SESSÃO DE 13 DE FEVEREIRO DE 1840
(Em resposta a Almeida Garrett)
Disseram-se injúrias, jogaram-se
apedrejos... E eu não ouvi as injúrias, e as pedras
nem os vestidos me tocaram!
O tempo é do país, está
adjudicado ao cumprimento das nossas obrigações Mas
é nosso o sangue que nos corre nas veias, e a sua
primeira hipoteca é feita à nossa honra. Assim, não
vou eu no que disser intentar um desforço, mas
responder a um discurso.
Julgou-se que eu pretendera a coroa
de Esquines e Demóstenes. Não a mereci, nem meditei
alcançá-la. Essa Coroa eu a vejo, com prazer, na
fronte de um orador central. Perdoai se lhe lanço a mão:
não é por inveja, mas por curiosidade: parece-me que
seus louros já murcharam, e que estão cosidos em uma
tira de manto cínico.
Pequei, senhores, e pequei contra a
sublime e celestial ordem: restringi o campo de
suas maravilhas, menosprezei o poder de seus meios,
desacatei a força de seus sortilégios.
A ordem tomou destas
afrontas uma desforra, que me confundiu. Tendo operado
um grande encanto dentro desta sala, quis experimentar
as virtudes da sua magia em todo o país.
Os círculos descrevem-se e
apagam-se rapidamente diante de nossos olhos, a luz
empalidece, o sapo estruge nas brasas afogueadas, e o
fumo dos sargaços eleva-se até aos astros. O oráculo
da ordem senta-se na trípode misteriosa, e prepara-se
para revelar os seus portentosos arcanos.
Oráculo! Quantos partidos há no
país?
Oráculo! Quantos partidos há
nesta câmara?
No país há dois partidos e duas
facções, e nesta câmara um partido e uns poucos de
iludidos.
É verdade que não há muito tempo
que o mesmo oráculo da ordem passou increpações de
um para o outro lado da câmara, e que no resto da sua
grande revelação falou de um partido distinto, desse
único que só reconheceu nesta casa. Mas como ao de
embaraçar a ordem estes erros lógicos, se a lógica
é filha da ordem, e sujeita a seus preceitos?
Se a ordem pode combinar as desarmonias da
natureza para os grandes fins da criação, se ela
pode ligar todas as dissonâncias do mundo, como não
há de se sujeitar às contradições dum discurso a
sua concludência, e fazer asserções opostas a uma só
verdade?!
Eu vou, porém, incorrer novamente
nas iras da ordem, eu vou rectificar o quadro
dos nossos partidos políticos; eu vou fazer a história
dessa ordem tão caluniada, falar de seus serviços,
descrever a sua índole e descobrir suas pretensões.
A nos ainda nos não foi muito
prejudicial a fusão ordeira; ficamos salvos da
aliança nefanda, que ela operou. Sim, senhores, nos
ficamos fora do grémio desse partido. que se deu por
único existente neste recinto; e foi isto uma
fortuna, porque antes nos distingamos pela ilusão dos
nossos preconceitos, do que nos confondamos na
realidade daquelas convicções. (Apontando para o
centro.)
Mas a moral, a religião política
do país, a honra e umbre dos homens públicos, não
seriam ofendidas nesta grande mistificação? Decerto,
e é preciso vingá-las. Percorramos poiso panorama
político, que a ordem nos pôs à vista.
É esta, eu a vejo, a monarquia
velha, carregada com a existência de séculos, e
mostrando quase sempre através do peso dos anos o
vigor da juventude. Absoluta em muitas de suas
formulas, mas livre em sua origem, eu a vejo com as
suas leis muito sensatas para o tempo, e com os seus
costumes mais sensatos que suas leis, abatendo já o
orgulho dos barões, já a insolência dos clérigos.
Eu a vejo cercada de seus oradores, de seus
jurisprudentes e de seus capitães, tendo a um lado a
lado Egas Moniz, e doutro a pena de João das Regras.
Eu a vejo fiel como Marum de Freitas, resistente como
o ministro de Afonso IV, triunfar no Zaire, no
Amazonas e no Ganges. Saudade não, mas respeito por
essa monarquia sempre ciosa do nome português!
É esta a monarquia nova, a
monarquia da restauração. Obra da diplomacia
sustentada pelos braços do país, ajudada pela
rivalidade dos áulicos, pelo despeito dos ambiciosos,
recolhe em sua corte os agaloados, que a tirania
despediu do seu serviço. Herdando da monarquia velha
seu valor e gentilezas, vence pelas armas; mas depois
da Vitoria, esquece-se dos vencidos para os proteger,
e dos vencedores para os premiar. Recebe o país cheio
de esperanças, entrega o abatido de desenganos. Deixa
perder em suas mãos esta força da confiança, que é
o primeiro elemento das grandes empresas governativas.
Arroja-se a todas as instituições antigas, despedaça-as,
liberta os servos, apodera-se das esplanadas dos
castelos feudais: e a mão, que tais obras cometera,
desonra-se compondo arminhos para pares. Esta
inconsequência é grande, mas o país perdoa-a: era
forçoso cometê-la. Alguma voz, que hoje só se
levanta em apoio do poder, então bradava tribunícia
contra os homens que empreenderam tais reformas, e o
que então se julgavam inspirações do bem público
eram saudades dos abusos passados. Que esses homens
que foram alvo dessa oposição desleal a guardem como
um espinho do seu martírio governativo, que o mostrem
ao país, que ele só por isto os absolverá dos seus
pecados! Em política uma só grande medida desculpa
às vezes um cúmulo de desacertos, e mesmo alguns
crimes. Essa monarquia fez-se dissipadora,
desgovernada e exclusiva, e o seu poder desapareceu.
Que é feito, porém, - onde está
ela, que não a vejo? - dessa monarquia novíssima, a
monarquia da revolução, a monarquia de 4 de Abril,
monarquia feita por nós, levantada nas nossas lanças,
monarquia que tem suas raízes no coração do país,
e nos degraus de cujo trono se sentamos oficiais da
hierarquia social, e não as raças que a vaidade
distingue; essa monarquia bela, generosa e forte como
a juventude, sensata, económica e prudente como a
idade provecta; essa monarquia, que abateu a seus pés
o orgulho estrangeiro?!
Pois esta monarquia, que esqueceu
ao oráculo da ordem, e a nossa! Desta
monarquia somos nós facciosos; é facciosa a parte
mais brilhante do exército português, que levantou
com dó suas lanças contra seus irmãos de armas; é
facciosa uma magistratura ilustrada e firme, que a
revolução legou ao nosso foro; é facciosa a rainha,
porque a jurou, e palavra de rei não toma atrás; é
faccioso finalmente todo o país, o país que nos
devia julgar, e de cuja legal jurisdição vós
apelais para as alçadas e comissões, que tais são
vossos colégios censíticos. Esta facção é pois
grande: a facção da legalidade.
E não há facciosos? Há, e os
verdadeiros facciosos são aqueles que rasgam com a
faca da lisonja as paginas mais brilhantes da nossa
história; os que riscam do seu calendário os dias de
ovação nacional; os que tiram da colecção de suas
leis a lei fundamental do estado; os que babam todas
as instituições, que não sabem substituir; os que
querem endoidecer a grave monarquia representativa,
metendo-lhe na cabeça ora os rescritos do Império,
ora os decretos da Convenção, ora as ordenanças da
Restauração; os que, contrariando por sua vida
desregrada todos os preceitos religiosos, querem
firmar o ilotismo num culto santo de paz e igualdade;
os que, apregoando-se amigos do trono para o
intrigarem e comprometerem no conceito do país,
excitam contra quem os denuncia todas as fúrias do
poder: finalmente facciosos são aqueles que, saindo há
pouco dos conselhos dum partido, em que tinham França
entrada, quando ele os podia tomar por testemunhas da
sua inocência, se convertem em seus insensatos e
falsos acusadores, fazendo para isto a mais nojenta
rapsódia dos convícios que sujam a parda Gazeta
de Lisboa, e os escritos do padre Macedo e de
Alvito Buela.
No meio destes facciosos anda um
grupo de guerrilhas políticas, que ora acompanha os
pendões do castelão, ora as insígnias das cidades
livres, que se mete nas tendas dos generais e nas
barracas dos soldados, que atiça os combates, e colhe
os despojos das batalhas, que aparece sempre ao pagar
o estipendio, ao repartir as rações, e que grita por
toda a parte: Ordem! Ordem! - ordem que não
tem, ordem que não quer, ordem que não respeita,
ordem que detesta.
E este grupo de guerrilhas é
composto de filhos bastardos de mãe nobre, em cuja
herança tiveram largo quinhão, e que agora encobrem
suas virtudes, exageram suas fraquezas, sem se
lembrarem que a mais vergonhosa delas é o havê-los
gerado! A mãe é a revolução, e os filhos são os
deputados do centro, alguns dos quais só apareceram
no parlamento depois da revolução, e por influxo
dela.
Ordem! palavra
mágica, que faz esbravejar aqueles que mais vezes a
pronunciam! Ordem! palavra mágica, que é o
martírio dos que a inculcam como sua coroa! Porque o
doce nome de Deus fere, mortifica menos o coração do
ímpio, que o pragueja, do que o do hipócrita, que o
finge adorar. o ímpio, ao ouvi-lo, solta mais uma
praga, e tem mais um prazer: o hipócrita é obrigado
a acatar mais uma vezo ser que aborrece, e faz mais um
sacrifício.
E sabeis vós os que estão no
pireu? São aqueles que com uma carta de recomendação
mercantil, assignada pela ordem, cujas letras no
mercado político estão agora valendo tanto como os títulos
azuis na nossa praça, julgam converter o país em uma
feitoria sua de poder, alcançando que todos os ministérios
lhe venham sempre consignados.
«Não se quebrou o poder da Carta!»
Onde está a mão fatídica, que pode delir de cima
dos acontecimentos a cicatriz desta grande cisura política?
Quem pode sufocar os brados populares. que ainda Se
ouvem, ao som dos quais se abateu todo o edifício
social? Quem pode riscar da memória os longos
trabalhos de uma Constituinte, que velo soldar o golpe
da revolução? Sim.
senhores, leis, trono, instituições, tudo esteve por
momentos aos pés do povo: e lá estiveram também as
becas dos desembargadores e as pastas das enviaturas!
Esta aristocracia de orçamento,
que só tem por armas as cifras de seus ordenados, e
por pergaminhos os diplomas dos seus ofícios, lá foi
tirar ao meio do forum algumas dessas becas e
dessas pastas, e lá foi com elas, salpicadas ainda
com a lama da revolução, aos paços reais, onde seu talon
rouge, que tão mal fica a pés plebeus, é entre
disfarçadas caricias objecto de escárnio e motejo.
Quem conteve, porém, em respeito
essa revolução? Quem lhe abrandou as fúrias no dia
do seu triunfo? Seriamos especuladores políticos, que
à noite vinham fazer a corte a anojada Carta, e que
de dia cumprimentavam a revolução, remendando ao
mesmo tempo a velha sotaina de tribunos, não usada
nas contendas da liberdade e nas orações do
parlamento, mas nas arengas de esquina e nas orgias da
insurreição, e compondo e enfeitando os galões da
farda bordada para estarem prontos a oferecer os seus
serviços ao poder a quem a sorte desse a vitória?
Seriamos especuladores políticos, que durante os
tempos duvidosos ajustavam aos pés as sandálias de
Gracho, e limpavam a facha patriciana, para virem a
praça, ou beijar o punhal vingador de Bruto, ou ouvir
a oração do ordeiro Marco António e seguir a toga
ensanguentada de César? Não, senhores; quem sossegou
a revolução, quem a livrou das garras da anarquia,
foram esses infernais anarquistas, que, superiores a
todos os prejuízos, conhecem que as paixões dos reis
e dos povos são fraquezas, que é mister antes
mitigar que exasperar, e cujo único crime é o
haverem-se recusado a vender aos ambiciosos os cadáveres
de seus concidadãos a troco de miseráveis
lantejoulas!
E se nós realmente somos
anarquistas, porque não deixamos sem freio esse furor
de retrogradação, que vos devora? Porque não vos
abandonamos ao vosso fanatismo político, ao desatino
das vossas paixões? Porque não fazemos acender como
nosso silencio as fúrias do povo, que mais se
exacerba quando se é desamparado, para vós
levantardes contra ele as forças da opressão, e ele
contra vós os punhais da vingança, convertendo o país
por estas reacções tirânicas num lago de sangue,
contemplando-vos com prazer sobrenadando nele sempre a
gritar: Ordem! Ordem! - a ordem dos cadafalsos,
a ordem das turbas, a ordem da anarquia do povo e da
anarquia do governo?
Passo à história da ordem.
Nela tudo é grandeza, doçura, prazer e maravilha;
assim a empresa não fosse difícil! Que língua pede
revelar os seus misteriosos trabalhos, descrever com
delicadeza a eficácia portentosa de seus meios e a
pompa de seus resultados? Que engenho pede compreender
todos os fenómenos da ordem, e abranger a
extensão de seus domínios? Quem pede, arrombando os
umbrais da eternidade, ver a ordem lutando como
caos obrigar a natureza às leis da harmonia?
A ordem, primeiro, encerra
no centro desse caos as matérias vulcânicas, essas
massas anárquicas da natureza; depois empola os
montes, e cava os vales, encana os rios, recolhe os
mares, azula o céu, alumia a terra, suspende os pássaros
nas azas, equilibra os peixes no nado, levanta nos pés
os outros animais, tira do pó o rei gozador destas
maravilhas, da costela desse rei a rainha sua
companheira, e inspira a esse par ditoso o seu
primeiro beijo, beijo criador e fecundo, de que a
nossa vida é um presente! Ingratos! Devemos a vida à
ordem, e negamo-lhe os respeitos que ela
merece!
