DISCURSO SOBRE O PROJETO DE LEI DE
SUSPENSÃO DAS GARANTIAS
SESSÃO DE 12 DE AGOSTO DE 1840
Sr. presidente, entrou o préstito
lúgubre, e traz debaixo das togas o decreto da morte.
Poucos momentos de vida restam à vítima, e em poucos
momentos, sobre o cadáver dela, levantara seu trono a
tirania - mas tirania que há de ser funesta a quem a
proteger, funesta a quem a lembrou, funesta aos que
tem de a exercitar!
Sr. presidente, quando eu esperava
que o poder se penetrasse da delicadeza da sua posição
e se elevasse à gravidade dos acontecimentos; quando
eu esperava que das Cadeiras do governo só se
levantasse a linguagem da moderação e da prudência,
que as circunstâncias recomendavam, estrugiram-me os
ouvidos os uivos da vingança, os silvos da tirania!
O Sr. Presidente do Conselho (com
veemência): - Peço a palavra!
O ORADOR: - Quando eu esperava
ouvir da boca dos conselheiros de sua majestade, a
face do parlamento e da constituição do país,
conselhos de benevolência, frases de paz, ponderações
de estadistas, escandalizaram-me as declamações frenéticas
de Marat e as lamentações fementidas de Robespierre!
Sr. presidente, a câmara ouviu os
Srs. ministros, e a câmara há de ouvir-me, se não
declarar suspensa a última das garantias
constitucionais, a última das garantias do homem, a
liberdade de falar, de cuja duração eu não concebo
muitas esperanças!
Sr. presidente, quando os partidos
vêem assim ao campo dos factos, quando eles,
prescindindo dos meios, denunciam tão claramente os
fins, - eu sei que a palavra é um crime e o raciocínio
um escândalo! Mas, apesar disto, quero ainda, por um
esforço imaginativo, esquecer-me a situação em que
nos achamos, quero por alguns momentos aproveitar-me
das imunidades desta cadeira, usando do direito de
falar perante uma assembleia, que tem obrigação de
me ouvir.
Sr. presidente, o Sr. ministro dos
negócios da guerra declarou que a espada da justiça
cairia inexoravelmente sobre esses homens iludidos,
infelizes ou altamente criminosos, como os trata a
caprichosa jurisprudência do governo, sobre esses
homens que foram despojos do seu miserável triunfo! Já
nós sabemos qual é a espada da lei que há de cair
sobre estes desgraçados: é a espada de uma lei
facciosa, e a espada da lei do arbítrio, não
manejada pelos exercitadores naturais das leis, mas
pela mão dos próprios ministros! E quem são esses
inimigos, triste despojo, miseráveis vítimas de
nossos arrogantes senhores? Alguns são oficiais beneméritos,
cujos peitos se ornam com cicatrizes recebidas em
batalhas pelejadas pela rainha e pela liberdade,
cicatrizes, que se querem abrir pelas balas dos
granadeiros em nome desta mesma rainha e dessa
liberdade outros são homens de vida honesta, que não
importunam o poder, que não embaraçam as escadas das
secretarias, homens que vivem dos seus mesteres, e
cuja independência é para o governo um crime imperdoável,
que só com o suplício pode expiar-se!
Os Srs. ministros, querendo dar ao
assunto o uma consideração que ele não merece,
esgotaram-se em esforços de eloquência e denunciaram
a sua impotência amplificativa. Que é esta história
de homens presos, de oficiais encontrados, uns que se
aprisionaram, outros que foram soltos, de guardas que
foram envolvidas, de guardas que foram respeitadas, de
marchas e contra marchas, de vestimenta, de correame,
de ruídos de armas? Que são estas ocorrências, Sr.
presidente, senão factos ordinários, senão episódios
saídos de uma insurreição? (Sinais de desaprovação
do centro e do lado direito.)
Sr. presidente, tudo isto são, repilo, factos
ordinários de uma tentativa insurreccional: e bem o
sabem os Srs. ministros, porque eles, graças ao seu
amor pela ordem pública, possuem em alto grão a
teoria e a prática das insurreições - se
exceptuarmos o Sr. ministro da fazenda, que, pela sua
compleição e génio, não me parece muito alo para
esse trabalho.
