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Hélder Bandarra, O Percurso do Artista, Aveiro, Novembro 2010, 180 páginas.

5. Pensamentos – Entrevista por Isabel Ponce de Leão

Hélder Bandarra em casa de Isabel Ponce de Leão, expondo a sua obra – 2010, Porto - pág. 167  
Hélder Bandarra em casa de Isabel Ponce de Leão, expondo a sua obra – 2010, Porto  

Aqui e agora, ao intentar esta entrevista, levanto a questão da legitimidade por serem indeléveis as fronteiras entre o artista e o homem. Evoco Eco, Berrio, Kandinsky, e outros tantos teóricos convocados para o efeito, e não cedo. Sei alguma coisa do Artista, mas pretendo saber do Homem e, sobretudo, descortinar o seu pensamento sobre a Arte e o Mundo. Sobre ele também, e sobre as circunstâncias que lhe couberam viver. É que estas são condicionantes do fazer artístico e das suas opções formais e críticas, rumo a uma partilha comunicacional socialmente instituída e regulada. O referido labor tem, na sua génese, a noção de transitividade. Neste sentido, penso na mundanidade (cf. P. Ricoeur) do autor, no conhecimento que tem e partilha e também naquele que, paulatinamente, adquire quando perscruta os arrabaldes do que, em seguida, se transformará em objecto estético. Não consigo, pois, dissociar o artista da obra. Hélder Bandarra aprendeu a sentir e, por isso, enche da sua arte a vida das gentes. Desta emoção falamos.

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Isabel Ponce de Leão – Identificando-te, Hélder. Conheço o bilhete de identidade do Homem, diz-me o quando da sua invasão pelo ADN do Artista.

Hélder Bandarra – Quando tomei contacto com o lápis e o papel, era ainda muito menino. Minha mãe dizia que eu teria os meus quatro anos já desenhava animais. O porco era o meu favorito, desenhava-o em papel e recortava-o com uma tesoura. Depois insistia com minha mãe para ela me amarrar uma linha ou um fio para poder puxar por ele pelos cantos da casa imitando o seu grunhido.

Quando se estragava voltava a repetir a operação e de novo apelava à paciência da minha mãe. Este ritual marcou o inicio do “querer fazer”, do gosto de manusear coisas em função de um objectivo concreto.

IPL – A complexidade convivencial tem a ver com afinidades, dependências, conexões. Ajuda-me a perceber esta trama, esclarecendo-me como convivem em ti o Artista e o Homem.

HB – Neste mundo material, o tempo tem ciclos como o ser humano estou dependente e sofro com a contingência desta vida, as limitações de um corpo que envelhece e nos torna sofredores. Vivo esta vida o melhor que sei e posso, gosto de viajar, ler, ter amigos, extasiar-me com as maravilhas da natureza. É a minha essência exterior. Como artista, sinto que existe em mim outra espécie de vida, uma essência interior, sem as limitações do tempo e do espaço. É um estado sublime que me dá outra alegria, indestrutível. É algo que me seduz e me dá razão de viver.

IPL – Apesar do carácter redutor da palavra, arrisco – define-te, Artista.

HB – Sinto-me Artista, diferente de outros pela minha permanente e assumida transgressão à rotina do dia-a-dia. Esta liberdade ou marginalidade afasta-me do tédio deste mundo mecanizado, programado, pleno de entraves sociais, materiais ou económicos.

Esta independência é uma fuga, que gera muitos sacrifícios e incompreensões, mas torna-se uma actividade muito satisfatória. O meu ser e a minha alma estão programadas – alimentam-se de pureza.

IPL – Ritual, cerimonial, praxe são termos caros à criação. Diz-me da liturgia do teu acto criativo.

HB – Existe em mim um estranho desígnio egoísta, uma vontade oculta de interiorizar esteticamente as pequenas coisas que meus olhos observam. Para mim, o acto de pintar é precedido de uma reflexão, de uma composição e estudo da obra, depois necessita de solidão, concentração para a executar e um pouco de Mozart. Pinto e volto a pintar, sublimo todas as faces com um sentido crítico que me faz sofrer. Estou por vezes horas e horas a observar o trabalho até à exaustão, até chegar a assinar o quadro. Nunca sei quando um quadro está acabado.

IPL – “Procuro um compromisso expressivo entre ordem e desordem”, dizes. Onde ficas, afinal? Onde se queda a tua emoção? Qual é o teu compromisso?

HB – Esse compromisso é uma constatação do mundo contingente em que vivemos. É um mundo de opostos. Tudo à minha volta os reflecte e interagem de uma forma real; força-fraqueza, preto-branco, alegria-tristeza, bem-mal,… Na minha pintura coexistem essa ordem e desordem, eu manejo-as com esse conhecimento e jogo com essas forças e energias que mais me seduzem nessa complexa contingência.

IPL – A policromia é obsessão na tua arte. Já um dia o escrevi, o “azul, primo inter pares, a partir da qual irrompem todas as cores possíveis, não mais que as necessárias, servindo uma geologia de emoções”. Diz-me do binómio cor / emoção.