Por outro lado, quem forjou a
espada organizadora de Nemrod? A ordem. Quem
salvou das águas do Tibre os infantes fundadores de
Roma, e com eles os fados do Lácio? A ordem.
Quem ensinou os caminhos, quem conduziu através de
todas as dificuldades os bárbaros do Norte? A ordem.
Quem fez de um almocreve árabe o chefe duma religião?
A ordem. Quem deu a Carlos Magno a sua poderosa
espada? A ordem. Quem compôs o bálsamo de
Ferrabraz? A ordem. Quem fez as botas de Carlos
XII, o chapéu de Enrique IV e o casaco de Napoleão?
A ordem. Quem, finalmente, inventou as belas
artes, a música, a pintura, a escultura, e a grande e
nobre arte da gastronomia? A ordem. Ingratos! Devemos
tudo à ordem, e não lhe damos a consideração
de que é credora!
Quando a expedição restauradora,
epílogo romântico de esperanças, de receios, de
saudade e valor, quando essa expedição, que em si
encerrava maiores fados que a nau sagrada dos
atenienses, atirou peca de leva nas águas dos Açores,
quem se pôs ao leme de seus navios? A ordem.
Quem abateu os mares, quem enfreou os ventos, quem fez
singrar os escaleres, quem deu a mão ao soldado para
saltar em terra, quem tangeu os clarins, quem rufou os
tambores, quem limpou o fuzil, quem fez rodar o canhão?
A ordem.
Eu mesmo, que então tinha no braço
as minhas insígnias de cabo de esquadra, e que com os
granadeiros da minha peça marchávamos, silenciosos e
sofredores, carregando muitas vezes como peso dos canhões;
vós mesmos, companheiros de batalha, que vos sentais
ao meu lado, quando depois saíamos das baterias,
salpicados como sangue de nossos irmãos de armas, e
abríamos caminho com as baionetas por entre os
inimigos, nós todos, que julgávamos que estas vigílias,
estes perigos, estes transes, este valor eram filhos
do nosso patriotismo, da nossa devoção pela
liberdade, enganávamo-nos, porque todos estes feitos
eram devidos ao influxo mágico da ordem, de
que tínhamos sido tocados! Ingratos! E devemos à ordem
toda a nossa glória e nome, e negamo-lhe o
acatamento a que tem direito!
E, nos dias de perigo, não
apareceu em nossas fileiras o oráculo da ordem,
e nós suspeitamos do seu patriotismo?! Como fomos
loucos! Nesses momentos operava ele todas as
maravilhas e todas as gentilezas das nossas armas,
desenvolvendo por um gasómetro ordeiro o espírito
vivificador da ordem, e repartindo por condutos
invisíveis a todos os soldados da liberdade.
Está decidido: não há outro
poder na terra senão a ordem; todo o mundo
material e político lhe pertence. Entelequias de
Malebranche, turbilhões de Descartes, monadas de
Leibnitz, gravitação de Newton, princípio utilitário,
escola sentimental, força dos costumes, educações
religiosas, génio dos legisladores, - tudo isto é
nada, e o mundo não lhe deve nem bem nem mal. Só a
gramática se pode apresentar como rival da ordem,
e disputar-lhe o império do mundo: também ela tem
pretensões anteriores, grandes e importantes, e já
um seu predilecto as sustentou com gravíssimas razões.
A paz é hoje um voto universal; e
para que esta contenda a não altere, divide-se o
mundo em império do Oriente e Ocidente, e fica um
deles para a ordem, e o outro para a gramática!...
Esta partilha, se se fizer sem
sangue, aparece em bom ensejo, porque corta pela raiz
a embaraçada questão do Oriente. A astúcia do Bacha,
a coragem do Divan, a ambição da Rússia, a doblez
da Inglaterra e a perplexidade da França, tudo se
tornará inútil, e nós desta vez com duas palavras
ditamos a lei a Europa, e mudamos a face do mundo.
Mas a que veio o pedantismo
parlamentar, a charlatanearia literária, a que me vi
obrigado a responder para a ridicularizar como
merecia? Que quer dizer tirar as questões políticas
do seu campo próprio, e descrever os partidos por
dissertações metafísicas? Que têm os actos dos
homens como valor das palavras, que eles tomam por
senhas? Que tem a religião, doce e pura, com os
crimes que se cometem em seu nome, com as fogueiras
que se acendem para a ultrajar? Que tem a literatura
com as obras que se lhe filiam, e que ela reprova e
desconhece?
Sabeis vós os que estão no Pireu?
São os que tendo feito alguns lucros de reputação,
quando a praça tinha menos negociantes, julgam que
pedem esperdiçar o ganho, reputando que alguns papéis
de crédito, que ainda têm em suas carteiras, são
efeitos de grande valor, e não vendo já sobre os
seus escritórios o selo da quebra, e a
impossibilidade de apurar da massa falida somas que
possam exceder as quantias necessárias para o
pagamento privilegiado de caixeiros, criados e outros,
que lhes ajudaram a granjear suas poucas riquezas
cientificas.
Se se fala da ordem, como
princípio político, nós também somos ordeiros, e
eu já descrevi a ordem, como a compreendemos.
Sim, senhores, a nossa ordem tem
toda a eficácia de um princípio, sem ter os
desvarios de uma paixão; é um elemento governativo,
e não a bandeira de um partido; é um sedativo, e não
um cautério para as paixões populares; a nossa ordem
confessa-se sem alarde, e serve-se sem galardão.
«Mas a ordem não é
exclusiva, não afastou cidadão algum da uma; abriu
as portas do parlamento a todos os partidos, propôs a
lei das reintegrações, e reuniu assim a família
portuguesa em volta do trono.» Examinemos estas alegações.
Acaso nos colégios eleitorais, em
que a ordem apresentou os seus candidatos, não
havia outros que procurássemos sufrágios públicos?
Se eles não fossem eleitos, ficaria sem representação
essa parte do território português? Se os escrutínios
lhe fossem avessos, ficariam as cadeiras que hoje
ocupa a ordem cobertas como pálio ordeiro,
como cadeira episcopal em sé vacante? Não; os
ordeiros afastaram da uma tantos cidadãos, quantos
deputados contam neste parlamento. A ordem não
afastou alguém da urna, e aos pés das cadeiras da
ordem está como trofeu a clavina do Pedreira, e
as cabeças de dois apóstolos ordeiros ainda estão
polvilhadas com as cinzas das actas de Guimarães.
A ordem precisava de
governar, mas não tinha toda a gente necessária para
fazer governo; precisava maioria nas câmaras, e não
tinha candidatos para a formar. Neste apuro meditou, e
resolveu o problema de sua influência pelo seguinte
modo: «Se nenhum dos dois grandes partidos do país
trouxerem ao parlamento uma força, que lhe de vitória
segura; se conseguirmos igualar o número de seus
eleitos, nós, posto que poucos, usurparemos o privilégio
de decidir as questões, encostando-nos aquele que
melhor nos convier.» Isto se pensou, e isto se fez;
para o conseguir o governo, que então era ordeiro,
desenvolveu junto à uma todos os recursos da intriga,
paralisando os esforços de um partido com os esforços
do outro; e daqui nasceu a actual câmara, em que os
ordeiros tiveram até à última votação a regalia
do desempate.
Eis aqui a que se reduz toda a táctica
ordeira, que disfarça os seus fins ambiciosos num
princípio generoso!
Este recurso da intriga, que se
empregou junto às umas, ainda agora se exercita no
parlamento. A ordem em suas conversas de
corredor, em suas expansões políticas, diz à
esquerda: «Os da direita são devoristas»; diz à
direita: «Os da esquerda são anarquistas»; diz à
esquerda: «Nós cá somos da revolução»; diz à
direita: «A revolução foi uma calamidade»; diz a
estes: «Vós tendes talentos e oradores, o governo
pertence-vos, os vossos adversários estão gastos»;
e logo repete aqueles: «Estadistas, só vós os
tendes; vossos contrários são gárrulos e nada mais».
E assim se joga com dois partidos, e se escarnece do
país na pessoa deles! Que miséria! Que mistificação!
A ordem calçou as forças
da revolução, e conheceu, porque a preparou, a sua
decadência. Então os ordeiros, que dela haviam
recebido empregos, procuraram segurá-los, obsequiando
o partido a quem o poder devia dentro em pouco ser
entregue. Daí veio a lei das reintegrações; essa
lei é uma impetra do cumpra-se da chancelaria
cartista nos despachos da revolução. Mas, se essa
revolução deu aos ordeiros talher na mesa do orçamento,
ou se os passou do fundo para a cabeceira dela, porque
não cedem eles os lugares, que não eram seus, aos
primeiros comensais? Em vez deste procedimento,
procuram alargar a mesa, fazendo mais dispendioso o
jantar, e obrigando o povo, que nada tem com estas
generosidade, a pagar para os novos convidados! E é
isto que se chama reunir a família portuguesa em
volta do trono? Sim, é reuni-la, mas em volta do orçamento.
Quereis vós saber os verdadeiros
planos da ordem nesta decantada reunião da família
portuguesa? Eu os descubro. Quando nós, com pesar,
combatíamos por nossas dissenções políticas, os
adeptos da ordem lembraram-se de se constituir
em tribunal de paz, de fazer subir à sua presença os
memoriais de nossos recíprocos agravos, de decidir o
nosso grande litígio como uma questão caprichosa de
servidão entre dons vizinhos poderosos, e de fazer
uma constituição de retalhos, como se fosse um
discurso ordeiro, anulando o voto e a missão da
Constituinte. Os adeptos da ordem, depois desta
grande obra, ficariam padres definidores, e nós
receberíamos o hábito e cordão de leigos para os
servirmos no refeitório. Ainda agora não perderam
estas pretensões de domínio: um presta apoio ao
ministério, com tanto que ele se sujeite as suas
correcções, e assim quem fica governando menos é o
governo; outro declara que o seu apoio a administração
não passa duma neutralidade armada.
Sabeis vós os que estão no Pireu? São os que
sem cabedais, sem crédito, vendo que todas as letras
lhes são protestadas, que os seguradores se recusam a
pagar-lhes a importância das apólices, que todos os
navios lhes naufragam, ou varam, se metem cegamente em
especulações deste lote!
«E a ordem é consequente, e vós
sois díscolos.» Um homem que nós quisemos elevar ao
poder, um homem cujo nome vós tomastes como um mau
agouro para a liberdade, um homem que vós arredastes
da administração com ferro e sangue, foi afinal o
vosso ídolo: cantastes a palinodia, e reconhecestes a
pureza de nossas intenções. E esse homem, respondo
eu, cujo crédito vós prejudicastes momentaneamente
com as vossas recomendações, cujo carácter
procurastes perverter, e que quisestes levar ao ministério
através de todas as considerações, e não obstante
as maiores calamidades, esse homem é desalojado da
administração, esse homem é substituído
antiparlamentarmente, - e vós não inquiris a causa
desta mudança, mas antes vos abraçais como s
sucessores dele!
Mas um de vós tomou do Sr.
Derramado, lavrador sem pretensões, e fez-lhe os martírios
que se fizeram ao Redentor. E vós, oráculo da ordem,
pusestes a coroa de espinhos sobre uma cabeça nobre:
achastes nela cicatrizes de feridas gloriosas, e
rompeste-lhas com os espinhos! Quisestes amarrar-lhe
os dois braços valentes: achastes um cortado, e lançastes
a corda a parte, que as balas do tirano respeitaram.
Quisestes meter-lhe na mão, assim atada, a cana da
irrisão: encontrastes já uma espada ilustre, e lançaste-lha
aos pés. E, para tudo isto, metestes-vos pelas
catacumbas das nossas organizações ministeriais,
para lá irdes tirar um cadáver já mirrado! E tínheis
ao vosso lado o maior exemplo de surreições
ministeriais, que melhor servia ao vosso intento, e
respeitaste-lho, só para não ofender as imunidades
da ordem. E que terão feito estes dois homens
para merecerem de vós tão diverso tratamento? Estão
fora do poder, e resistiram ao estrangeiro.
«Mas a ordem é modesta: não se
acham em seus bancos esses barões de fresca data,
cujas famílias ninguém conhecia.» Permita-me a câmara
que, a este respeito, lhe conte uma história. Um
sargento relaxado deu licença a toda a guarda, e
ocupou o lugar da sentinela. Veio o oficial de ronda,
perguntou pelo sargento, e ele respondeu: pronto;
pela sentinela, e ele respondeu: pronto; pelos
outros soldados, e o sargento respondia sempre: pronto,
pronto. Assim está a ordem: deputado, pronto;
senador, pronto; marquês, pronto; conde, barão,
etc.: pronto, pronto. Enfim, a ordem não
tem gente para tanta coisa, e é forçoso que o mesmo
homem acumule diversas dignidades, o que lá não
falta, e que apesar disto não tenha todas quantas
deseja, o que é uma pena. E não haverá na ordem pessoa,
que, trajando não a sotaina de tribuno, que nem todos
pedem vestir, mas a roupeta multicor, cujos retalhos
foram presente de diversos partidos, saísse com ela
do meio das turbas, e no caminho para os paços reais
a fosse rasgando, e tomasse na primeira adéla uma
casaca safada de rasteiro áulico? Se tal personagem não
está na ordem, então nem todo o ministério
é ordeiro, e há lá fazenda de contrabando.