Ministros da coroa! Que fizestes vós,
quando aconselhastes, quando promovestes as insurreições
em que tendes figurado, e a que deveis riquezas e
honras? Como juntastes vós a força, como iludistes
os incautos, que lugares designastes, para se irem
procurar armas? Não cingistes os vossos cúmplices de
fuzis e correames? Ministros da coroa! Não eclipseis
a vossa história, não escondais as vossas
heroicidades, e, mestres que sois no ofício de
ordeiros, não trateis agora tão mal uns poucos de
aprendizes da vossa profissão!.... E que alentados se
cometeram no meio de todas estas violências que se
nos relatam? Foram
presos alguns indivíduos conspícuos do partido
odiado, alguns indivíduos que se assentam nesta câmara;
e eles foram bem tratados e logo soltos: a revolta
poupou-lhes as vidas, deu-lhes a Liberdade. E hão de
esses indultados de ontem votar hoje uma Lei sanguinária,
em paga da generosidade com que foram
respeitados?!....
Se os seus corações não estão
podres; se as suas almas não estão corrompidas, hão
de estremecer de horror, hão de recuar de vergonha,
quando tiverem de levantar a voz ingrata, que tiver de
sancionar essa bárbara lei, esta lei que levanta o
patíbulo contra os seus benfeitores!...
Sr. presidente, o governo
declarou-se sabedor dos projectos dos conspiradores,
declarou-se sabedor do dia para que eles tinham
destinado o seu primeiro rompimento e dos seus
sucessivos adiamentos, declarou-se sabedor dos seus
meios, dos seus recursos, do lugar em que deviam
desenvolver a sua tentativa. E, com isto, o Sr.
ministro do reino provou que tinha tirado todo o
proveito das grossas somas que agora se despendem com
certo género de serviço, que eu não quero aqui
devidamente qualificar. Mas por que motivo o governo,
conhecedor de tudo, e com tantos meios, com tanta
fortuna, não sufocou a insurreição no seu começo?
Porque consentiu que um punhado de revoltosos desses
gritos sediciosos, e ao som de instrumentos de guerra
descessem do Largo da Estrela até a Fundição?
Porque sofreu que esses perigosos conspiradores
tivessem por quatro horas levantada a bandeira da
anarquia, e se conservassem em risco por tanto tempo o
trono e o altar?
O Sr. ministro da guerra, em uma
inspiração de inocência, revelou o verdadeiro
pensamento desta tardança de providências: era o
desejo, a precisão que ele tinha de factos que o
habilitassem a propor esta lei! Tal foi a própria
frase do Sr. ministro da guerra, que eu recolhi com
cuidado, porque era muito verdadeira.
Está, pois, confessado que o
governo deixou progredir a revolta para armar aos
incautos, para aumentar a lista dos criminosos, e que
do seu mirante policial espreitou a maré em que devia
recolher as redes, para que trouxessem maior e mais
abundante pesca!
Se são verdadeiras as declarações
de força e previsão que e governo aqui nos tem
feito, a insurreição devia ter durado menos, e
ter-se-ia poupado o inútil incómodo de toda a guarnição
da capital, a vista de cuja vigília a cidade acordou
entre os aparatos de uma bela parada, com marchas e
contramarchas, colunas sobre colunas, a testa das
quais eu, da minha janela, vi, encapotados, alguns dos
Srs. ministros.
E tal é a sede de aprovações e
maiorias que devora o ministério, que o Sr. ministro
da guerra, na narrativa que nos fez dos sucessos da
noite, declarou ter visto pintado em todos os rostos o
horror pelos acontecimentos que se estavam passando.
Ora esses acontecimentos passaram-se desde as
onze até as três horas da noite; e em tal tempo S.
Ex.a só poderia ver os seus horrores pintados com
o auxílio de alguma lanterna. De manhã S. Ex.a só
poderia ver sinais de satisfação e interesse nos que
presenciavam a bela disciplina, asseio e galhardia com
que as tropas marchavam e contramarchavam,
representando nas ruas de Lisboa as cenas do Campo
Grande!
Também o Sr. ministro do reino
disse que o governo estava prevendo
que sabia de todos os planos dos conspiradores;
e o Sr. ministro da guerra lastimou que a insurreição
rebentasse, quando menos se esperava. E daqui é forçoso
inferir que, ou todas as revelações da polícia estão
monopolizadas no ministério do reino, ou que um dos
Srs. ministros quis ostentar a sua previdência, e
outro quis alardear a sua fortuna!
