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Hélder Bandarra em casa de Isabel
Ponce de Leão, expondo a sua obra – 2010, Porto |
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Aqui e agora, ao
intentar esta entrevista, levanto a questão da legitimidade por serem
indeléveis as fronteiras entre o artista e o homem. Evoco Eco, Berrio,
Kandinsky, e outros tantos teóricos convocados para o efeito, e não
cedo. Sei alguma coisa do Artista, mas pretendo saber do Homem e,
sobretudo, descortinar o seu pensamento sobre a Arte e o Mundo. Sobre
ele também, e sobre as circunstâncias que lhe couberam viver. É que
estas são condicionantes do fazer artístico e das suas opções formais e
críticas, rumo a uma partilha comunicacional socialmente instituída e
regulada. O referido labor tem, na sua génese, a noção de transitividade.
Neste sentido, penso na mundanidade (cf. P. Ricoeur) do autor, no
conhecimento que tem e partilha e também naquele que, paulatinamente,
adquire quando perscruta os arrabaldes do que, em seguida, se
transformará em objecto estético. Não consigo, pois, dissociar o artista
da obra. Hélder Bandarra aprendeu a sentir e, por isso, enche da sua
arte a vida das gentes. Desta emoção falamos.
/ 168 /
Isabel Ponce de Leão
–
Identificando-te, Hélder. Conheço o bilhete de identidade do Homem,
diz-me o quando da sua invasão pelo ADN do Artista.
Hélder Bandarra –
Quando tomei
contacto com o lápis e o papel, era ainda muito menino. Minha mãe dizia
que eu teria os meus quatro anos já desenhava animais. O porco era o meu
favorito, desenhava-o em papel e recortava-o com uma tesoura. Depois
insistia com minha mãe para ela me amarrar uma linha ou um fio para
poder puxar por ele pelos cantos da casa imitando o seu grunhido.
Quando se estragava
voltava a repetir a operação e de novo apelava à paciência da minha mãe.
Este ritual marcou o inicio do “querer fazer”, do gosto de manusear
coisas em função de um objectivo concreto.
IPL –
A
complexidade convivencial tem a ver com afinidades, dependências,
conexões. Ajuda-me a perceber esta trama, esclarecendo-me como convivem
em ti o Artista e o Homem.
HB –
Neste mundo material, o
tempo tem ciclos como o ser humano estou dependente e sofro com a
contingência desta vida, as limitações de um corpo que envelhece e nos
torna sofredores. Vivo esta vida o melhor que sei e posso, gosto de
viajar, ler, ter amigos, extasiar-me com as maravilhas da natureza. É a
minha essência exterior. Como artista, sinto que existe em mim outra
espécie de vida, uma essência interior, sem as limitações do tempo e do
espaço. É um estado sublime que me dá outra alegria, indestrutível. É
algo que me seduz e me dá razão de viver.
IPL –
Apesar do carácter redutor da palavra, arrisco – define-te, Artista.
HB –
Sinto-me Artista,
diferente de outros pela minha permanente e assumida transgressão à
rotina do dia-a-dia. Esta liberdade ou marginalidade afasta-me do tédio
deste mundo mecanizado, programado, pleno de entraves sociais, materiais
ou económicos.
Esta independência é
uma fuga, que gera muitos sacrifícios e incompreensões, mas torna-se uma
actividade muito satisfatória. O meu ser e a minha alma estão
programadas – alimentam-se de pureza.
IPL –
Ritual, cerimonial, praxe são termos caros à criação. Diz-me da liturgia
do teu acto criativo.
HB –
Existe em mim um
estranho desígnio egoísta, uma vontade oculta de interiorizar
esteticamente as pequenas coisas que meus olhos observam. Para mim, o
acto de pintar é precedido de uma reflexão, de uma composição e estudo
da obra, depois necessita de solidão, concentração para a executar e um
pouco de Mozart. Pinto e volto a pintar, sublimo todas as faces com um
sentido crítico que me faz sofrer. Estou por vezes horas e horas a
observar o trabalho até à exaustão, até chegar a assinar o quadro. Nunca
sei quando um quadro está acabado.
IPL –
“Procuro um
compromisso expressivo entre ordem e desordem”, dizes. Onde ficas,
afinal? Onde se queda a tua emoção? Qual é o teu compromisso?
HB –
Esse compromisso é uma
constatação do mundo contingente em que vivemos. É um mundo de opostos.
Tudo à minha volta os reflecte e interagem de uma forma real;
força-fraqueza, preto-branco, alegria-tristeza, bem-mal,… Na minha
pintura coexistem essa ordem e desordem, eu manejo-as com esse
conhecimento e jogo com essas forças e energias que mais me seduzem
nessa complexa contingência.
IPL –
A
policromia é obsessão na tua arte. Já um dia o escrevi, o “azul, primo
inter pares, a partir da qual irrompem todas as cores possíveis, não
mais que as necessárias, servindo uma geologia de emoções”. Diz-me do
binómio cor / emoção.