A ordem é sábia, inocente, e
protectora de todas as classes.» A Bretanha foi um
mar de sangue, quando as facções lhe quiseram
incutir uma lei e um culto, que repugnava a seus hábitos:
a ordem restituiu-lhe a paz. E o dinheiro inglês,
distribuído entre aquelas povoações pelo ordeiro
Pitt e as pregações dos padres fanáticos, que também
eram ordeiros, não concorreriam para as horrorosas
cenas que se passaram naquele desgraçado país? Mas
que tem essa época de frenesi revolucionário, em que
só pecou menos quem pecou para melhores fins, como
estado actual da Bretanha, a que me referi, estado que
comprova as benéficas influências do progresso, e a
debilidade da resistência ordeira?!
A Irlanda também deve as suas
desgraças às facções, que lhe não permitiram o
exercício de sua religião. E quem são essas facções
que disputaram a Irlanda a liberdade do seu culto? São
os tories: e os tories são ordeiros. E
que tem a época da luta religiosa, que já acabou na
Irlanda, como seu estado actual, em que suas garantias
municipais estão sofismadas, seus direitos políticos
restritos, e o suor de seu trabalho entregue a uma
aristocracia a - vida e indolente? Quando o povo
irlandês, libertado pelos esforços de O’Connell,
feliz, vitorioso e agradecido, levantar estátuas ao
seu corajoso defensor, ou as mãos invejosas da ordem
irão derrubar esses monumentos de gratidão pública
e levantar o seu ídolo sobre as ruínas deles, ou o
tribuno O’Connell será declarado ordeiro em concílio
ecuménico.
A ordem não propõe o censo; esse
está decretado na Constituição; a nossa lei só
regula a prova do censo.» A prova do censo! Que
agudeza! que descoberta! Inveni! inveni! Sim:
uma prova que destrói o princípio, e que une a todos
os erros da doutrina a deslealdade dos meios; uma
prova que ofendeu preceito constitucional, que se diz
corroborar! «A nossa lei de prova do censo só
quer destruir o vago árbitro das juntas de paróquia,
substituindo-lhe uma regra fixa e invariável.» Sim:
a regra fixa e invariável da vontade do governo, que
mandará de suas secretarias a lista das pessoas que
quiser recenseadas, e que terá nos empregados de sua
nomeação, a quem esses recenseamentos vão ser
cometidos, fiéis executores de suas indicações.
Mas a ordem não quer, nem a
nação deseja, ver lutar entre si as diversas classes
de que se compõe; e a ordem, que nos está
pregando sempre esta doutrina, fala-nos continuamente
da classe média. Onde está esta classe media, se não
há uma inferior e outra superior? Quais são os
limites, que marcam a raia destas diferentes classes?
A classe média, direis vós, é composta dos cidadãos
que têm o censo marcado na lei para votar. E quem são
os cidadãos que têm esse censo marcado na lei para
votar? São os que formam a classe média. Assim a
descrição desta classe e a constituição do corpo
eleitoral são coisas que dependem da vossa lei, e a
vossa lei do vosso árbitro.
Sabeis vós os que estão no Pireu?
São aqueles que vem despachar as alfândegas da
publicidade estes fardos avariados de história, sem o
selo da crítica, e expor à venda no bazar do
parlamento, em vez dos panos finos da verdade, as
baetas do sofisma.
Estão também no Pireu os que,
vendo voltar dos bancos das eleições muita embarcação
carregada de quartolas de confiança, de barris de
votos, de dornas de actas, e tendo muitas vezes
empreendido sem sucesso esta peca do alto com perda de
barcos e aparelhos, agora julgam fazer-se senhores do
ganho de toda esta especulação, fingindo-se
caixeiros e guarda-livros da nação, e querendo
comprar per sua conta todo o pecado, passando para
tudo isto letras em nome dela, como mesmo direito com
que uma vez três alfaiates ingleses proclamaram em
nome da Grã-Bretanha.
Estão no Pireu os que,
considerando a coroa como uma mina, se associam a
todas as companhias nacionais e estrangeiras para a
explorar, meditando largar a empresa, logo que a veia
estiver pobre e as galerias de mineração inundadas.
Estão no Pireu os que, dos livros
que lêem, só ficam cogumentos com a recordação de
suas vigílias e habilitações académicas; os que
cirzem de fazenda emprestada relatórios, leis e
discursos; os que chamam ignorantes aos que lhes ; e
finalmente os que, para que se não estrague o gosto público,
recomendam as suas obras com prefácios panegiristas,
escritos por sua própria e modesta mão.
Estão no Pireu os que no século
XIX mandam vir de França, por atacado, quintais e
quintais de discursos do Abdas com molho de Guizot e
Royer Collard, expõem à venda, como iguana
esquisita, a chanfana da soberania da razão, da
supremacia legal das capacidades, julgando que a
grosseira cozinha doutrinaria, que com seus pastéis
tanto tem arruinado a saúde de povos e reis, ainda
pede satisfazer o delicado paladar das nações,
acostumadas aos apetitosos guisados da soberania
popular, da igualdade e da justiça.
Estão no Pireu os que, depois de
terem feito suas genuflexões ante a estátua de ferro
da usurpação, foram para a emigração adorar
algumas estátuas de ouro, que por lá se levantaram,
e que depois se recolheram ao país, para se
associarem, não com aqueles que haviam sustentado o
colosso da tirania, julgando que combatiam pelo bem da
nação e pelos direitos da realeza, mas com os que,
sem acreditarem
em causa alguma, as seguem todas, que têm a
cronologia das desgraças públicas marcada no peito
com as insígnias das mercês, e que, havendo
levantado o usurpador do pó do nada, depois que
tiraram todo o partido dos seus malefícios procuraram
minar o seu poder para servirem outro senhor, que
melhor lhes pagasse.
Estão
no Pireu os actores de todos os entremezes, comédias
e tragédias ministeriais, que vestem com a mesma
facilidade a jaqueta do , o manto do rei tirano e o
chambre de áulico retirado, sem lhes importar os
apupos da plateia e as censuras dos literatos,
procurando só que haja boas enchentes, que as
escrituras da empresa sejam cumpridas, embora todos os
dias mudemos empresários.
Estão no Pireu os que, deixando o licito comércio da
virtude e honestidade, se puseram a traficar em galões,
plumas e lantejoulas, e que solicitando um lugar nos
mercados das cortes estrangeiras, para irem expor à
venda suas fazendas, o não puderam alcançar.
Estão, finalmente, no Pireu os que vieram para a casa
comercial Revolução & C.a, como a mocidade do
Miacreditam e procuram arruinar por todo o modo.
Mas quem é toda esta gente que se acha no Pireu? Que está
ela lá fazendo? Foi um sonho! No Pireu só vejo uma
companhia de trabalhos braçais, que corre avidamente
à praia, quando cega alguma carregação ministerial,
e que carrega por todo o preço os fardos de que ela
se compõe, qualquer que seja a firma comercial com
que venham marcados.
Caminho de Madrid vem um pobre artista espanhol; traz toda a
sua ferramenta em uma pequena seira, volta-se para a
sua pátria, que deixa, e diz-lhe modestamente: Adiós,
Madrid, que te despueblas. Caminho de Madrid vai
um granadeiro a passo largo, de arma traçada;
perguntam-me que destino leva: Me voi de refuerzo
à Murillo. Nós, a esquerda, representamos Madrid
saudosa e despovoada; a direita é a divisão de
Murilo; e a ordem reúne em si a fatuidade do
artista e do granadeiro espanhol. Bem! a nossa situação
fica assim menos complicada. A ordem sumiu-se na última
votação que tivemos; já não há senão esquerda e
direita, e voltamos aos tempos felizes das câmaras da
Carta.
Já que tenho estado a registrar o porto Pireu, e a verificar
as fazendas que nele desembarcam, vou também
verificar o fardo ministerial de 20 de Novembro.
No discurso da coroa, além das comunidades de etiqueta, tudo
o mais em meu entender são consequências; essas
consequências tem um princípio, que para nós ainda
está oculto. Nós somos chamados a avaliar e julgar
essas consequências, e esta tarefa é impossível, se
o princípio donde elas se derivam nos for
desconhecido. Estamos pois autorizados a pedir explicações
aos Srs. ministros em nome da lógica.
Mas qual é este princípio? Eu vou dizê-lo: é a existência
e a organização do actual ministério.
A folha oficial, as discussões, o testemunho de nossos
sentidos, tudo nos certifica que nós temos governo, e
que vós o formais. Como, porém, sois vós governo?
Eis aqui um ponto capital, uma questão que domina
todas, e sobre ela nada diz o discurso da coroa.
Talvez se estranhe este meu reparo: vou justificá-lo. O
ministério actual apresenta um tal enlace de recordações
antipáticas, de princípios opostos, de precedentes
contrários, de índoles diversas, que é forçoso
supor, ou que a perspectiva do poder deslumbro nos
Srs. ministros para não veremos inconvenientes desta
ligação, ou que algum grande fim governativo fundiu
suas consciências e irmanou suas vistas políticas.
Saudade profunda pelas instituições abolidas, entretida
pela lembrança de desastres domésticos;
versatilidade selada como serviço a diversas causas;
furor reaccionário contra todas as instituições
populares; política astuciosa, que procura ganhar os
corações, enlear as inteligências, e que ensina a
deserção como uma virtude; finalmente, frenesi
executivo, que considera os homens como obstáculos
materiais, e as leis como peias impertinentes - tudo
isto se acha representado no actual ministério com
caracteres de sangue.
Por estas observações, que já são populares, a administração
de 20 de Novembro apresentou-se ao paz. suscitando
toda a curiosidade dum enigma e todos os receios de um
mau presságio. As explicações, que posteriormente têm
dado os Srs. ministros, têm legitimado esses receios,
sem diminuir essa curiosidade.
Esta minha exigência de explicações não parte só dum
princípio de conveniência, mas é, em meu entender,
o cumprimento duma obrigação sagrada.
Ao encerrar as nossas sessões, deixámos à coroa um ministério
coberto com os nossos votos, ungido com a nossa
confiança, e esses votos e confiança valem bastante
aos nossos olhos, e aos do país, para deixarmos de
inquirir as cansas por que se frustrou o seu influxo.
A coroa retirou a sua confiança aos ministros; a acção da
sua prerrogativa parou aqui. Mas sobre nós pesa
tarefa mais árdua e odiosa: nós somos obrigados a
trazer ao banco dos acusados os ministros que mal
servem o país.
Assim prevenidos pela resolução da coroa, nós precisamos
saber se o ministério transacto merece que
entreguemos ao tribunal da segunda câmara o exame da
sua política; é, pois, em nome da prerrogativa da câmara,
que nós interrogamos a prerrogativa da coroa.
As lutas parlamentares tinham cansado o país; depois de
embainhada a espada de nossas dissenções políticas,
per toda a parte Se faziam votos por um sistema de
tolerância e concórdia. A palavra conciliação foi
repetida no meio desta casa entre os nossos aplausos,
e inculcada como a senha de uma política protectora,
que devia melhorar o nosso futuro e esquecer o nosso
passado o ministério de 18 de Abril ia realizando
este esperançoso programa; o timbre oposicionista do
lado direito desvaneceu-se nas primeiras questões do
governo, e tanta era a sua tendência para segurar o
poder, que nós nos vimos obrigados a levantar nestes
bancos alguma voz de oposição para sustentarmos o
equilíbrio parlamentar. Que causas destruíram, pois,
este desejado acordo? Que causas enlutaram outra vezo
nosso horizonte político, que começava a limpar-se?
Recordemos a organização do ministério de 18 de Abril. A
coroa chamou aos seus conselhos todos os homens
importantes; rodeou-se de todos os partidos; ouviu as
suas exigências. A missão organizadora foi incumbida
a diversos caracteres, e uns depois dos outros pediram
a sua majestade a exoneração daquele honroso
encargo. Ensaiaram-se todas as combinações,
tentaram-se todos os nomes, e nós aguardámos, sem a
dificultar, a escolha da coroa. Afinal apareceu o
ministério de 18 de Abril, e ninguém pode contestar
que ele foi o resultado do mais livre e meditado exercício
da prerrogativa real. Que causas, pois, anularam a
expressão espontânea da vontade da coroa?
Finalmente, senhores, nós somos obrigados a julgar e
comentar à face do país todos os sucessos
importantes, que tenham acontecido no intervalo de
nossas sessões; e a mudança de um ministério é na
ordem constitucional um facto da maior transcendência.
Não podemos, pois, ficar silenciosos sobre ela, sem
abnegarmos do nosso mandato.
Esta obrigação de julgarmos o facto da nova administração
redobra, se atendermos ás varias, mas importantes
explicações, que geralmente se dão deste fenómeno
político.
Uns dizem que se apresentou à coroa como iminente um grande
perigo: que a ameaçaram com a desmembração dos
nossos territórios, e que a diplomacia estrangeira,
irritada pelas resistências nacionais, pediu o sacrifício
do ministério de 18 de Abril para aplacar suas iras.
Outros espalham que o ministério fora imposto
brutalmente à coroa que ainda roxeiam em pele
delicada os vergões da mão estrangeira, que cometeu
tal atentado; e que este ministério há de ser dócil
instrumento das vontades de quem o elevou ao poder.
Outros, finalmente, sem negarem esta origem, afirmam
que os nomes europeus dos Srs. ministros. conhecidos e
respeitados em todos os gabinetes, hão de só como
seu prestígio resolver a nosso favor todas as questões
diplomáticas, e trazer-nos outra vez ao tempo em que
vinham os embaixadores da Pérsia tributar homenagem
aos nossos reis.