Sr. presidente, com estes
fundamentos, com estas considerações se apresentou a
esta câmara uma lei, que não tem exemplo nem
paralelo em Lei alguma saída dos nossos corpos
legislativos; uma lei que, tomada como lei de represália,
vai muito além das ofensas que a inspiraram; uma lei
que, considerada como medida de cautela, é superior
as exigências que o estado do país reclama; uma lei
que, encarada em relação as nossas circunstâncias,
as tendências do governo, e as apreensões públicas,
é a declaração mais formal e arrogante de que os
princípios, que nos vão reger, são os do despotismo
puro!
Suprime-se a liberdade de imprensa,
estabelece-se a retroactividade no julgamento para
todos os crimes políticos, suspendem-se todas as
garantias, e depois disto que nos fica de liberdade,
que direitos nos restam? Fica apenas esta voz, que os
frenéticos economizadores de tempo em breve sufocarão,
ou com algum novo regimento, ou com a introdução da
tirânica ampulheta prescrita em uma assembleia
francesa. Que nos resta, Sr. presidente, depois de
tantas perdas? Apenas uma ficção de liberdade,
quatro ministros com o séquito da sua maioria, o
absolutismo com criados parlamentares, o absolutismo
arrancado do segredo dos gabinetes para o melo desta
sala, o absolutismo discutido, sancionado e aprovado
na presença de centenares de testemunhas - o
absolutismo com escândalo! (Profunda sensação na
câmara).
Sr. presidente, e exigirão as
circunstâncias do país a lei que se nos pede? É
para o facto consumado que o governo a quer? Se a câmara
ousa votá-la para satisfazer esta indicação, bastam
a retroactividade e os tribunais especiais, mas não
é precisa a suspensão das garantias para todos os
cidadãos e em todo o reino. É para factos futuros?
Oh! Sr. presidente, pois hão de suspender-se as
garantias só pela possibilidade de revoluções, só
pela possibilidade de ataques a ordem pública? Se se
entroniza tal princípio, a liberdade fica um receio
constante, o despotismo uma prevenção permanente, o
arbítrio o direito comum, a lei a excepção!
Por outro lado, não declarou o
governo que no momento de perigo se viu cercado dos
homens notáveis de todos os partidos? Não declarou
que fora ajudado de uma grande soma de influências
morais, que concorreram para obviar aos efeitos dos
acontecimentos da noite? Pois o governo, com o auxílio
destas influências, de que tirou tantas vantagens,
auxílio que reputa devido aos seus princípios e aos
seus projectos, sendo esses princípios e esses
projectos abraçados com mais sinceridade nas províncias,
não deve contar aí com mais apoio, com mais serviços,
com mais auxílios, que o induzam a não vir exigir
uma lei, que, requerida por acontecimentos passados na
capital, e já consumados, vai contudo estender os
seus efeitos a todo o país, ora tranquilo e inocente?
o governo ostenta segurança; alardeia que o seu
sistema é abraçado geralmente, e apresenta-nos uma
lei que desmente essas asserções; uma lei que
denuncia os receios que o inquietam, os perigos que o
cercam, a fraqueza que o consome! E onde esteve essa
numerosa corte da honestidade e ordem? Quem eram os
seus grandes dignitários? Que títulos possuía cada
um deles? Por que serviços foram divididos?
Alguns dos Srs. ministros vi eu a
frente das colunas, e bem pequeno era o seu estado
maior. Onde estavam pois essas falanges de homens
honrados de todos os partidos que, graças aos princípios
e aos programas do governo, o ajudaram a debelar essa
grande revolta de que há frequentes exemplos em todos
os distritos do reino? Em todos os distritos, digo eu,
porque os acontecimentos da capital nada diferem
destas rixas de feiras, em que o povo de duas vilas ou
aldeias se apresenta em campo, e vitoriando cada um a
terra do seu nascimento, por exemplo, um: Viva a
Mourisca! outro: Viva Águeda! Levantam os
cajados e derreiam-se uns aos outros de pancadas. Esta
noite também uns diziam Abaixo a ministério!
Outros: Fique o ministério!
Viva a Mourisca! Viva Águeda! Daqui não
passaram! (Hilaridade).