HB –
Podemos escolher a cor
que quisermos. Cada pessoa reage de maneira diferente. A cor é um
delírio, uma complexidade lógica do gosto, sentimo-la cá dentro e
encanta-nos. Todo o azul Português do azulejo me emociona, me é
suficiente. Depois junto mais umas cores e construo tudo. A emoção
aparece como uma donzela celestial de leveza mágica e prazer.
IPL –
Água
e luz são signos exegéticos da tua obra desde os primeiros traços ao
depurado presente abstraccionista-expressionista. Dás-me a razão?
HB –
Sempre vivi com “água
pelos joelhos”. Era criança e sentia-me feliz a percorrer os trilhos de
lama dura entre marinhas de sal, andar descalço na maré baixa a
perseguir caranguejos e apanhar camarões. Na quietude das águas
espelhavam-se os barcos, os montes de sal, os edifícios da cidade numa
luz maravilhosa. Tudo se invertia e reflectia nas águas; essa vivência
fez parte integrante da minha estética.
IPL –
Diz-me ainda das lentas mas evidentes metamorfoses da tua obra plástica.
HB –
Toda a minha
personalidade plástica é o resultado de uma vida inteira de dedicação,
de paixão pelas artes, de admiração e reconhecimento a muitos artistas
que me têm ajudado a compreender o seu propósito. Eu estudei muitas
correntes, tenho o maior respeito por elas. Há um grande vício de
colocar os artistas em pastas de arquivo e os rotular de pintores,
escultores e depois ainda dizer que é figurativo, outro abstracto ou
futurista. Durante o meu percurso fiz teatro, cinema amador, desenho,
litografia, fotografia, pintura e outras coisas. O conhecimento não tem
limites e temos de absorver o máximo e o melhor que os mestres nos podem
oferecer.
IPL –
Posso
dizer, com Susan Sontag, que para olhar a tua obra “não precisamos de
uma hermenêutica, mas de uma erótica”?
HB –
Existe na minha obra
uma componente romântica, uma livre expressão e sensualidade de
processos. Subjacente e oculta funciona uma ordem de articulação
geométrica que a estrutura. Depois vêm os efeitos, as magias, os saberes
técnicos experimentados em anos de atelier. Vem à tona uma liturgia
sexual de afectos, doçuras, cores fortes e frágeis numa coexistência de
planos, linhas e manchas, tendo cada um o seu espaço e função a
desempenhar.
IPL –
Quero
saber da tua relação com o mundo da arte e com o mundo dos homens. Não
posso nem devo ser inconveniente, mas, conhecedora do teu percurso,
peço-te que reajas a certas palavras e expressões que, confesso, não
foram escolhidas ad hoc. As tuas reacções enriquecem e optimizam o
desvendamento da tua obra. Liberta-te e diz:
Água –
Lamento a ausência de
legislação e vontade politica do governo e autarquias na educação cívica
dos cidadãos para a protecção dos mares, preservação e limpeza dos
nossos rios.
Condeno a livre
circulação de petroleiros e materiais perigosos, como detritos atómicos
e outros derrames que com frequência contaminam os oceanos, matam a
fauna subaquática, destroem praias e o meio ambiente, provocando doenças
e destruindo o trabalho a milhões de pessoas. A quem confiar as águas
que bebemos? As deficientes e duvidosas análises, não garantem uma
qualidade plena da água. A existência de ingredientes diversos, químicos
nocivos para a saúde, escapa ao rigor e controle das análises pouco
científicas. Se falasse de publicidade enganosa teria mais coisas para
dizer.
Arte –
O verdadeiro tesouro do
ser humano é o conhecimento. O único critério da arte é o êxtase o
deleite. Onde falta o encantamento falta também a arte. O contágio dela
tem que ser afectivo e necessita de uma convergência mental, de uma
faceta apaixonada.
Condição Humana –
As condições dos povos
devem ser de análise prioritária para uma solução justa. Extremos de
riqueza e pobreza devem ser abolidos. È necessária uma organização para
controlar e melhorar tal estado de coisas. Embora a igualdade seja uma
quimera, a ordem deve prevalecer na base de uma reforma mundial nas
relações económicas entre países ricos e pobres. Garantir o trabalho aos
cidadãos, quer manual ou mental iria ser proveitoso para uma vida sã,
confortável e justa para todos. Não se admite que existam favelas, fome,
miséria, ignorância, escravidão social e industrial que destrói a vida
humana.
Crítica –
Cumpre aos jornalistas
e críticos banirem de suas mentes todo o preconceito de rotularem com
algum facilitismo opiniões nas páginas de seus jornais rádio ou
televisões. Devem reflectir, com verdade, procurarem ser como um espelho
dotado de ouvido, vista e fala, para deleite de seus leitores e
ouvintes.
Inteirando-se dos
assuntos com justiça, devem procurar expressa-los de forma correcta. O
que assistimos é degradante; a promoção de assuntos estéreis com
ausência total de conteúdos e valores. Uma classe de jornalistas ao
serviço de banalidades com o propósito manifesto de alienar e não educar
o sentido crítico das pessoas. O melhor crítico é o próprio artista, que
tem que produzir a sua obra e confrontar-se com ela.