Se este perigo ainda existe, não obstante haver-se tomado
uma providência para o conjurar, por que motivo não
havemos de ser conhecedores dele, para resolvermos as
medidas que demanda? Se com efeito existiu, e já não
existe, por que razão, junto com a notícia da sua
existência, se nos não há de comunicar a agradável
nova de que já o não devemos temer? Se o ministério
não tem a origem estrangeira, que se lhe atribui, nem
está disposto a servir cegamente a diplomacia, por
que razão se não hão de negar formalmente estas
alegações? E se o ministério, em uma palavra,
possui esse especifico de paz e grandeza, que se lhe
atribui, porque há de cometer-se a barbaridade de
no-lo encobrir?
Estas perguntas desagradam aos Srs. ministros, e S. Ex.as,
para se livrarem delas, sustentam que eu estou pisando
terreno que me é defeso pela lei fundamental, e
cobrem com as prerrogativas da coroa o seu embaraço e
pouco tacto. Este recurso é um pouco cobarde; mas,
assim mesmo, é preciso inutilizar-lho.
A prerrogativa da coroa não é uma homenagem, é um princípio;
não é um sentimento, é uma doutrina; respeitá-la
é observar as leis, que marcam a sua acção. A
prerrogativa é livre, libérrima; mas os actos do seu
exercício geram responsabilidade, e essa
responsabilidade está nos Srs. ministros. O primeiro
acto por que o ministério é responsável é a sua própria
existência, poiso sistema representativo fora um
absurdo, se não tomasse alguém responsável pelo
mais importante facto político que ele reconhece.
Os Srs. ministros dirão talvez que aceitaram as pastas,
porque sua majestade lho ordenou. Mas uma organização
ministerial não é um objecto de disciplina de quartéis;
um ministério é um compromisso entre quem o aceita e
o nomeia, e quaisquer que fossem as considerações
que ditaram a coroa essa nomeação, elas encamaram na
cabeça dos Srs. ministros, que, pelo facto de
aceitarem o poder, as esposaram.
Assim, sem entrar na esfera irresponsável da
prerrogativa, que eu respeito lealmente, o grande
facto da mudança do ministério está debaixo da
nossa censura.
A prerrogativa é livre, já o disse; mas não é muda. É
verdade que ela não entende a grosseria de nossos
dialectos, nem nos podemos compreender a sublimidade
da sua linguagem.
Mas tem interpretes, tem línguas, que são os
Srs. ministros, e a estes é que nos dirigimos. É,
pois, um facto deplorável que eles tenham emudecido.
A prerrogativa da coroa é livre e independente, como a
prerrogativa da câmara;
mas a independência das forças políticas não é a
sua isolação: todas elas se podem entender sem se
confundirem; e é isto que nós exigimos.
Quando as administrações mudam pelos votos do parlamento,
sabe-se o sistema que triunfa, e a sorte publica fica
logo manifesta. Então o facto da mudança ministerial
explica-se a si mesmo, ou antes de sucedido o
caracterizam as discussões que o produziram. Nos
ministérios formados fora da influência parlamentar
faltam estas condições.
Dir-se-á talvez que a vida dos homens públicos é
conhecida, e que a consideração de seus princípios
revela por si só o espírito governativo das
administrações, a que são chamados. Isto, até
certo ponto, é verdade nos países onde as cadeiras
legislativas representam convicções, mas não
no nosso, onde pela maior parte representam especulações,
e onde, ao entrar nesta sala, muitos estadistas
escolhem o assento, afim de que possam cegar mais
depressa ao bem-aventurado país das pastas.
Além disto, nos ministérios formados à face do parlamento,
os homens chamados ao governo vão satisfazer uma
necessidade administrativa, ocupar um lugar, que os
votos parlamentares tomaram vacante; não desalojam
ninguém da sua posição.
Destas ponderações deduzem-se dois princípios: um de política
e interesse público, outro de civilidade e decoro
pessoal, que obrigam imperiosamente os Srs. ministros
a darem explicações categóricas sobre as causas da
sua ascensão ao poder.
Numa palavra, as organizações ministeriais feitas
anti-parlamentarmente são soprepções políticas na
ordem constitucional, e só lhes podem tirar este
vicio as explicações subsequentes, que legitimem
aquela irregularidade.
Se S.as Ex.as se recusam a satisfazer as minhas justas exigências,
a cominação que lhes faço é horrível, mas inevitável.
Hei de combinar os factos como entender, e acreditar o
que eles me revelarem; e S.as Ex.as ficarão gemendo
debaixo das imputações que me vir obrigado a
fazer-lhes. Se forem julgados à revela, não é por
falta de citação.
Não é só sobre a organização do ministério que é
omisso o discurso do trono; outras omissões lhe noto
eu, que não posso deixar de atribuir a momentosos
propósitos.
Na nação vizinha completou-se um grande facto; os ódios de
uma guerra inveterada, a tenacidade de antigos
preconceitos resolveram-se num abraço cordial, e dois
exércitos separados pela mais rixosa campanha, dois
exércitos, que tinham pleiteado entre si tiranias e
assassinatos, aparecem num momento unidos num só
campo e debaixo da
mesma bandeira.
O convénio de Bergara foi, senhores, um acontecimento
europeu pelos seus resultados, grandioso pelos seus
motivos. Foi um fenómeno político e uma conversão
moral, que só a civilização moderna podia produzir.
Foi mais do que um acontecimento europeu: foi uma
coroa de glória para a humanidade.
O ministério, no discurso da coroa, despe este acontecimento das suas qualificações,
diminui a sua importância, restringe as suas consequências;
em uma palavra, o ministério amortalha o convénio de
Bergara no esquife do filho do Remechido, e faz-lhe as
honras fúnebres em uma oração incidente.
Qual seria o motivo desta ridícula mistificação? Que razões
levariam o nosso governo a depreciar esse grande
acontecimento? Não as sei, mas aventuro sobre isso
algumas conjecturas.
O convénio de Bergara foi, em grande parte, obra do ilustre
caudilho da liberdade
espanhola; ele incorreu ultimamente no desagrado do
ministério Peres de Castro pela publicação da célebre
carta do brigadeiro Liñage, e não me admiro que o
nosso governo, para fazer a corte ao gabinete de
Madrid, quisesse que também no nosso discurso da
coroa o general Espartero expiasse aquele grande
pecado, cometido contra a ordem, que felizmente
rege ambas as nações. Nem é isto muito inverosímil,
se atendermos a que o ministério de 26 de Novembro
também se diz ser feitura da
influência de Peres de Castro.
O Times fez a este respeito revelações importantes.
O ministério espanhol apressou-se a desmenti-las; o
nosso, porém, conservou a tal respeito na imprensa a
mudez que ostenta no parlamento, porque a imprensa do
governo é só empregada em doestos e calúnias, e não
sabe satisfazer as conveniências e necessidades do
sistema representativo.
Ainda mais: o ministério desnaturou o convénio de Bergara,
para afirmar uma falsidade, e com ela fazer uma
injuria ao nosso exército. É um facto, resultante
das participações oficiais, que o estado do Algarve
melhorou antes dos últimos sucessos de Espanha; é um
facto que tudo ali deve ao zelo dos chefes, e à
disciplina e constância dos soldados; e esta
campanha, se não apresenta feitos gloriosos, é rica
de trabalhos e privações.
O Sr. ministro do reino estranhou o meu zelo pelos ditos do
exército, e emprazou o meu voto para apoiar as
medidas que lhe fossem favoráveis.
Mas que medidas são essas? Não as vejo
apontadas no discurso da
coroa, e isso que censuro. Referir-se-á S.
Ex.a ao aumento de 400 contos, que para a despesa do
ministério da guerra
se pedem no orçamento? Todos nós sabemos que esta
soma é um acréscimo à dotação dos rebatedores, de
quem nunca se esquece um governo dissipador.
Entre o ostentoso aparato de providências exigidas e
anunciadas sobre todos os ramos de serviço público,
como não mereceu atenção ao governo a contabilidade
e a instrução desse exército, os códigos de suas
leis obscuros e anti-nómicos, o regulamento de seus
acessos ainda mal definido, finalmente os aperfeiçoamentos
razoáveis da instituição
militar? Senhores, o ministério não deu ao exército
nem uma recordação honrosa, nem um testemunho de
solicitude.. que digo eu? nem uma palavra!
O Sr. ministro dos negócios estrangeiros quis coonestar esta
falta, alegando que doutras repartições se não
fazia menção no discurso da
coroa, mas nem esta asserção é exacta, nem,
sendo-o, era concludente. Que tem de comum o exército,
instituição social e política, por exemplo, com a
Alfândega das Sete Casas ou como Terreiro do Trigo?
O governo inglês lançou mão de dinheiro que nos pertencia,
para pagar dívidas que nós não havíamos
reconhecido. Tão irregular foi este procedimento, que
esse governo encontrou entre os seus a resistência da
probidade e da justiça. As pessoas, debaixo de cuja guarda estavam essas
somas, recusaram-se a entregá-las pelas ordens do seu
governo, declarando que tais fundos nos pertenciam, e
que só nós podíamos dispor deles.
Este atentado grosseiro e usurário do governo inglês não
se acha mencionado no discurso da
coroa.
O governo inglês, com desprezo manifesto do direito das
gentes, com infracção revoltante dos tratados
existentes, escandalizou a Europa como famoso bill,
que fez passar contra a nossa navegação em seu
parlamento. O ministério comunica-nos este
acontecimento num tom narrativo, como se fora a história
de uma negociação feliz.
O brigue Columbine captura, saqueia e mete a pique os
nossos navios nos mares de África, e o ministério
empenha todas as suas faculdades retóricas para
estigmatizar este acto, afirmando categoricamente que
ele não pede ser filho de instruções do governo
inglês.
Esta asserção é importante; o ministério repetiu-a na
relação oficial, que publicou, das últimas ocorrências
na costa de Angola, e o Sr. presidente do conselho de
ministros expressamente declarou que o governo inglês
nada tinha com aqueles procedimentos, que todos eram
filhos dos excessos dos oficiais da
marinha britânica.
Se isto assim é, esses oficiais andam em perfeita pirataria,
e o governo inglês nos agradecerá que com as nossas
pequenas forças navais, que para tal empresa são de
sobejo, castiguemos aqueles de seus súbditos, que
abusam do poder que o seu país lhe conferiu, para
comprometeremos interesses e a dignidade dele.
Destas observações deduzo eu: primeiro, que o ministério
se fez advogado do governo inglês, e que proclamou a
sua inocência em actos de que ele só é culpado;
segundo, que regulou as suas queixas, não pela
gravidade das ofensas, mas pela facilidade em obter
desagravo delas.
Com efeito, uma interpretação favorável a alguns artigos
das pautas, de que o Sr. ministro da fazenda já deu
exemplo; a relaxação dos regulamentos da s alfândegas,
que o mesmo Sr. ministro já prometeu; e, finalmente,
os interesses dum futuro tratado comercial, valem a
pena de tirar por algum tempo o comando a um capitão
de marinha, indemnizando-o secretamente das perdas,
que com isso houver de sofrer.
No meio deste esquecimento de nacionalidade, desta frouxidão
de linguagem no desagravo do país, o discurso da coroa, apartando-se do estilo usado em tais documentos,
espraia-se num desenvolvimento de medidas reaccionárias,
que sem remediaremos defeitos da
legislação pulverizam todas as instituições
liberais.
Estes dois pensamentos de humilhação para como estrangeiro,
e de destruição de todos os princípios populares,
estão inuma e horrivelmente ligados.
Deixai o país livre no júri, livre na uma, livre nas
administrações locais; deixai seus braços soltos,
sua boca sem mordaça, seu peito em grilhões, e
depois ide, se podeis e quereis, fazer dele oblação
ao estrangeiro; ide, se podeis e vos atreveis. Não,
que assim é impossível! Não, que um só golpe de
seu braço vos lançaria por terra, envoltos na
vergonha de vossos projectos! Para sujeitar o país ao
jugo estrangeiro, é mister primeiro subjugá-lo com
leis duras, e anular sua vontade nos negócios públicos.
Todas estas medidas restritivas são pois uma operação
preparatória para a questão estrangeira; são o
assassinato do país para dispor do seu cadáver.
Quereis vós conhecer e avaliar uma prova desta verdade? A 15
de Fevereiro de 1839 escrevia Lord Howard a Lord
Palmerston haver dito ao visconde de Sá da
Bandeira «que Portugal seria denunciado como
protector do tráfico de escravos, e que os discursos
mais injuriosos contra a nação e o governo português
iriam sem resposta por todas as partes do mundo,
enquanto as réplicas que nas cortes portuguesas se
fizessem contra a Grã-Bretanha, não seriam ouvidas
ou lidas fora de Portugal.» Abre-se a discussão da
resposta ao discurso do trono; é cegado o
momento de fazer essas réplicas; é cegado o momento
de desafrontar o decoro nacional, e o ministério,
desejoso de que se realizasse a promessa de Lord
Howard, empenhado em que as calúnias do governo inglês
não fossem desmentidas, solicito por que o nosso nome
se conservasse infamado por toda a parte, interessado
em que a nossa voz morresse dentro destas paredes,
manda apreender arbitrariamente grande número das
imprensas empregadas na publicação de jornais, que
advogavam a causa do país!
O ministério já aqui foi increpado por este inaudito
procedimento, e ressentiu-se por o haverem comparado
como atentado de Polignac. Eu também não acho exacta
a comparação; porque o procedimento do ministério
francês foi menos cobarde e brutal: fez um manifesto
contra a imprensa: declarou-lhe a guerra, confessou o
seu intento. Mas o nosso governo assassina-a traiçoeiramente
e esconde a mão criminosa, pois lança toda a
responsabilidade de tais actos sobre um poder
estranho, que ele mesmo impeliu a estes excessos,
sujeitando os juizes à tirania das transferências!