Sr. presidente, isto não foi
revolta, isto não foi rebelião: foi uma émeute,
um motim, e estes motins sucedem frequentes vezes nos
países constitucionais, onde a ordem pública tem
fiadores maiores para tais aparatos e para tais
solenidades - o desprezo público, o ridículo. O escárnio
cobriria os ministros que tal importância lhes
dessem, e as câmaras que apoiassem tais ministros.
Sr. presidente, tudo o que se tem
passado nesta câmara com os sucessos desta noite é
uma verdadeira farsa: o governo tomou esse
acontecimento como um pretexto para satisfazer os seus
fins políticos; para estabelecer seus planos com
menos embaraço. E eu sinto, magoa-me profundamente
que o ilustre relator da comissão, cuja cabeça eu
julgava superior a estas pequenas considerações de
partidos, cujo espírito elevado me parecia estar ao nível
dos acontecimentos e da moralidade desta forma de
governo, sinto muito, digo, que essa cabeça lhe
inspirasse e que a mão escrevesse um relatório mil
vezes mais fulminante, mil vezes mais inexacto, mil
vezes mais faccioso que o do próprio governo.
Sr. presidente, os jornais são
também suspensos!!! E o governo priva-se desse
primeiro veículo de confiança pública, do primeiro
censor das calúnias, da primeira vigia contra os
conspiradores: o governo quer estender no país um silêncio
de morte, e por ao abrigo da censura os seus actos
administrativos e o espírito da sua gestão.
O governo, Sr. presidente, que em
circunstâncias tais toma semelhantes medidas, descrê
completamente das forças morais, não compreende o
que é a razão e a justiça, só reconhece a religião
dos factos.
Sr. presidente, os jornais têm
incendiado as paixões, têm chamado a anarquia, os
jornais concorreram para os acontecimentos da última
noite: tal foi a acusação sobre eles lançada pelo
Sr. ministro do reino! Ah! Sr. presidente, quanto é
belo ver num grande homem um arrependimento tão
solene, e ouvir, da boca de quem talvez entre nós
desse os primeiros e mais flagrantes exemplos de
conspirar pela imprensa, uma protestação tão franca
contra os seus erros passados! O Examinador e o
antigo Correio foram os mestres da
licenciosidade da imprensa, e o Sr. ministro do reino
tem a honra de ser suspeito de ter parte nesses
jornais. (Sensação).
Mas o jornal O Tempo pôs em
dúvida os direitos da rainha a coroa portuguesa -
disse o Sr. ministro do reino. Deixo a consideração
de S. Ex.a o qualificar este procedimento de S. Ex.a,
quando, chamada ao júri a folha aludida, um ministro
da coroa vem aqui prevenir a sentença desse mesmo júri,
lançando na balança das opiniões a do governo, já
de si pesada, e hoje pesadíssima pelo acrescentado
peso das garantias e liberdades públicas, que em
poucos minutos vai ter na mão. E esse jornal, a que
S. Ex.a aludiu, pronunciou semelhante blasfémia? Não;
sustentou um princípio que eu adopto, um princípio a
que quero prestar solene homenagem, porque talvez não
esteja longe o tempo de o vermos desconhecido e
postergado. Esse jornal disse que sua majestade
nunca podia ser rainha absoluta de Portugal. Também
eu o digo, também deve dizê-lo a câmara, se é fiel
a seus juramentos, e deve dizê-lo o governo se é
constitucional! Sr. presidente, ou os direitos de sua
majestade a coroa portuguesa provenham duma abdicação,
ou de uma revolução, ou lhe fossem transmitidos por
seu pai ou dados pelo povo, esses direitos estão
unidos às liberdades escritas nos códigos, em que o
seu direito de governar esta marcado. Esquecidas,
rotas essas liberdades, o governo, que delas nasce,
morre, desaparece, e o trono de sua majestade, que
nelas se assenta, abale-se debaixo de seus pés!
A opinião contrária injúria a
mesma augusta pessoa que se pretende lisonjear com tão
iníqua teoria; a opinião contrária faria cair da
sua cabeça a coroa que, com enfeites de liberdade,
lhe doou seu piedoso pai e meu bravo general; a opinião
contraria faria suar sangue as pedras da veneranda
sepultura do libertador do nosso país!