Deus –
A menor coisa criada
prova que há um criador. O mistério da criação, a sua transcendente obra
leva-me a acreditar em Deus.
Sou um estudioso de
religiões comparadas, acredito na Revelação das Profecias divinas. Sou
membro da Comunidade Internacional Bahá’i desde 1966.
Estéticas –
Estão em mutação
constante. A emoção, esse sentimento estético não emana senão de nós
mesmos. Há a contemplação e o observar do mundo envolvente com base
intelectual. Depois vem o acto criativo, que tem um fundo afectivo. Esta
subjectividade torna diversa a consciência da arte.
Ética –
Compreender o princípio
do elevado compromisso do acto criativo é uma coordenada da evolução do
artista. A educação-instrução e guia é fundamental para o seu
desenvolvimento e cultivo das suas faculdades inatas.
Cumprir a palavra dada,
assumir a honra e os valores. Procurar ser e não ter é compromisso
árduo. A educação não muda a natureza essencial do artista, mas produz
um efeito maravilhoso, o aperfeiçoamento do carácter.
Família –
Não é possível a
ninguém desenvolver o seu carácter como unidade isolada. As relações
fundamentais da vida humana estão na família. Por maior que seja uma
grande amizade, não constitui a base da sociedade. O alicerce é o casal.
À volta do homem e da mulher agrupam-se os círculos, cada vez mais
largos, dos filhos parentes e amigos. O que o ser humano tem de mais
belo é a sua capacidade de amar. No amor está a coesão, a base da maior
felicidade.
Futuro –
Tenho em consciência,
há muitos anos um objectivo na relação da sociedade humana, adoptando um
conceito de cidadão do mundo. Acredito no homem, na necessidade do
estabelecimento de uma nova ordem mundial e na convergência do esforço
de todos para o bem-estar e unidade da raça humana.
Galerias –
Algumas galerias, salvo
raras excepções, mostram-se mais interessadas em obter lucros do que
divulgar a verdadeira arte. Não é justo que o galerista ganhe tanto como
o artista, inflacionando a produção artística; é uma actividade
estranha. Depois há faltas de apoio, e as normais “panelinhas” que são
criadas com determinados grupos. Apoiam um grupo de
artistas enquanto os restantes são praticamente esquecidos ou ignorados.
E então o que se vê, é que são sempre os mesmos a aparecer. Tudo isto está
enredado.
Guerra –
Por um acordo
internacional, todos os governos do mundo se devem desarmar
simultaneamente. As nações devem
abandonar as armas e instrumentos nefastos de carnificina humana. Deve
ser criado um governo mundial, um tribunal internacional de justiça, que
esteja acima das nações, para puder arbitrar, qualquer conflito entre
dois ou mais países.
A quantidade enorme de
energia e de dinheiro que se desperdiça com a guerra será aplicada
noutros campos para a evolução e bem-estar dos povos.
Mulher –
A mulher deve ter os
mesmos privilégios, igualdade de direitos e oportunidades que o homem. É
justo que tenha direito a uma igual educação. Não podemos esquecer que a
mulher é a primeira educadora dos seus filhos, a sua importância é de
tal modo elevada que as próximas
gerações beneficiar irão com isso. Como exalta Baha’u’llah – “A
humanidade assemelha-se a uma ave com duas asas, uma é o homem e a outra
a mulher. A ave, se ambas as asas não forem fortes e impelidas por uma
força comum, não poderá voar”.
Paris –
É uma cidade vida,
recheada de cultura, que me eleva a auto estima e me provoca forte
contributo estético que eu não dispenso. Visito Paris duas vezes
por ano e satisfaz-me passear ou visitar locais de grande simbolismo
histórico, social ou cultural. A boémia de Montmartre, de Molière,
Utrillo, Modigliani, Picasso, Lautrec, está associada a artistas há
duzentos anos. O meu “convívio” com esses ilustres fantasmas dá-me
enorme prazer. Há algo na tragédia e glória desses homens que me fascina
que me provoca uma reflexão profunda e um grande respeito às causas mais
sublimes das artes.
Tempo –
Podemos contactar, que
através da arte encontramos o objectivo final de todo o esforço humano e
de todo o progresso histórico: a abolição do tempo.
IPL –
Para
terminar, uma ousadia – diz-me, se podes, daquilo a que teu Irmão
Jeremias chama os “teus sonhos ocultos que ninguém sonha”.
HB –
A mente é um
processador de realidades. Cada ser constrói ou idealiza os sonhos que
deseja e começa por pré materializar ou mesmo materializa-los. Esta
faculdade de pensamento é individual, só a mim me diz respeito. Quando
vejo uma tela em branco assaltam-me mil soluções para a pintar. Nada nem
ninguém entra na minha mente.
IPL –
Perguntei menos do que queria e mais do que devia. Riscos calculados!
Tudo, afinal, e citando o artista, uma “renovação constante da forma de
ser e de viver”. Ao que falta, responderão uma pertinaz perscrutação da
vasta obra de Hélder Bandarra e a leitura ponderada, mais dos implícitos
do que dos explícitos, do presente livro.
Isabel Ponce de
Leão
2010 |