Mas o nosso governo cai de assalto sobre a imprensa,
corrompendo para isto um poder político e torcendo o
sentido das leis! E, deste modo, liga ao horror do fim
a vileza e malignidade dos meios, porque a mais
maligna e vil de todas as tiranias é, segundo a frase
de um escritor conceituoso, a tirania surda
exercida em nome da legalidade.
Eu disse que os projectos do governo, a que se dão nome de
organizadores, eram o assassinato do país, para
depois se dispor do seu cadáver. Sim, do seu cadáver!...
Porque a nossa nacionalidade morreu, e nós juntamos
à vergonha desta situação o ridículo de a
desconhecermos!
Estamos aqui reunidos, enquanto um firman do governo
inglês não cassa o nosso mandato; os nossos juizes
vestem suas togas, ocupam suas cadeiras, enquanto o
governo inglês não restringe sua jurisdição, e não
chama aos seus tribunais os súbditos portugueses; os
nossos soldados levantam com ufania suas armas, a
nossa bandeira tremula ainda entre nossas falanges,
enquanto o governo inglês não põe aos pés duns
poucos de oficiais seus os brios do nosso exército. Vós
mesmos, ministros da
coroa, conservais o poder enquanto não
resistirdes às exigências de quem vo-lo conferiu, e
a filha de nossos reis, quando aprouver à Inglaterra,
verá seu cetro despedaçado às mãos do governador
da Jamaica,
sobre as prerrogativas de cuja espada nós ouviríamos
então certamente as mesmas dissertações, que hoje
se nos fazem sobre as prerrogativas da
coroa!
Sim, senhores, a coroa da
rainha não tem uma protecção leal da
parte do governo inglês, porque eu sei que
Lord Palmerston disse mais de uma vez que muito
desejava em Portugal o proscrito Miguel, e não sei
mesmo se este dito do ministro inglês está exarado
em algum documento oficial (Alguns membros do lado
direito e o Sr. ministro do reino emprazaram a orador
para declarar se esta comunicação lhe havia sido
feita pelos actuais ministros, e qual era o documento
a que se referia).
Sr. presidente, comunicações desta natureza nunca se
recebem dos ministros da
coroa, e os receios manifestados pelo Sr.
ministro do reino de que elas fossem atribuídas a
algum membro da actual
administração, denunciam em S. Ex.a a convicção do
pouco crédito de que o seu ministério se julga
revestido. Se só os ministros da
coroa pudessem fazer revelações diplomáticas,
mal iria às oposições. Não asseverei positivamente
a existência de documento algum, em que o dito de
Lord Palmerston esteja consignado; disse somente que não
sabia se um tal documento existia, e a este respeito
guardarei também a minha reserva diplomática.
Continuo.
Sim, senhores, nós vivemos vida de homens livres atados ao
cepo da escravidão,
e julgamo-nos nação independente, quando talvez
dentro em pouco só gozemos da
regalia de pagar tributos e do prazer de os
vermos repartir pelos filhos do orçamento!
Ainda a sessão de ontem nos deu sobejas provas da
perdição da
nossa nacionalidade, e algumas têm tanto de
deploráveis como de burlescas.
O Sr. Gorjão perguntou ao Sr. ministro dos negócios
estrangeiros se o tratado, que s. Ex.a anunciou como
provável com a Inglaterra, seria feito sem mediação.
Que o ilustre deputado por Santarém, cuja diplomacia
não é a mais ortodoxa, fizesse uma tal pergunta com
a aparência de grande importância, não admira; mas
que o Sr. ministro dos negócios estrangeiros,
encanecido no serviço diplomático, respondesse com
grande satisfação, e como quem se inculcava salvador
do país, que tal tratado se faria sem mediação, e
que um jornal semi-oficial escrevesse hoje que esta só
declaração acabava a questão estrangeira, isto é
de tal modo miserável que provocaria riso, se nos não
devesse envergonhar. As mediações de nação para nação
são uma praxe, um estilo diplomático que nada
significa. Agora e sempre, nações pequenas e grandes
recorreram às mediações, sem julgarem que daí lhes
proviesse algum desaire.
Em quase todos os tratados que temos feito tem
sido mediadora a Inglaterra, em alguns a Espanha, e
mesmo a França; ainda há pouco esta mesma nação
aceitou a mediação do comodoro americano na questão
com Buenos-Aires; e os assuntos políticos do Oriente
estão entregues agora à mediação das três grandes
potências; cm uma palavra, apenas há alguma negociação
diplomática em que se não tenha empregado este meio.
Que se pode pois dizer da
nacionalidade de um país, cujo ministro dos
negócios estrangeiros a julga salva porque trata, sem
recorrer a mediações? E já que S. Ex.a se inculcou
cavaleiro da nossa
nacionalidade, emprazo-o para que me responda se
tenciona fazer algum tratado com a Inglaterra, antes
que seja revogado o bill. Esta cláusula é um
pouco mais importante do que a mediação, e é de
crer que S. Ex.a a não esqueça.
O mesmo Sr. ministro asseverou que o estado de relações com
a Inglaterra era pior do que o estado de guerra, e
depois fechou um período dizendo que as guerras se
acabavam às vezes por tratados desonrosos. Ora se as
guerras, digo eu, acabam às vezes por tratados
desonrosos, por que tratados acabará um estado pior
do que a guerra? Eu creio que estas observações de
S. Ex.a foram uma insinuação delicada do desfecho,
que devemos esperar, das suas negociações pendentes
com a Grã-Bretanha. Esta insinuação foi talvez
imprudente, mas é também uma prova da
pouca vida que tem a nossa nacionalidade.
As exigências do governo inglês, que retardaram a conclusão
do tratado para a abolição do tráfico da
escravatura, são sabidas, certas e determinadas.
Ninguém se atreve a negar que elas sejam extraordinárias
e infundadas; a minoria da
comissão redigiu, pois, o seu artigo fazendo a
elas uma referência directa; a maioria substituiu a
esta redacção a palavra algumas, e da força
desta expressão deduz-se ou que há exigências do
governo inglês, que não são extraordinárias e
infundadas, e nós queremos saber quais são, para
as confessar por tais, ou que algumas exigências,
posto que infundadas e extraordinárias, não
retardaram a conclusão do tratado, e então o ministério
transacto acedeu a elas; e neste caso ainda precisamos
de saber quais foram, para podermos julgar a
administração de 18 de Abril.
Uma explicação a tal respeito
é já indispensável, depois que os Srs. ministros
dos negócios do reino e dos estrangeiros puseram em dúvida
a necessidade da
aprovação do corpo legislativo para o tratado
da abolição
do tráfico da escravatura,
porque era este um dos pontos questionados com a
administração transacta, e a escusa de tal aprovação
uma condição proposta pelo governo inglês.
Nós reputamos todas as exigências do governo inglês extraordinárias
e infundadas, não só consideradas em si, mas em
relação umas as outras. O governo inglês exigia que
nós declarássemos pirataria o tráfico da
escravatura. Mas a pirataria pelas nossas leis
tem a pena de morte e assim o governo inglês
consentia que nos aplicássemos a este crime as penas
mais brandas, que agora na legislação inglesa lhe são
aplicadas. Ora esta reforma nas nossas leis não se
podia fazer sem intervenção do corpo legislativo: e
o governo inglês exigia que o tratado fosse
ratificado em quatro semanas. Em tão curto intervalo
nem as cortes se podiam reunir. Logo o que o governo
inglês queria conseguir pelo complexo destas exigências
era, pelo menos temporariamente, a faculdade de
enforcar portugueses.
O governo inglês queria que nós fizéssemos um tratado
perpetuo para a abolição do tráfico da
escravatura, e recusava-se a nomear, no preâmbulo
desse tratado, todos os nossos estados. Instado para
nos garantir as nossas províncias ultramarinas, cuja
tranquilidade e fidelidade à metrópole podiam ser
prejudicadas pela abolição repentina do tráfico, não
quis conceder esta garantia por mais dois anos. Logo o
que o governo inglês queria, pelo complexo destas
estipulações, era apoderar-se das nossas possessões
ultramarinas, porque a garantia que ele estipulava
acabava no prazo em que ela era mais necessária.
A insólita reserva do ministério, e muito mais da
maioria da comissão em pronunciar seu juízo
sobre estas exigências, é uma prova da
pouca vicia que tem a nossa nacionalidade.
Mas, senhores, esta ficção de nacionalidade será um estado
transitório, filho das nossas actuais desavenças com
a Inglaterra, ou efeito de uma situação antiga para
com aquele governo, um sintoma do corrosivo, que há
muito tempo rói as entranhas do país? Ah! senhores,
a nossa ignominia, a nossa miséria, o nosso
abatimento datam das nossas ligações com a
Inglaterra! É um fado de baixeza, com que os governos
daquela nação têm premiado nossa fidelidade e
nossos sacrifícios pela sua honra e pelos seus
interesses!
A questão, assim encarada, demanda mais longos
desenvolvimentos; mas e assim que ela deve ser
estabelecida e tratada. Eu vou ver se preencho esta
indicação: em tempos, em que a irreligião da
nacionalidade tem de apodrecer muitos corações, façamos
ao menos este exercício penitenciário,
recordando-nos das injúrias, dos vexames, que devemos
aos nossos amigos. E com isto também responderei a um
discurso grego e romano, poético e prosaico,
terrestre e marítimo, um discurso altamente
administrativo e profundamente diplomático, cujo mérito
consistiu na repetição de uma trivialidade tratando
a Inglaterra de nossa antiga e fiel aliada, mérito
que de nenhum modo compensou o cansaço do orador e o
enjoo da assembleia.
Eu deixo os tempos, em que as nossas relações com a
Inglaterra não tiveram um carácter de regularidade e
permanência, que pudessem formar um sistema diplomático
digno de análise, e próprio para fundamentar um juízo.
Começarei pois as minhas observações desde o
reinado de D. Fernando I.
Este rei fraco e versátil tinha uma filha formosa…
O SR. GARRET: Não
era formosa.
O ORADOR: - Não seria: julguei que fosse contra as
prerrogativas da coroa chamar feias às princesas...
Tinha uma filha, como dizia, o nosso fraco e versátil
rei Fernando I, e prometia a mão dela a todos os príncipes,
e per isso com todos eles fazia e desfazia alianças.
Afinal ajustou-se o casamento com el-rei de
Castela, e as estipulações desta aliança eram-nos
vantajosas, podendo, em virtude dela, reunir-se na
dinastia portuguesa a coroa de Castela. Nesta negociação
não teve parte a rainha D. Leonor, que meditou logo
contrariá-la. Na casa de Lencastre suscitaram-se
pretensões à coroa de Castela, e a mão da princesa
Beatriz foi logo prometida ao duque inglês, e com ela
a ajuda de nossos braços para conquistar o trono de
Castela. Estes recíprocos empenhos estipularam-se no
tratado de 1372, e o devasso João Fernandes Andeiro
foi o seu negociador.HotwordStyle=BookDefault;
Notai,
senhores, que ligado ao primeiro tratado com a
Inglaterra, aparece o nome mais antipático ao país:
e os princípios desta aliança como que foram logo
sentenciados pelo rancor do povo, nos tratos que ele
deu depois ao diplomata que a encetou.
Em virtude do tratado de 1372 começou a guerra. Os ingleses
desgostaram-se em breve das fadigas da campanha;
depois de vários desastres ajustou-se a paz, e para
fazer cumprir os seus artigos tão pouco ajudado foi o
rei Fernando pelos seus aliados, que teve de cometer a
sua espada a execução do tratado. El-rei de Castela
afinal houve-se com lealdade por medo dum desafio.
As forças inglesas tantos flagícios fizeram em nossos
campos, tantos distúrbios em nossas cidades, que a
animadversão pública se levantou contra elas, e para
nos livrarmos de tão impertinentes hospedes se
estipulou, no tratado de paz como rei de Castela, o
transporte deles para a sua filha.
Há pois quase cinco séculos que os ingleses negoceiam com
as mãos das nossas princesas, que vem ao nosso território
combater pelos seus interesses, que arrastam nossos
soldados a pelejar pelo seu engrandecimento, e que
vexam nossas povoações com suas violências; há
quase cinco séculos, finalmente, que nos excitam a
guerra, e que nos desamparam na paz.
A nossa bandeira tremulou nos mares de África; ali a espada
de nossos capitães avassalou-nos régulos,
conquistou-nos terras, e assim ficamos senhores dum
novo e rico manancial de comércio. os ingleses, como
nossos fiéis aliados e sinceros amigos, não nos
quiseram deixar desfrutar sós o resultado de nosso
esforço e espírito aventureiro; seus navios começaram
a frequentar os portos de África, e a partilhar do
comércio daquelas possessões. Isto foi considerado
como uma verdadeira intrusão, e deu origem as mais
serias desavenças e justas queixas da parte dos
portugueses. Para obviar a estes inconvenientes, a
rainha Isabel negociou connosco o tratado de comércio
de 1571, onde se acham estas palavras: Ut perfecta
sit amicitia, et liberum utrimque commercium.
Esta mesma rainha Isabel, a quem nunca faltou ferro para se
vingar das suas rivais e dos inimigos da sua coroa,
com manifesta violação do tratado, que mencionei,
com quebra de todos os princípios do direito das
gentes, só porque seus súbditos se lhe queixavam de
que sofriam violências e pilhagens no comércio da
costa de África, feitas pelos portugueses, mandou
formar uma comissão para julgar estas reclamações,
ordenando que fosse paga a sua importância pelas
propriedades, que nossos negociantes possuíssem na Grã-Bretanha.
Há quase três séculos, senhores, que os ingleses, debaixo
do titulo de nossos amigos, procuram arruinar nossos
interesses; há quase três séculos, que nos pregam a
doutrina da liberdade de comércio, que nunca
seguiram; há quase três séculos, que mandam julgar
pelos seus tribunais as reclamações que seus
concidadãos fazem contra nós, e que se assenhoreiam
das nossas propriedades para satisfazerem essas exigências!