Mas disse o Sr. ministro do reino:
«o júri não condena estas doutrinas, e se o júri não
condena, o governo é desairado, e o governo não quer
sofrer desaires!» E que ilação se tirou daqui? Que
não deve haver júri para a imprensa, que deve
suprimir-se a liberdade de escrever! Sr. presidente,
nunca os princípios absolutistas foram proclamados a
face de um país bárbaro de um modo mais rude! Para
que o governo não seja desairado caia a garantia da
liberdade individual, caia a garantia da propriedade,
caia todo o povo português, com as suas vidas, com as
suas cabeças, com a sua fazenda e com a sua honra,
aos pés de quatro homens, que não querem e não
podem ser desairados! Sr. presidente. boje em
Constantinopla não se ouve tal linguagem aos depositários
do poder!
Um Sr. deputado uniu as suas
imprecações as do governo contra a imprensa; mas
permita-me S. Ex.a que lhe note que a sua nímia
sensibilidade o toma suspeito em tal questão, e que
se os seus conhecimentos de historia natural lhe
ensinaram a conhecer a vida e o carácter de uns
certos animais, que S. S.a diz que mudam frequentes
vezes de pele, também os seus conhecimentos de
higiene política o deviam ter aconselhado a usar de
alguns remédios, que tomem a sua cútis menos
melindrosa e menos sensível aos tiros da imprensa.
Sr. presidente, eu sinto que a
impaciência da câmara me não deixe analisar, como
as circunstâncias requerem, o projecto modificado
pela comissão, e que foi mandado para a mesa; eu
sinto não ter a vista cada uma das suas disposições
para lhes fazer reflexões adequadas. Esse projecto põe
todos os crimes políticos debaixo da lei militar,
para serem julgados no tribunal militar
E felizmente ainda a comissão encheu a tempo
uma lacuna importante: deve-se-lhe a graça de uma
declaração liberal: a comissão acaba de
propor que o processo de tais crimes seja o dos
conselhos de guerra! A comissão ainda prestou,
pois, homenagem a todos os bons princípios,
decretando que este país é um grande quartel, que
todos os portugueses são soldados, que o governo é o
coronel deste grande regimento, e que os prebostes serão
escolhidos a sua vontade! (Sensação e hilaridade.)
Sr. presidente, sinto que os factos
me arrastem a convicção profunda de que o fim
principal desta lei é um fim apaixonado, é um fim de
partido, é um fim de vingança, a convicção de que
esta lei exprime um desejo de sangue, uma precisão de
cabeças. E não fora melhor e mais nobre reunir essas
cabeças num campo, juntar esses inimigos à ponta de
baionetas? Não fora melhor prescindir de todas as
formulas? Não fora melhor marcá-los com o ferrete de
desafectos, e entregá-los logo ao carrasco? Não fora
melhor tratá-los como obstáculos materiais, esmagá-los
debaixo do ferro, ou pisá-los aos pés?!!
Em circunstâncias mais penosas,
quando assolava o país uma revolta que se não
intentava para uma mudança de ministério, mas para a
destruição da lei fundamental, revolta que tinha
todo o carácter de guerra, que teve todos os efeitos
dela, revolta que usurpou todas as prerrogativas da
coroa, constituindo autoridades, nomeando empregados,
estabelecendo-lhes ordenados, dispondo dos dinheiros públicos;
uma assembleia, que zelava com lealdade o princípio
governativo de então, a despeito dos embaraços que a
cercaram, não precisou fazer uma lei tão rígida e
sanguinária: declarou suspensas as garantias. Não
instituiu tribunais revolucionários, não autorizou
conselhos de guerra, nem pôs o país debaixo de uma
lei militar. Então votaram por essa lei, não a
pediram mais forte, muitos dos Srs. deputados, a quem
agora, em presença de tão pequenos acontecimentos, não
tremeu a mão quando assinaram cegamente todas as
indicações do governo!
O SR. DERRAMADO (com velocidade):
- Peço a palavra.
O ORADOR: - Sr. presidente, esta
lei, como lei de represália, desonra quem a faz, e
honra quem deu motivo a ela…
O governo, Sr. presidente, deu
parabéns ao país porque não tiveram resultado os
acontecimentos da noite. O país rejeita tais parabéns.
Parabéns ao país? Porque? Pela honra de continuar a
ser governado por um ministério opressor? Pelas
fortunas e delícias da suspensão das garantias?