HB – Podemos escolher a cor que quisermos. Cada pessoa reage de maneira diferente. A cor é um delírio, uma complexidade lógica do gosto, sentimo-la cá dentro e encanta-nos. Todo o azul Português do azulejo me emociona, me é suficiente. Depois junto mais umas cores e construo tudo. A emoção aparece como uma donzela celestial de leveza mágica e prazer.

IPL – Água e luz são signos exegéticos da tua obra desde os primeiros traços ao depurado presente abstraccionista-expressionista. Dás-me a razão?

HB – Sempre vivi com “água pelos joelhos”. Era criança e sentia-me feliz a percorrer os trilhos de lama dura entre marinhas de sal, andar descalço na maré baixa a perseguir caranguejos e apanhar camarões. Na quietude das águas espelhavam-se os barcos, os montes de sal, os edifícios da cidade numa luz maravilhosa. Tudo se invertia e reflectia nas águas; essa vivência fez parte integrante da minha estética.

IPL – Diz-me ainda das lentas mas evidentes metamorfoses da tua obra plástica.

HB – Toda a minha personalidade plástica é o resultado de uma vida inteira de dedicação, de paixão pelas artes, de admiração e reconhecimento a muitos artistas que me têm ajudado a compreender o seu propósito. Eu estudei muitas correntes, tenho o maior respeito por elas. Há um grande vício de colocar os artistas em pastas de arquivo e os rotular de pintores, escultores e depois ainda dizer que é figurativo, outro abstracto ou futurista. Durante o meu percurso fiz teatro, cinema amador, desenho, litografia, fotografia, pintura e outras coisas. O conhecimento não tem limites e temos de absorver o máximo e o melhor que os mestres nos podem oferecer.

IPL – Posso dizer, com Susan Sontag, que para olhar a tua obra “não precisamos de uma hermenêutica, mas de uma erótica”?

HB – Existe na minha obra uma componente romântica, uma livre expressão e sensualidade de processos. Subjacente e oculta funciona uma ordem de articulação geométrica que a estrutura. Depois vêm os efeitos, as magias, os saberes técnicos experimentados em anos de atelier. Vem à tona uma liturgia sexual de afectos, doçuras, cores fortes e frágeis numa coexistência de planos, linhas e manchas, tendo cada um o seu espaço e função a desempenhar.

IPL – Quero saber da tua relação com o mundo da arte e com o mundo dos homens. Não posso nem devo ser inconveniente, mas, conhecedora do teu percurso, peço-te que reajas a certas palavras e expressões que, confesso, não foram escolhidas ad hoc. As tuas reacções enriquecem e optimizam o desvendamento da tua obra. Liberta-te e diz:

Água –

Lamento a ausência de legislação e vontade politica do governo e autarquias na educação cívica dos cidadãos para a protecção dos mares, preservação e limpeza dos nossos rios.

Condeno a livre circulação de petroleiros e materiais perigosos, como detritos atómicos e outros derrames que com frequência contaminam os oceanos, matam a fauna subaquática, destroem praias e o meio ambiente, provocando doenças e destruindo o trabalho a milhões de pessoas. A quem confiar as águas que bebemos? As deficientes e duvidosas análises, não garantem uma qualidade plena da água. A existência de ingredientes diversos, químicos nocivos para a saúde, escapa ao rigor e controle das análises pouco científicas. Se falasse de publicidade enganosa teria mais coisas para dizer.

Arte –

O verdadeiro tesouro do ser humano é o conhecimento. O único critério da arte é o êxtase o deleite. Onde falta o encantamento falta também a arte. O contágio dela tem que ser afectivo e necessita de uma convergência mental, de uma faceta apaixonada.

Condição Humana –

As condições dos povos devem ser de análise prioritária para uma solução justa. Extremos de riqueza e pobreza devem ser abolidos. È necessária uma organização para controlar e melhorar tal estado de coisas. Embora a igualdade seja uma quimera, a ordem deve prevalecer na base de uma reforma mundial nas relações económicas entre países ricos e pobres. Garantir o trabalho aos cidadãos, quer manual ou mental iria ser proveitoso para uma vida sã, confortável e justa para todos. Não se admite que existam favelas, fome, miséria, ignorância, escravidão social e industrial que destrói a vida humana.

Crítica –

Cumpre aos jornalistas e críticos banirem de suas mentes todo o preconceito de rotularem com algum facilitismo opiniões nas páginas de seus jornais rádio ou televisões. Devem reflectir, com verdade, procurarem ser como um espelho dotado de ouvido, vista e fala, para deleite de seus leitores e ouvintes.

Inteirando-se dos assuntos com justiça, devem procurar expressa-los de forma correcta. O que assistimos é degradante; a promoção de assuntos estéreis com ausência total de conteúdos e valores. Uma classe de jornalistas ao serviço de banalidades com o propósito manifesto de alienar e não educar o sentido crítico das pessoas. O melhor crítico é o próprio artista, que tem que produzir a sua obra e confrontar-se com ela.