Notai,
senhores, a homogeneidade do procedimento do governo
da rainha Isabel e do da rainha Vitória; e pasmai
desta analogia histórica! Em 1573 a rainha Isabel
manda dispor da propriedade portuguesa para pagar as
reclamações dos negociantes ingleses da costa de África;
em 1039 a rainha Vitória manda dispor dos nossos
fundos para pagar as reclamações de Sir John Myl
Doyle.
Tais
eram as nossas relações comerciais com a Grã-Bretanha,
quando o moço D. Sebastião, vítima duma intriga
diplomática e dos erros de sua educação, foi deixar
em África, com a flor de nossos guerreiros e com as
esperanças de sucessão, os penhores da nossa
independência. A nossa nacionalidade, ferida
mortalmente na batalha de Alcácerquivir expirou nas mãos
dum eclesiástico, cujo animo, índole e hábitos eram
muito inferiores a grande missão de segurar coroa
vacilante.
Portugal
foi no fim unido a Espanha, e esta uma o foi a morte
do comércio e da influência inglesa no nosso país.
Saída dos nossos portos, a armada invencível
assoberbou as costas da Grã-Bretanha, e o princípio
taxativo, sempre predominante em Espanha, vexou o seu
comércio, que até ali gozava as franquias que nossos
tratados lhe concediam.
Quando o trono popular de João IV se levantou de entre os
piques e machados dos anarquistas do largo da Sé,
desses anarquistas que têm sagrado mais tronos do que
o direito divino, Portugal, saído do domínio
estrangeiro, apareceu fraco, abatido, roubado, e
desprovido diante duma Europa nova, da Europa que se
tinha engrandecido durante o longo sono de nossa
servidão.
Na Inglaterra fervia a luta dos princípios políticos e
religiosos, e todos os elementos sociais se dispunham
a tomar uma nova organização. Estas lutas as vezes
gastam a vida dos povos e extinguem o seu poder,
outras vezes remoçam-nos, validam-nos, e depois de
longas enfermidades dão-lhe, como por encanto, a saúde
e a força da juventude. As revoluções de Inglaterra
tiveram esta sorte; custaram sangue e mortes, mas
criaram uma nação, de cujo exorbitante poder nós
somos agora a mais nobre e deplorável vítima. A
Holanda tinha criado a sombra da sua constituição um
grande poder marítimo; seu pavilhão dominava todos
os mares, e tremulava afincado em todas as partes do
mundo conhecido. A Haya era a sede da diplomacia, e a
árbitra dos destinos europeus. Em França já começavam
a raiar as luzes que enobreceram o reinado de Luís
XIV, e principiava a criar-se esta força de concepção
governativa, que depois desfechou nos mais gigante cos
projectos. Finalmente toda a Europa entrava numa nova
era de força e vigor: e nós, diante deste século
novo, apresentamo-nos pequenos, mas atrevidos,
mostrando nos fragmentos duma coroa estrangeira a
alforria da nossa nacionalidade.
O cometimento da revolução de 1640 foi sem duvida audaz;
mas não podia a sua obra consolidar-se só pela força
de nossos braços, e o trono de João IV pediu a
Europa a sanção de seus direitos. Aqui nasceu uma
sede de negociações e tratados com os ingleses, que,
se nos asseguraram até hoje a dinastia da casa de
Bragança, arruinaram, é força confessá-lo, a nossa
prosperidade.
Ainda no reinado de Carlos I estipulámos o tratado de 1642,
e, a troco do reconhecimento da nova dinastia,
concedemos a Inglaterra entre outras vantagens a
franquia de nossos portos da Europa, a extinção de
todos os monopólios de comércio, a liberdade de seu
culto, a segurança de suas propriedades e a restrição
dos confiscos da inquisição sobre os bens
portugueses hipotecados a credores ingleses. E notai,
senhores, que no artigo 4.º deste tratado se repõem
no pé em que se achavam antes da união com a Espanha
as nossas relações comerciais com a Inglaterra;
estipulação esta altamente significativa, e que reúne
em si os dados para a resolução de grandes problemas
políticos.
Há, pois, quase dois séculos, senhores, que os ingleses
alcançam de nós concessões repugnantes a natureza
do nosso governo; há quase dois séculos, que os
ingleses revogam nossas leis e nossos usos em proveito
seu: há quase dois séculos, que os ingleses procuram
a entrada de nossos portos como objecto 4e grande
interesse; há quase dois séculos, que eles
diligenciam a extinção de todos os privilégios
protectores de nossas indústrias!
Por estes tempos D. Francisco de Sousa Coutinho, este Atílio
Régulo da diplomacia portuguesa, arredava por um
engano político da cidade de Pernambuco uma armada
holandesa, e escrevia a el-rei seu amo: «Senhor,
salvei-vos Pernambuco, prometendo que vós o
entregareis ao inimigo; aproveitai-vos deste engano
para o abastecer de armas e homens, e eu ponho nas
vossas mãos a minha cabeça, por empenhar em vão a
vossa palavra». Esta devoção do diplomata português
desagradou ao governo da Haia, e as instancias
repetiram-se para que ele fosse retirado. Enfim, estas
instâncias foram atendidas, e António de Sousa
Macedo foi substitui-lo. Este homem também era
português; os interesses do nosso país eram os
mesmos; ele adoptou portanto a política do seu
antecessor, e o governo holandês não tardou a
queixar-se de que lhe tinham mudado a pessoa, mas não
o ministro.
Ah! senhores, se esta política de iludir as instâncias do
estrangeiro, de galardoar com provas de confiança os
ministros beneméritos; se esta política de
satisfazer as exigências da diplomacia, mudando-lhes
as pessoas, mas nunca os ministros; se
esta política enérgica e prudente, autorizada como
exemplo do augusto chefe da casa de Bragança,
acreditada com a salvação da sua coroa, nunca
desamparasse os conselhos do mais nobre, mais
virtuoso, e mais augusto ramo desta dinastia
nacional!... Notai, senhores, esta confrontação histórica,
e moralizai-a como ela merece...
Quando a cabeça do infeliz Carlos I se inclinava já para o
cepo ensanguentado das revoluções da Inglaterra, a
marinha britânica, lutando entre a lealdade monárquica
e o princípio revolucionário, desmembrou-se,
seguindo diversos partidos e tomando por isso
diferentes destinos. A parte fiel a realeza, saindo
dos portos de Holanda para fugir as perseguições do
protector Cromwell, entrou acossada do tempo pela foz
do nosso Tejo, e pediu a protecção das nossas leis e
da nossa hospitalidade. Uma esquadra da republica
bloqueou Lisboa, e pediu a entrega dos rebeldes. Que
respondemos nós a esta feroz exigência? «Não
queremos, porque o infortúnio achou sempre amparo na
nossa terra; porque nós não atraiçoamos quem se
confia aos nossos lares!» O almirante inglês não
ousou penetrar para a quem das nossas fortalezas, e
vingou-se da nossa firmeza fazendo uma rica presa em
nossos navios. Deste modo os ingleses acrescentaram
suas riquezas, contentaram sua ambição; nós demos
um exemplo de virtude, e acrescentamos mais uma página
brilhante a nossa história.
Este procedimento do protector foi uma ofensa flagrante dos
princípios da neutralidade, e uma infracção
manifesta do art. 19.º do tratado de 1642, que
determinava que «e alguma coisa se empreendesse,
perpetrasse ou fizesse por alguma das partes
contratantes, contrário a força e efeito do tratado,
isto não dana direito ao rompimento das hostilidades,
mas simplesmente a uma justa satisfação dada pela
parte infractora.» E deve notar-se que além disto os
ingleses, a despeito do referido tratado, forneceram
sempre armas aos nossos inimigos castelhanos.
Estes acontecimentos, o poder do protectorado e a debilidade
da nossa monarquia nascente, tomaram necessária a
renovação de estipulações de aliança e de comércio
com o novo governo de Inglaterra, e negociou-se o
tratado de 1654, que em cada um dos artigos atesta a
prepotência de nossos aliados e a miséria da nossa
fraqueza. Neste tratado renova-se e revalida-se tudo o
que se havia contratado no anterior, e de mais
estabelecem-se as conservatórias, concede-se aos
ingleses a franquia do comércio das colónias, e
entregam-se as desavenças ocorridas entre negociantes
ingleses e oficiais da alfândega a decisão de árbitros
ingleses, colhidos pelo governo ou cônsul inglês; e
finalmente obriga-se Portugal a pagar todas as dividas
contraídas entre o nosso governo e súbditos
ingleses, e por um princípio de bela reciprocidade
sujeita-se a restituição toda a propriedade britânica,
que se havia apreendido em represálias da pirataria
do almirante Blake.
Há quase dois séculos, senhores, que os ingleses tomam
arbitrariamente os nossos navios; há quase dois séculos,
que os ingleses castigam como roubo a nossa virtude; há
quase dois séculos, que os ingleses infringem
descaradamente os tratados para nos vexarem; há quase
dois séculos, que os ingleses, depois de nos
injuriarem, nos obrigam a estipulações desonrosas; há
quase dois séculos, que os ingleses sujeitam nossos
concidadãos ao árbitro de seus juizes; há quase
dois séculos, que se declaram legítimos senhores
daquilo que contra direito houveram de nos, e nos
pedem o pagamento do que devemos!
E quando nós assim favorecíamos o comércio inglês com
concessões tão vantajosas, Cromwell prejudicava
altamente os interesses da nossa marinha mercante,
promulgando o celebre «acto de navegação», base
fundamental do poder marítimo da Inglaterra: esse
acto de navegação, de que o sistema continental de
Napoleão é apenas uma paródia; esse acto de navegação,
que o protector decretou principalmente para castigar
a Holanda da resistência que opunha a revolução
popular da Inglaterra; esse acto de navegação, que nós
deveríamos copiar agora, para nos desforrarmos das
resistências, que a Inglaterra tem oposto a revolução
popular de Portugal!
Pela morte de D. João IV as pretensões da Espanha tomaram
novo vigor. O gabinete de Madrid julgou que os brios
da nossa nacionalidade iam ao túmulo com o cadáver
do nosso rei. A França era inimiga da nossa revolução;
a influência do cardeal Mazarino entretinha esta
hostilidade, e a corte de Paris era inspirada tal política
por algumas vistas interesseiras e por intrigas
mulheris. Afinal na paz dos Pirenéus, a França por
seus enviados propôs abertamente a conveniência duma
restauração em Portugal deixando apenas a casa de
Bragança um vice-reinado interino. O nosso
plenipotenciário respondeu a tão humilhante proposta
com lealdade e energia, e lá soou nas terras de França
esse primeiro não histórico, que tantos anos
depois foi repetido por outro português nas mesmas
terras diante do maior capitão do século! Ah!
senhores, quando aprenderemos nós também a dizer
não ao governo inglês?… Dentro em pouco a
morte do cardeal ministro e outras ocorrências
abrandaram o governo francês sobre as coisas de
Portugal, e a nova dinastia de Bragança contou de
menos um adversário. Então a política instintiva de
dominar Portugal e enfraquecer a Espanha, que a
Inglaterra tem sempre seguido. aproveitou-se deste
ensejo para segurar com menos embaraço os seus
interesses, segurando a revolução de 1640, que lhe
tinha aberto novamente a influência na Península.
Para isto estipulou-se o tratado de 1661.
E que concedemos nos a Inglaterra por este tratado? A mão da
princesa Catarina para o seu rei, princesa que não só
se era formosa, mas que podia ser esposa de Luís XIV:
a posse de Tanger, troféu glorioso de nossas
campanhas africanas: a cessão de Bombaim, hoje
importante capital de todos os domínios ingleses na
Índia: finalmente; boas somas de dinheiro, e o
direito a todas as conquistas, que das nossas terras
fizessem aos holandeses.
E a que se obrigaram os ingleses no mesmo
tratado? Obrigaram-se a defender-nos como a si próprios;
a segurar-nos as nossas colónias; a restituir-nos
todas as possessões que a Holanda nos tomasse depois
daquele tratado; e finalmente a restituir-nos a parte
das rendas e território de Columbo, quando esta ilha
por qualquer modo lhes viesse a mão. E como cumpríramos
ingleses estas estipulações? Escuso recordá-lo,
porque os factos aí estão bradando contra a sua
deslealdade e má fé!
Já que toquei na questão de Columbo, eu rogo aos ministros
que se expliquem categoricamente sobre o direito com
que nos julgam a esta reclamação. Tem-se escrito
tanto sobre este objecto; tem-se interpretado de tal
modo os tratados; o Corrojo, conhecido jornal
da diplomacia inglesa, e órgão semi-oficial do
governo, tem apresentado tão risíveis dissertações
sobre este assunto, que eu julgo necessário invocar a
autoridade dos Srs. ministros para fixar este ponto
controverso.
O tratado de 1661 acha-se julgado pelos ingleses em
importantes documentos. No discurso que Carlos II
pronunciou na primeira apertura do parlamento, depois
de concluído esse tratado, dando parte do ajustado
casamento com a princesa de Portugal, o rei diz «que
o seu conselho privado julgava aquela aliança preferível
a todas quantas lhe cometeram, e que esperava que as câmaras
seguissem a mesma opinião.» Depois disto o chanceler
fez um longo discurso, para provar as vantagens da
aliança com Portugal, e analisou, ridicularizando-os,
todos os partidos que a diplomacia tinha oferecido ao
seu rei.