Parabéns aos ministros, porque só eles lucraram com
o desfecho da insurreição; parabéns aos ministros,
porque não estariam agora nessas cadeiras se a
fortuna tivesse favorecido o motim!
Esses negros acontecimentos, esses
nefandos projectos, essa revolta espantosa, essa
rebelião armada, esse arrombamento criminoso e feito,
segundo o Sr. ministro do reino, as pancadas de um aríete
que S. Ex.a nos pintou deitado a porta do Arsenal,
com uma voz tão lúgubre, temerosa e arrebatada, que
julguei nos comunicava ter ficado morto no campo da
batalha algum elefante, que os revoltosos, seguindo a
táctica de Mitrídates, tivessem conduzido para
escalar os muros da Fundição, um arrombamento feito
as pancadas de um aríete a que na minha terra
se chama alavanca ou pé de cabra.... (Hilaridade.)
O SR. MINISTRO DO REINO: - Nem uma,
nem outra cousa.
O ORADOR: - Sr. presidente, onde
iriam os amotinados buscar um aríete para
baterem as muralhas do Arsenal?! Onde esta esse depósito
de máquinas de guerra da velha táctica? Onde estão
as catapultas, as balistas? O aríete do Sr
ministro do reino é um anacronismo militar, é uma
amplificação ridícula.
Dizia eu, esses negros
acontecimentos, esses nefandos projectos, essa revolta
espantosa, essa rebelião armada, esse arrombamento
criminoso, deram ao governo força, glória, crédito,
vida e salvação, porque o livraram da morte, não a
mais tormentosa, mas a mais desonrosa para o poder
a morte de inanição, que lhe estava iminente,
e que já tinha sido precógnita pela sua maioria, que
nas últimas sessões, por tal motivo, havia dado
exemplos de pouca subordinação e muita fraqueza.
Os amotinados pois, por insofridos,
prejudicaram o facto que por qualquer modo estava a
consumar-se, e os Srs. ministros devem render muitas
graças a cegueira que os precipitou!
Sr. presidente, eu respeito a
prerrogativa da coroa, rejeito estes meios de ascensão
ao poder, não me associo a eles, e no governo esta
quem sabe se estas são as minhas antigas opiniões.
Mas também reconheço que se as armas da lealdade
portuguesa se levantassem neste momento, e dentre elas
rebentasse um brado de indignação contra o ministério
que nos desonra, este procedimento, pouco
constitucional, limparia a coroa de uma nódoa negra,
que lhe lançou a diplomacia, quando levantou em seus
braços a administração de 26 de novembro!!.... Nódoa,
Sr. presidente, que esta denunciada a face da Europa e
nos seus parlamentos; nódoa que é já um facto histórico
e que nenhum dos Srs. ministros pode negar!
O que destas observações se sente
é que o motim armado desta noite é filho do motim áulico
e diplomático de 26 de novembro; o que destas
observações se segue é que uma aberração
constitucional desafia outra aberração, e que é
preciso que todos os partidos, de uma vez para sempre,
prestem sincera homenagem aos princípios do sistema
representativo. Porque, se eu não quero ver escaladas
as prerrogativas da coroa pelas armas, também quero
que se fechem as trapeiras da diplomacia, que
para o poder são avenidas defesas aos homens de
talento e de probidade.
Eu não sei quais são preferíveis,
se as vociferações apaixonadas de um dos Srs.
ministros se as lamentações fementidas do outro! o
Sr. ministro do reino lamentou que, em acontecimentos
de semelhante natureza, os autores fiquem sempre
ocultos, e que as vítimas de suas instigações, os
mais pequenos, os mais miseráveis, sofram o
castigo que pertencia aos outros. Pensamento honrado,
pensamento nobre!.... Sim, maldição ao homem que
desvaira a razão do outro para satisfazer os seus
interesses particulares! Maldição ao homem que leva
outro ao campo do perigo, e que fica em casa! Maldição
ao homem que vê outro vitimado por sua influência e
não o socorre com a sua voz e com a sua bolsa! Maldição....
Não! perdão, perdão ao homem que de cima do fastígio
do poder vê sem mágoa gemendo numa masmorra os seus
cúmplices, os seus companheiros! Perdão a esse
homem, mas não a mim, que nunca cometi, nem hei de
cometer tal crime!… (Sensação.)
