concedidas as propinas a que sempre tive direito, apesar da média elevada trazida do Porto. Este facto foi, logo no início, um mau presságio e uma fonte de desmotivação. Com a bagagem de conhecimentos que trazia, as aulas não apresentavam para mim grandes problemas, mesmo tendo mudado de ambiente, de colegas e de professores. Facilmente me integrei e as coisas corriam normalmente. O primeiro período passou-se e os resultados, apesar de ter diminuído o rendimento escolar, eram razoáveis. Apenas o 10 no Latim me desagradava francamente, pois parecia-me injusto e totalmente em desacordo com os conhecimentos.

Mais ou menos a meio do segundo período, surgiu-me na aula de Português um professor já velhote, com óculos grossos, que eu desconhecia. Doente durante todo o primeiro período, as aulas tinham sido dadas pelo professor novo, que estava a estagiar sob orientação do metodólogo, que agora retomava a actividade.

Logo no começo da aula, o professor velhote colocou-se no começo da fila, junto à porta da entrada e, chegando junto do primeiro aluno:

— Dá cá a orelha, crianço!

E, depois de lhe ter dado um bom puxão, percorreu as cinco filas de carteiras individuais, para minha surpresa, que me via assim de orelha vigorosamente puxada por um desconhecido sem a mais pequena razão.

Com a orelha recuperada do susto e do doloroso abanão, o professor veio colocar-se no espaço em frente da turma, mesmo na minha frente, entre a primeira carteira da fila ocupada por mim e o estrado do quadro. E, numa voz grave e pausada, que deixava adivinhar um problema de natureza respiratória, começou a declamar poesia. Fiquei pasmado. De boca aberta! Estava em êxtase! Nunca na vida ouvira declamar com tanto sentimento e expressão! Tinha a impressão de ter na frente o João Villaret, que tantas vezes me havia colado aos ecrãs da televisão. Mas, além de ser ao vivo, este professor conseguia ser muito melhor declamador que o João Villaret que eu tanto admirava.

O momento de poesia agradou-me profundamente e fez-me esquecer completamente o puxão imprevisto da orelha. Tinha sido como que o preço para aquele magnífico e imprevisto momento poético. Mas as surpresas ainda não ficariam por aqui.

Estávamos em pleno Inverno, com frio e chuva. As caminhadas desde a Manutenção Militar até ao Liceu D. João III tinham-me pregado uma valente constipação. O nariz começava a pingar. Naturalmente, enfiei a mão no bolso e tirei o lenço para me assoar, não fosse o pingo sujar-me o caderno.

— Crianço, que vem a ser isso? Já lá para fora!

Perante uma ordem brusca, intempestiva, que nem sequer me dera tempo de assoar o nariz, levantei-me e saí da sala. Pela primeira vez, em toda a minha vida de estudante, era posto no olho da rua sem qualquer justificação aparente. Sem saber o que fazer, quase com as lágrimas nos olhos, esperei no corredor, junto à porta da sala, que a aula acabasse.

Assim que a campainha tocou, abriu-se de repente a porta e vi-me rodeado por todos os colegas, que procuravam confortar-me:

— Pá, tiveste azar! Não tivemos tempo de te avisar sobre este professor. Não contávamos mais com ele nas aulas. É um gajo porreiro, mas tem as suas manias. Está sempre a chamar-nos «crianços» e, volta e meia, brinda-nos com os puxões de orelhas e poesia. Não pode ouvir ninguém a assoar-se. Mal vê tirar-nos o lenço, põe-nos na rua, para não fazermos barulho. E agora vai-te acautelando. Já estás marcado. Não voltarás a ter positivas no final dos períodos.

Ouvidas todas as explicações acabei por me conformar, embora a expulsão continuasse a sentir-se como uma grande injustiça. Felizmente, ao fim de algumas aulas e com o apoio dos colegas, o espinho tinha-se libertado e, em breve, deixara de se sentir.

Dois dias depois, voltámos à aula de Português. Uma vez mais o professor nos brindou com o cumprimento matinal, começando o puxão de orelhas numa ponta e acabando na outra. Lá coube também a vez da minha orelha ser puxada e a lição começou, desta vez sem sessão declamatória.

Aproximadamente a meio da aula, analisadas as ideias de um soneto, o Dr. Pechincha foi-se colocar na frente do aluno na fila à minha direita, com as mãos apoiadas na carteira. Acompanhei atentamente este movimento do professor e prestei atenção à pergunta, que ele lhe estava a fazer.

Passados uns segundos, como não houvesse qualquer resposta, a pergunta voltou a ser feita, num tom de voz mais alto e pouco amistoso.

Intrigado, assisto à irritação crescente do professor e à ausência de respostas. E bruscamente, para minha surpresa, vejo o professor dirigir-se-me com má cara e de braço erguido:

— Já lá para fora!

Uma vez mais saí da sala sem saber o que se tinha efectivamente passado.

Terminada a aula, os meus colegas voltaram a rodear-me:

— Eh, pá, tu andas mesmo com azar! Não nos lembrámos de te dizer que o professor é estrábico. Quando quer falar com um aluno, coloca-se na fila ao lado, para dar o desconto. A pergunta era para ti. E ficou irritado por não lhe teres respondido. Pensou que o estavas a gozar. Pôs-te na rua.

Esta foi a gota que fez transbordar o copo. Na aula de Latim, logo a seguir, foi precisamente o professor Nunes de Figueiredo quem acalmou os ânimos, ouvidas as explicações da turma. Eu, pela segunda vez expulso, não conseguia dizer nada de jeito. A única coisa que me lembro de dizer, lavado em lágrimas, é que ia desistir, pois não estava disposto a sentir-me frequentemente enxovalhado por um professor.

— Não, rapaz! — disse o Dr. Nunes de Figueiredo, com a sua voz forte e num tom paternal, com ligeira pronúncia beirã. Não tens nada que desistir. Nem deves desanimar. Provavelmente, no fim deste período, vais ter um nove a Português. Mas no terceiro dá-te o dez para ires ao exame final. É um professor com características muito peculiares. Daqui por uns dias habituas-te às suas extravagâncias e até vais acabar por gostar de o ouvir nas aulas de poesia. E se houver algum problema, cá estou eu para te defender no conselho de turma.

De facto, as palavras do Dr. Nunes de Figueiredo estavam cheias de sensatez e verdade. Em breve, conhecidas todas as manias do professor Pechincha, as aulas tornaram-se uma fonte de conhecimentos e de prazer, especialmente quando havia textos declamados por ele.

Hoje, recordo com prazer e com alguma saudade aquelas maravilhosas sessões, em que ouvíamos o professor declamar com um sentimento e entoação como nunca mais voltei a encontrar, em toda a minha vida. Soube, mais tarde, que o Dr. Pechincha tinha sido colega de João Villaret, que de longe conseguia suplantar. E só não terá seguido a via do teatro e da declamação por problemas de saúde.

Henrique J. C. de Oliveira, Cartas de um miliciano, vol. I, cap. X

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