O tratado de 1661, posto que desagradasse a Espanha, não a
fez desistir de seus planos: a guerra continuou por
algum tempo, e com sucessos. Os auxiliares ingleses
combateram a nosso lado, acompanharam-nos, e, se a
bravura dos soldados não prejudicou nossas operações,
a rivalidade dos seus chefes não lhes suscitou poucos
embaraços. A despeito deles, a vitória favoreceu-nos
no Amexial: as armas de D. João da Áustria caíram
aos pés dos nossos soldados, e grande foi a colheita
de pendões castelhanos. Aqui, Senhores, se levantou
uma espada portuguesa; aqui e enobreceu e fez célebre.
A munificência do rei enfiou então nesta espada uma
coroa de conde; nesta coroa, que atravessou dois séculos
sempre fiel, rebenta agora um florão ducal, e sobre
este florão esta um açor aberto com pólvora e
sangue. Esta espada sagrada para a independência e glória
do país, e todas as espadas tão nobres como esta, e
todas menos engrandecidas, mas tão patrióticas, e as
alabardas dos nossos sargentos, e as baionetas dos
nossos soldados, e os chuços dos nossos paisanos -
todas são do país, todas lhe pertencem! O pó dos
partidos não as pode enxovalhar, nem elas podem
dormir aos pés dum governo, que só vela para
comprometer a dignidade nacional! Sim, senhores, todo
o nosso exército, tão pequeno como bravo, tão pobre
como patriota, cerra os ouvidos à voz das facções,
para escutar as queixas da nação agravada. E nesse
exército há uma mocidade desinteressada e
cavalheiresca, em cujos corações as rixas políticas
não têm amortecido a luz da virtude, mocidade a que
eu me desvaneço de pertencer, e que como eu saiu das
escolas com as mãos ainda doridas das palmatoadas,
para ir tomar as armas a favor da liberdade; mocidade,
que comigo despreza as rabuges da velhice e o despeito
da obscuridade; mocidade, que só tem por timbre a
honra do país, e por glória e fortuna - morrer para
a conservar!...
Em Montesclaros, Aljubarrota da família Bragantina, outra
espada portuguesa abateu o orgulho de Castela, e o
trono de João IV ficou cimentado em cadáveres
portugueses.
Os ingleses não se deram em como cheiro da pólvora destas
duas grandes batalhas, e, apenas começada a guerra,
trataram logo de nos conduzir A paz. Queriam-se
desembaraçados para desfrutarem no Oriente o tratado
de 1661. empregando todas as suas forças para
conquistarem aos holandeses as terras, de que lhes havíamos
cedido nossos direitos. Além disto, contavam shilling
por shilling todas as despesas que faziam
na guerra com Castela, e sobre tudo queriam estorvar a
aliança da França, que já se inclinava para nós, e
que começava a ser infesta às pretensões
espanholas. A grande rivalidade com a França, que
depois desfechou com a guerra da sucessão, e o
crescente poder de Luís XIV já inquietavam a nossa
aliada. Por todas estas considerações, e por meio
dos mais astuciosos manejos, a Inglaterra levou-nos à
paz com a Espanha pelo tratado de 1668, tratado
inspirado ao gabinete de Londres por economia, por política
e por princípios de engrandecimento. Uma das condições
da paz foi a cessão de Ceuta, primícia de nossa glória
Africana; e os ingleses, que e tinham obrigado a
defender-nos como a si próprios pelo tratado de 1661,
e a garantir a integridade do nosso território, foram
os mesmos que nos obrigaram a uma paz feita A custa da
desmembração dos domínios da coroa portuguesa! E
eis aqui como os ingleses entendem e cumprem os
tratados!
Não foi adoptada sem oposição esta paz desonrosa, e o
partido do povo que então era poderoso, porque o
trono era feitura dele, como agora é também
poderoso, porque tem imposto ao trono por três vezes
o selo das suas armas, foi arrastado pelas intrigas e
pelas corrupções inglesas a adoptar a opinião
pacificadora. Então Roberto Southwell, negociador
inglês, comprou o Juiz do Povo; hoje que o povo tem
aqui muitos juizes, e que não são venais, Lord
Howard manda-os matar, - e o punhal é o censo! Notai,
senhores, ainda mais esta analogia histórica.
Assim, senhores, dentro do espaço de 28 anos negociamos com
todos os partidos de Inglaterra; com a monarquia de
Carlos I; com a república; como trono restaurado. E
encontramos sempre o mesmo empenho em defraudar nossos
interesses, em nos arrastar a estipulações ruinosas;
encontramos sempre, em vez de aliança, opressão.
A necessidade de distrair os espíritos assaz aplicados aos
assuntos políticos, e o desejo de abater o poder
crescente da França, levou as armas britânicas a
guerrear a sucessão do neto de Luís XIV ao trono de
Espanha. Nos também, com promessas de acrescentamento
de território e da aliança matrimonial da princesa
Teresa como pretendente da casa de Áustria, fomos
envolvidos por instigações da nossa aliada nesta
guerra desastrosa, e assignamos para isto, com os mais
coalizados, o tratado de 1703.
Vários foram os sucessos desta demorada luta:
durante ela algumas das nossas províncias foram
assoladas, e muitas praças de guerra destruídas.
Entretanto o nosso exército, num audaciosíssimo
cometimento, penetrou até Madrid. Quando principiamos
a guerra já a princesa noiva tinha morrido, e per
isso uma das condições do tratado era já impossível;
a paz fez-se, e nos ficamos possuindo as mesmas léguas
de terreno, de que até ali éramos senhores.
No mesmo ano em que assinámos o tratado de aliança de 1703,
negociámos outro de comércio, que se conhece
vulgarmente pela denominação de tratado de Methwen;
esse tratado, que arruinou a nossa indústria; esse
tratado, que destruiu a pauta proibitiva do conde da
Ericeira; esse tratado, fruto da venalidade de nossos
ministros, que tem servido de molde a todas as
estipulações comerciais, que posteriormente fizemos
com a Inglaterra, e que ainda hoje é objecto da sua
saudade!
Com as vantagens e riquezas que este tratado dava a
Inglaterra, meditou ela fazer face às despesas a que
pela guerra da sucessão ia sujeitar-se, e assim
negociou primeiro a ajuda de nossos soldados, e depois
o auxílio de nossos teres. Esta é a política de
Inglaterra connosco; tratado de aliança para a
ajudarmos a fazer a guerra, tratado de comércio para
contribuirmos para as despesas dela! Também em 1810,
como em 1703, houve dois tratados, um de aliança e
outro de comércio.
O tratado de Methwen, em virtude do qual admitimos as
fazendas inglesas de Ia, que até ali eram proibidas,
a troco dum favor de direitos diferenciais nos nossos
vinhos em relação aos franceses, foi julgado e
caracterizado pelos efeitos comerciais, que dele
resultaram, pela opinião dos negociantes ingleses,
pela discussão da sua imprensa e por ocorrências
parlamentares da maior importância.
O comércio de Inglaterra com Portugal, depois deste tratado,
subiu de 300.000 libras a um milhão sterlino. O número
de navios ingleses entrados nos nossos portos
quadruplicou; e um meeting de negociantes de Exeter,
reunido para julgar da conveniência das relações
comerciais com Portugal, adoptou a seguinte resolução:
«Que conservar intactas essas relações era ter
segura a prosperidade da Inglaterra, e que a infracção
do tratado de Methwen seria a sua ruína, porque
(diziam os negociantes ingleses) com grande custo e
acha entre nós moeda, que não seja feita com ouro
português.» Também a imprensa da oposição, que a
pena de Charles King ilustrava, demonstrou
minuciosamente as vantagens do tratado de Methwen, e
os esforços do Mercator foram de todo
confundidos por aquele hábil escritor. Finalmente,
depois da paz de Utrecht, quando, em consequência das
projectadas estipulações comerciais com a França,
que davam em resultado a destruição do tratado de
Methwen, e apresentou no parlamento de Inglaterra um bill
para a diminuição dos direitos dos vinhos
franceses, foi tal o número de petições e folhetos,
foi tão grande a instância dos oradores da oposição,
tão explicitas as demonstrações das classes fabril
e comercial, e tão terminantes as conclusões dos
inquéritos a favor da aliança comercial com
Portugal, que o bill foi rejeitado, apesar da
pertinácia do ministério, que estava cercado do
prestígio da paz que com a França fizera, e
rejeitado por um parlamento onde a corte exercia a
mais poderosa influência. Tão populares eram em
Inglaterra as relações com Portugal!
A condição dos direitos diferenciais para os vinhos
portugueses era uma estipulação indefinitiva, de que
a Inglaterra podia abusar, carregando tanto os vinhos
franceses, que os nossos, apesar de favorecidos, não
pudessem ter um amplo consumo, e ainda assim desta
pequena vantagem nos privou o seu governo em 1832.
Quando em 1761 e fez contra a Inglaterra a coalizão,
conhecia pelo Pacto de Família, fomos instados
pela França para nos unirmos a ela. A resposta que
demos a essa arrogante missão é histórica; recordá-la
só, é cobrir de vergonha a Inglaterra. Guarnecemos
praças, levantamos exércitos, e combatemos pela
causa da Grã-Bretanha. E que proveito tiramos de
todas estas fadigas? A perda da colónia do
Sacramento.
Quando a espada de Napoleão se levantou no meio da Europa
revolucionada, nós fomos levados a guerra pela nossa
aliada. A França contentava-se com a nossa
neutralidade. Pelo tratado de Badajoz nós éramos
obrigados a fechar os portos a Inglaterra, e ceder
Olivença à Espanha.o imperador, nestas e noutras
estipulações, só queria ganhar vantagem sobre os
aliados de Inglaterra para negociar uma paz favorável
aos aliados da França. Com efeito, na paz de Amiens,
depois de prolongadas discussões entre as duas partes
contratantes, depois de aceitadas e rejeitadas
diversas bases da negociação, os ingleses, para
ficarem com a ilha da Trindade, deixaram-nos sem
Olivença.
Em 1807 a nossa nacionalidade foi garrotada em Fontainebleau.
A nossa lealdade para com a Inglaterra levou-nos a
este desonroso sacrifício: o imperador só nos feriu
para cegar a sua rival. A bandeira tricolor tinha já
passado nossas fronteiras; a águia francesa quase já
assomava como um agouro de morte sobre as torres de
Lisboa, e o pavilhão inglês, arvorado no Tejo em 30
de outubro, levou para as terras do Brazil esse rei
benéfico, cuja coroa neste momento representava, não
tanto a nossa nacionalidade, como os interesses da Grã-Bretanha.
No bojo da nau, que conduzia a família de reis, iam já
as estipulações e decretos fatais, que deviam dar o
último golpe no nosso comércio e indústria; já ia
o tratado de 1810, esse tratado ignominioso, arrancado
no meio da angústia a um governo tímido, como e
arranca a bolsa a um viajante para resgate da vida.
Os ingleses queriam então Portugal sem governo, sem corte: o
nosso território era o seu arraial, o seu
desembarcadouro, o seu depósito de viveres e
recrutas, a sua base de operações. Precisavam dominá-lo
absolutamente para o poderem aproveitar para tais
usos. o Brasil era uma mina, que até ali não tinham
podido explorar a sua vontade: seu comércio não lhe
tinha sido até então completamente franqueado, e as
eventualidades da luta pendente obrigavam o governo
inglês a considerar o Novo Mundo como um refúgio em
suas últimas calamidades. os tratados de 1810 são a
expressão destes pensamentos.
Depois destes sucessos, sabido é como nos lançamos na
grande luta, que para a Inglaterra era de vida ou de
morte, na luta em que ela, ou teria de sucumbir, ou de
que colheria, como colheu, todos os frutos. Sabido é
como a flor da nossa juventude, o ouro de nossos
cofres, a paz de nossos campos, a gala de nossas
cidades, o sangue de nossos soldados, a devoção de
nossos povos, e empenharam pela destruição do poder
colossal do império. Sabido é como a Inglaterra
considerou pouco estes esforços, depreciou o valor
destes sacrifícios, e calou a gentileza de nossas
armas!
E, depois disto, a Inglaterra apregoa-se como salvadora da
nossa nacionalidade
ela que só combateu e nos fez combater pela
sua independência!! Ah! senhores, quanto melhor nos não
fora, jugo por jugo, tirania por tirania, a dessa
espada criadora de Napeleão, dessa espada portentosa,
debaixo de cujos golpes a Itália saiu do seu longo
entorpecimento, viu desenvolver em seu seio o génio
das artes, e fez pasmar depois seus legítimos
soberanos das maravilhas, que só a ausência de seus
estúpidos governos tinha ali produzido; dessa espada
portentosa, que aperfeiçoou as oficinas da Bélgica,
que a fez rival da indústria francesa, e que lançou
aí os germens desta nova nacionalidade, que a revolução
de Julho desenvolveu e sancionou! Sim, senhores,
quanto melhor nos fora a espada organizadora do
imperador do que o bastão desses procônsules
orgulhosos, que insultaram nossos brios militares, que
acenderam as fogueiras da inveja para nelas
queimaremos nossos capitães. e que, mais ferozes que
os inimigos, reduziram a cinzas todas as nossas fábricas?!
Depois da prolongada luta que deu à Inglaterra o império
dos mares, que a fez senhora de tantas possessões e
que estendeu tanto seu comércio e poder, nós, seus
constantes auxiliares, seus companheiros em todos os
perigos, e não poucas vezes os salvadores da honra de
suas armas, que proveito tirámos, que parte nos coube
no rico despojo desta batalha europeia?!
Perdemos a Guiana, de que a Inglaterra dispôs, sem sequer
nos ouvir. Tivemos uma soma de indemnizações
inferior à que alcançou a mais insignificante potência.