Sr. presidente, eu reconheço que a
resistência armada é em certas ocasiões, não digo
um direito, mas uma obrigação! (Sussurro.) Se
não me quereis conceder este princípio, se o
reputais criminoso, ponde todos as mãos sobre o cepo,
porque as mãos de todos hão de cair junto dele! Se a
minha doutrina é pecaminosa, todos tendes pecado
Mas se o Sr. ministro do reino nas suas insinuações
teve o pensamento de se dirigir a minha pessoa, quero
desenganá-lo que Se eu fosse chefe de uma conspiração…
O SR. MINISTRO DO REINO: - Dá
licença? Já me constou que o nobre deputado
desconfiava que eu fizesse uma insinuação a sua
pessoa: declaro-lhe que não a fiz.
O ORADOR: - Bem: e todos assim
devem fazer; porque, Sr. presidente, se eu fosse chefe
de uma conspiração, se eu entendesse que os meus
deveres de honra, que as necessidades do meu país,
exigiam que eu renunciasse a minha procuração para
tomar uma arma, que eu largasse esta cadeira para ir
para o campo, os meus adversários, os chefes do
poder, os Srs. ministros que combatessem essa conspiração,
haviam de certo ver-me no meio dos conspiradores, e a
vitória não lhes seria tão fácil como a de ontem,
porque desgraçadamente tinha de ser mais
sanguinolenta! (Sensação).
Seja-me permitido citar dois
factos, que não são estranhos à questão.
O secretário da administração do
concelho de Tondela foi demitido pelo administrador
geral de Viseu. Aquele pobre empregado veio à corte e
trouxe carta de recomendação para o Sr. ministro do
reino, e S. Ex.a prometeu-Ihe que havia de ser
reintegrado escreveu ao administrador geral para este
fim…
UMA VOZ: - Ordem!
O ORADOR: - Isto é ordem, e eu o
vou provar. o administrador geral respondeu que não
podia anuir as instâncias de S. Ex.a.
Agora o administrador geral mandou prender por
vadio o empregado que demitiu, e ele, depois de
esgotar todos os meios legais, se quis escapar à
perseguição que lhe faziam, teve de fugir para
Lisboa! E aqui se acha!!
Ao administrador geral de Vila Real
queixou-se um morgado, um potentado, ou um homem que
tinha foros a cobrar, que os seus foreiros lhos não
pagavam, e pediu para este fim ao administrador geral
alguma força armada. E foi com efeito uma força
militar incumbida da missão de obrigar os povos a
pagar os foros ao Sr. senhorio!!
Sr. presidente, se com as leis
constitucionais que ainda temos, se com as garantias
que ainda possuímos, os empregados do governo
desconhecem todos os princípios de moralidade, e se
arrojam a estes arbítrios, que será quando esse arbítrio
for declarado lei, e a obediência a ele a primeira
virtude cívica?
Sr. presidente, vou terminar. Julgo
ter falado com bastante sinceridade; aos Srs.
ministros é baldo todo o trabalho para descobrir em
mim pensamentos que julguem ocultos; se quiserem saber
mais do meu coração e da minha cabeça, dirijam-se a
mim por interpelações directas, porque os satisfarei
com respostas curtas.
Reputo esta lei uma especulação
feita sobre os acontecimentos da noite, cuja gravidade
é muito pequena, e de nenhum modo própria para
fundamentar tais medidas. Reputo que esta lei dará
frutos de tirania, ainda mais amargos que os da usurpação!
E pela minha parte termino o meu discurso, e talvez a
minha carreira pública, e de certo as minhas orações
nesta sessão, porque em breve tenho de me retirar
daqui por motivos de moléstia, declarando, Sr.
presidente, que tenho a profundíssima convicção de
que, se o ministério actual continuar por dois anos
na gerência dos negócios públicos, ficaremos sem os
menores vestígios da honra, do nome, da liberdade e
da fazenda da nação! (Sensação, agitação).
São estas as minhas profundas, desgraçadas e penosas
convicções, a que eu não posso resistir, assim como
não posso resistir ao dever de as exprimir nesta hora
extrema, nesta hora soleníssima, nesta hora a mais
negra da nossa vida política!.... (Silêncio
profundo.)
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