Deus –

A menor coisa criada prova que há um criador. O mistério da criação, a sua transcendente obra leva-me a acreditar em Deus.

Sou um estudioso de religiões comparadas, acredito na Revelação das Profecias divinas. Sou membro da Comunidade Internacional Bahá’i desde 1966.

Estéticas –

Estão em mutação constante. A emoção, esse sentimento estético não emana senão de nós mesmos. Há a contemplação e o observar do mundo envolvente com base intelectual. Depois vem o acto criativo, que tem um fundo afectivo. Esta subjectividade torna diversa a consciência da arte.

Ética –

Compreender o princípio do elevado compromisso do acto criativo é uma coordenada da evolução do artista. A educação-instrução e guia é fundamental para o seu desenvolvimento e cultivo das suas faculdades inatas.

Cumprir a palavra dada, assumir a honra e os valores. Procurar ser e não ter é compromisso árduo. A educação não muda a natureza essencial do artista, mas produz um efeito maravilhoso, o aperfeiçoamento do carácter.

Família –

Não é possível a ninguém desenvolver o seu carácter como unidade isolada. As relações fundamentais da vida humana estão na família. Por maior que seja uma grande amizade, não constitui a base da sociedade. O alicerce é o casal. À volta do homem e da mulher agrupam-se os círculos, cada vez mais largos, dos filhos parentes e amigos. O que o ser humano tem de mais belo é a sua capacidade de amar. No amor está a coesão, a base da maior felicidade.

Futuro –

Tenho em consciência, há muitos anos um objectivo na relação da sociedade humana, adoptando um conceito de cidadão do mundo. Acredito no homem, na necessidade do estabelecimento de uma nova ordem mundial e na convergência do esforço de todos para o bem-estar e unidade da raça humana.

Galerias –

Algumas galerias, salvo raras excepções, mostram-se mais interessadas em obter lucros do que divulgar a verdadeira arte. Não é justo que o galerista ganhe tanto como o artista, inflacionando a produção artística; é uma actividade estranha. Depois há faltas de apoio, e as normais “panelinhas” que são criadas com determinados grupos. Apoiam um grupo de artistas enquanto os restantes são praticamente esquecidos ou ignorados. E então o que se vê, é que são sempre os mesmos a aparecer. Tudo isto está enredado.

Guerra –

Por um acordo internacional, todos os governos do mundo se devem desarmar simultaneamente. As nações devem abandonar as armas e instrumentos nefastos de carnificina humana. Deve ser criado um governo mundial, um tribunal internacional de justiça, que esteja acima das nações, para puder arbitrar, qualquer conflito entre dois ou mais países.

A quantidade enorme de energia e de dinheiro que se desperdiça com a guerra será aplicada noutros campos para a evolução e bem-estar dos povos.

Mulher –

A mulher deve ter os mesmos privilégios, igualdade de direitos e oportunidades que o homem. É justo que tenha direito a uma igual educação. Não podemos esquecer que a mulher é a primeira educadora dos seus filhos, a sua importância é de tal modo elevada que as próximas gerações beneficiar irão com isso. Como exalta Baha’u’llah – “A humanidade assemelha-se a uma ave com duas asas, uma é o homem e a outra a mulher. A ave, se ambas as asas não forem fortes e impelidas por uma força comum, não poderá voar”.

Paris –

É uma cidade vida, recheada de cultura, que me eleva a auto estima e me provoca forte contributo estético que eu não dispenso. Visito Paris duas vezes por ano e satisfaz-me passear ou visitar locais de grande simbolismo histórico, social ou cultural. A boémia de Montmartre, de Molière, Utrillo, Modigliani, Picasso, Lautrec, está associada a artistas há duzentos anos. O meu “convívio” com esses ilustres fantasmas dá-me enorme prazer. Há algo na tragédia e glória desses homens que me fascina que me provoca uma reflexão profunda e um grande respeito às causas mais sublimes das artes.

Tempo –

Podemos contactar, que através da arte encontramos o objectivo final de todo o esforço humano e de todo o progresso histórico: a abolição do tempo.

IPL – Para terminar, uma ousadia – diz-me, se podes, daquilo a que teu Irmão Jeremias chama os “teus sonhos ocultos que ninguém sonha”.

HB – A mente é um processador de realidades. Cada ser constrói ou idealiza os sonhos que deseja e começa por pré materializar ou mesmo materializa-los. Esta faculdade de pensamento é individual, só a mim me diz respeito. Quando vejo uma tela em branco assaltam-me mil soluções para a pintar. Nada nem ninguém entra na minha mente.

IPL – Perguntei menos do que queria e mais do que devia. Riscos calculados! Tudo, afinal, e citando o artista, uma “renovação constante da forma de ser e de viver”. Ao que falta, responderão uma pertinaz perscrutação da vasta obra de Hélder Bandarra e a leitura ponderada, mais dos implícitos do que dos explícitos, do presente livro.

Isabel Ponce de Leão

2010

 
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