E nem e nos perdoaram as dividas da guerra, que foram
saldadas aos aliados do norte!
A memória destas injúrias não e apagou entre os
portugueses; recolheram-na em seus peitos, excitando
com ela seus brios e esforço, até que em 1820 rompeu
o grito revolucionário. Foi um brado de indignação
contra os ingleses; foi o estalar dos grilhões, que a
nossa aliada nos lançara, e que nós despedáçamos.
Quando em 1823 as armas francesas, ao mando da Santa Aliança,
vieram submeter a Espanha ao pesado cetro do ingrato
rei Fernando, a Inglaterra viu com ciúme esta invasão.
o ministro inglês esgotou todos os recursos da
diplomacia, todas as insinuações da amizade, todo o
vigor da lógica para dissuadir a França daquele
projecto: até a mediação ofereceu, e a mediação
foi rejeitada. Harcourt, separado dos embaixadores de
todas as potências, fez a corte ao governo
constitucional até aos últimos dias da sua existência
e vós sabeis, senhores, que cada passo dum embaixador
vale o pensamento dum governo. A fortuna coroou os
esforços liberticidas do gabinete francês, e a invasão
da Espanha ficou como um espinho no coração e memória
da Inglaterra. Em Portugal, a causa da liberdade teve
a mesma sorte que a constituição de Cadiz; a França
lucrou com isso alguma influência nos conselhos do
nosso rei. A Inglaterra meditou pois, desde então,
uma desforra pelos acontecimentos de Espanha, e um.
meio de segurar a sua influência em Portugal. Eis
aqui a origem da Carta: ela representa só um
interesse dinástico, e a influência inglesa nas suas
pretensões de desagravo e predomínio: o que nela
havia de real era a sinceridade do imperador que a
doou. E este imperador morreu - disse há pouco com
voz sentida o Sr. ministro do reino. Sim, morreu: e
seus apregoados amigos honram a sua memória
preparando sobre a sua campa as horrendas bacanais do
absolutismo! Lágrimas nossas (voltando-se para o
lado esquerdo) de saudade e respeito ao nosso
libertador; lágrimas, que sejam protestos de
defendermos a sua obra se alguém duvida que este é o
verdadeiro espírito dos acontecimentos de 1823 e
1826; se alguém julga cerebrina a explicação que
deles dei, ouça-se a tribuna da França e da
Inglaterra, que o seu testemunho é irrefragável em
tal assunto.
Em 1826, o talentoso Canning dirigia a pasta dos negócios
estrangeiros em Inglaterra. Tinha chegado do Brasil a
Carta portuguesa; levantou-se contra ela uma reacção
armada, e os nossos soldados insurreccionados
receberam acolhimento, protecção e armas no território
espanhol. Era cegado o momento para a meditada
desforra contra a França. Canning fez sair para
Portugal a expedição do general Clinton; e todos nos
podemos recordar das apreensões diplomáticas que
este procedimento da Inglaterra suscitou então
Canning, chamado neste ensejo a explicar no parlamento
a verdadeira situação da Inglaterra à face dos
acontecimentos de Portugal e do estado da Península,
depois de ter enumerado a série de tratados, que nos
ligavam àquela potência, depois de ter engrandecido
poeticamente o poder do seu país, tendo descrito a
posição da França, exclamou: «Não pensais vós
que a Inglaterra fica com isto compensada do agravo,
que experimentou, vendo a Espanha invadida por um exército
francês, e Cadiz bloqueada pelas forças navais da
mesma nação?» E mais abaixo: «Olhei a Espanha
debaixo de um outro ponto de vista: considerei a
Espanha e as Índias; chamei um novo mundo à existência
naqueles países, e equilibrei assim a balança do
poder; a França ficou carregada com todos os
resultados da sua invasão. Eu achei, pois, uma
compensação para a invasão da Espanha, porque
deixei A França todo o peso da sua obra, peso de que
muito se quereria desembaraçar, e que ela não pode
sofrer sem o queixume. É assim que eu respondo ao que
se disse sobre a ocupação da Espanha.»
Quereis, senhores, expressões de maior amargura e
ressentimento? Quereis maior prova de que a Inglaterra
tomou como um desaire a invasão da Espanha?
Estas vozes da tribuna inglesa ressoaram na França, e o
velho Chateaubriand considerou-as como uma alusão
pessoal: eram um epigrama ao grande acto do seu ministério.
Ele contrariou-as, e eis aqui o juízo que por esta
ocasião formou o ilustre competidor de Canning dos
acontecimentos de Portugal: «A ocupação de Portugal
pelos ingleses, que «pode ter algumas vantagens
considerada em geral, é, entretanto, para nos muito
incomoda, porque nos condena a ficar em Espanha. É o
casus fœderis da honra. Os franceses não sabem
recusar-se a seus encargos.» Falando do embarque das
tropas inglesas para Portugal, acrescentou: «Buscam-se
culpados: os espanhóis estão por traz da insurreição
portuguesa; se não são os espanhóis, são os
franceses. E porque não serão mesmo os austríacos?
Não está «D. Miguel em Viena? Naquele país não há
muito amor pelas cartas constitucionais. Por que
motivo não volta pois «O gabinete inglês a sua cólera
contra aquele governo? Por que motivo, senhores? Boas
razões haverá para isso, e são «estas certamente
as mesmas que fazem que o liberalismo inglês traje o
bonet da liberdade no México, e o turbante em Atenas.»
Este gosto de vestir a Inglaterra pelos figurinos da conveniência,
segundo os países e as estações, mereceu a aprovação
de Lord Palmerston, porque também agora o governo
inglês considera em Espanha como um grande feito a
revolução da Granja, e em Portugal como um grande
crime a do Rocio.
E que consequências devemos nos tirar de todas estas
confrontações históricas? Uma só, humilhante, mas
instrutiva: e que a França e a Inglaterra vêm de
contínuo ao território da Península disputar e
decidir as questões da sua rivalidade, que nossa
fortuna e destinos são sempre sacrificados aos seus
caprichos, e que para acabar este fado ignominioso é
indispensável atravessar na estrada dos Pirinéus a
espada do Cid, e assestar na torre de Belém o canhão
de Diu!
A expedição do general Clinton, depois de alguns passeios
militares, viu consumar-se a usurpação, e,
deixando-nos já nos pulsos as algemas da tirania,
desapareceu das nossas terras. Agora o governo inglês
exige que lhe entreguemos Goa em compensação das
despesas feitas per aquela força em Portugal. Eu rogo
aos Ss. ministros, que, quando julgarem conveniente,
hajam de informar a câmara e com efeito há algumas
notas do governo inglês sobre tal exigência.
O SR. MINISTRO DO REINO: - Respondo já; é uma insinuação
abominável contra o governo…
O ORADOR: - Não é insinuação, nem me refiro ao actual
ministério.
O SR. MINISTRO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS: - Ainda não achei
tais notas na minha secretária.
O ORADOR: - Pois tenha S. Ex.a a bondade de as procurar, que
eu lhe afianço que as há de encontrar.
Enquanto no cerco do Porto o poder constitucional não
representava um governo estabelecido, mas as
eventualidades duma campanha, o governo inglês
conservou sempre entre os dois partidos contendores
uma política dúbia e calculada, e talvez uma pena
imparcial não tarde a fazer revelações importantes
sobre esta parte da história das nossas relações
com a Inglaterra.
Repete-se sempre que o partido constitucional recebeu grandes
auxílios do governo inglês, e que este fora sempre
infesto ao governo tirânico do usurpador. Para não
cansar a câmara, abstenho-me de profundar a verdade
destas observações; mas os tiros da Terceira
aturdiram a Europa, e não podem deixar de ser
considerados nesta confrontação. Por que motivo, porém,
foi o governo inglês adverso ao governo do usurpador?
Porque este (é força confessá-lo! prezava a
dignidade do nosso nome, e resistia às sugestões
externas: era um governo duro, mas português.
Enforcava-nos, sim, mas por desembargadores
portugueses, com carrascos portugueses, e com cordas
portuguesas.
O SR. MINISTRO DO REINO: - Deus nos livre de tal
nacionalidade!
O ORADOR: - Eu faço os mesmos votos que S. Ex.a, mas antes
quero uma corda com honra do que uma pasta com ignomínia;
antes uma força por um tirano português do que o
poder por um embaixador inglês!
Agora, senhores, esse governo, cobrindo-se com uma ideia
nobre e generosa, em que ele não crê; rebuçando
suas vistas mercantis em expressões de filantropia;
promovendo à sombra dos interesses da humanidade o
emprego de seus marujos, o exercício de seus oficiais
de mar, a extensão de seu comércio e o consumo de
suas manufacturas; agora esse governo inglês,
recolhendo os votos sinceros feitos a favor da abolição
do tráfico da escravatura pela nação a que é
indigno de presidir, - converte a moralidade do seu país
numa especulação vergonhosa; e levado destas sórdidas
vistas, e de ofensas pessoais, insulta, enxovalha e
rasga, como um insolente pirata, a nossa heróica
bandeira, a nossa bandeira, debaixo de cujo influxo e
realizou primeiro o grande pensamento da civilização
africana; a nossa bandeira, diante da qual se abriram
as portas do Oriente; a nossa bandeira, que muitas
vezes obrigou o pavilhão holandês a servir de
mortalha aos seus almirantes; a nossa bandeira, que
ainda agora nos mares da Quina dá amparo e guarida
aos contrabandistas ingleses; a nossa bandeira, que, e
tremulando nas popas da forte esquadra que acompanhou
a família real ao Brasil para aí apodrecer em suas
enseadas, tivesse aparecido na batalha de Trafalgar,
talvez, com o formidável enlace das quinas
portuguesas e do leão ibérico, teria sepultado no
mar o cadáver de Nelson, e hoje não seria rota pelas
cobardíssimas balas do Columbine nem teria beijado as
águas do Oceano, em que até agora por mal ninguém a
molhou, sem elas estarem tintas como sangue de seus
inimigos!…
Por esta comemoração longa, verdadeira, mas dolorosa, das
nossas relações com a Inglaterra, conhece-se que
desde longo tempo nos temos sacrificado a uma ficção
de amizade nossos interesses, nossa prosperidade,
nossos destinos, nossa história, o sangue de nossos
filhos, a fama de nossos capitães, o poder de nossas
armas, e que o leão britânico tem abertas as garras
sobre a nossa cabeça com mais avidez do que a águia
russiana olha para a triste Constantinopla! Ah!
senhores, e para que nenhum princípio generoso e
santo fique sem gemer nesta questão, até a religião
de Cristo, a religião de nossos pães, a religião de
nossas vitórias, a religião das nacionalidades, se vê
abatida e humilhada aos pés do falso profeta, vendo
crescer, nas terras onde impera a sua lei, mais
patriotismo, mais virtude e mais dignidade, do que no
país, querido filho de sua escolha, objecto de seus
favores e teatro de suas maravilhas! Sim, agora mesmo
que o império de Selim II está jogado entre a ambição
das potências europeias agora mesmo que elas disputam
uma a uma a glória de o aniquilar; no meio de tantas
dificuldades, depois de tantos revezes, um jovem
turco, cercado de conselheiros experimentados,
enquanto seus inimigos maquinam a sua ruína, trabalha
assiduamente no plano de reformar o seu povo,
plantando entre as pedras áridas do despotismo
oriental a viscosa planta da liberdade do meio dia. E
nós?!... e nós?!... Não posso acabar a confrontação!
No meio de nossa miséria possuímos um grande tesouro. Foi a
Inglaterra que no-lo deu. É a colecção de suas
orgulhosas e insolentes notas. Legaremos a nossos
filhos este livro precioso, e quando a sentença poética
do filósofo de Ferney se começar a cumprir contra a
Inglaterra, eles a tomarão nas mãos como uma
bandeira de insurreição, e farão correr todo o
nosso povo para ajudar a despedaçar o manto
ensanguentado da Grã-Bretanha, que, aos brados de
vingança, seu repartido
nesse dia de justiça entre todas as nações que ela
tem oprimido. Então todo o povo português irá
cuspir sobre as lousas sepulcrais dos estadistas
covardes, que tiverem defendido mal a nossa dignidade,
se antes disto alguma furtiva explosão de brio
nacional, rompendo através de leis duras e de armas
pretorianas, não as tiver despedaçado e coberto de
terra!
Só uma grande revolução em Inglaterra pode apartar do
ciclo dos acontecimentos estas negras predições.
Só esse partido, que hoje está debaixo das
baionetas dos soldados e da corda do carrasco, só
essas virtuosas massas (é preciso autorizar a
frase, que até aqui tem sido uma senha de escárnio),
só essas virtuosas massas, derrubando uma
aristocracia orgulhosa, que para conservar suas
regalias não se peja de criar inimigos ao seu país,
vigorizando por leis justas os verdadeiros elementos
sociais, podem formar um governo que tenha de
prosperidade e ventura no interior, paz e união com
as nações suas irmãs.
Se este futuro se rializasse, nós seríamos o primeiro povo
que abraçaríamos cordialmente a Inglaterra
regenerada. Ela respeitaria nossos direitos, como nos
respeitaríamos os seus, e a memória dos agravos, que
dela tivéssemos recebido, servir-lhe-ia de estímulo
de ódio contra os homens e sistema que a têm
comprometido. Então nossos recíprocos perdões
seriam fáceis, porque os povos, mais que os governos,
sabem perdoar-se.
Mas, enquanto tal futuro e não realize, é necessário
resistir com coragem portuguesa às prepotências do
estrangeiro! E se a nossa nacionalidade tem de morrer
de todo, ao menos não lhe sirva de túmulo a casa do
seu parlamento!
O
que eu vos tenho dito, já nos salva de certo desta
vergonha.
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