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Pensar a arte, pensar o seu
objecto que derivará numa hipotética conceptualização, pensar repensar
as teorias essencialistas, da indefinibilidade da arte,
estético-psicológicas ou institucionais que a tentam definir é convocar
uma parafernália de autores – Clive Bell, Morris Weitz, Saul Krike,
George Dicki, Croce… preocupados com teorias pertinentes, mas que me
fazem olhar com uma objectividade seca para a produção de Hélder
Bandarra. É precisamente isso que não quero. O que faço aqui não é fruto
de um olhar académico, outrossim o reconto de uma história de afectos
que, sem trair o rigor científico, sugira o ecletismo do autor e da
obra. |
“Festa” – acrílico sobre tela |
Poderei, quando muito, convocar Goodman, não pela teoria simbólica que
desenvolve, ainda que o pudesse fazer, aclamando outra parafernália de
autores – Peirce, Cassirer, Langer… –, antes pela sua ajustada dúvida
metódica: “Quando há arte?”. E interessa-me esta dúvida porque aqui e
agora, o que nem sempre acontece, tenho matéria para a resposta, e
arrisco: há arte quando olho a produção plástica de Hélder Bandarra.
Assumida esta postura, convoco uma defensável linha baudelairiana, e
digo, em minha defesa, da sensação de arrebatamento perante muitos dos
seus quadros. É que a obra deste artista, usando palavras de Clive Bell
(2009), está longe dos “escuros vales da mera imitação”, antes veicula
bons estados mentais, sempre em estreita cumplicidade com a vida e em
demanda do conhecimento.
De facto, a produção de Hélder Bandarra, para além da mera fruição
contemplativa e da experiência estética, também inquieta e reivindica a
interpretação e respectiva compreensão, variáveis conforme a
“enciclopédia cultural” do fruidor. Não há aqui qualquer paradoxo, antes
a conciliação do momento do deslumbramento com uma mais reflectida
interiorização cognitiva. O objecto soberano e imutável, forma pura,
desperta emoções matizadas nos seus leitores, que o sentem e pensam de
modo versátil, variado, contingente na sua intrínseca subjectividade.
Diz António José Saraiva (1993) que a arte sugere “uma geometria que o
entendimento geométrico só por si não apreende, e uma realidade empírica
que empiricamente não se explica”. Paradoxal, direi. De facto, assim é,
e ainda bem, porque, e segundo o mesmo autor, “o paradoxo é o ponto a
partir do qual a linguagem deixa de funcionar, porque entra em
contradição consigo mesma”.
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Desajustando e ajustando o paradoxo, direi que a obra de Hélder Bandarra
encerra o estatuto intimamente subjectivo da emoção estética e do juízo
do gosto, daquela inexplicável raison gourmande, fonte de prazer
e de felicidade interior. Irrompe de uma necessidade vivencial.
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“Pesca”, óleo sobre tela (grande formato) |
“Nesta sua maneira de irromper está o seu veredicto: não há mais nenhum”
(Rilke, 2002). Por isso prossigo consciente de uma decantada tautologia.
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Evoco
Gustav Klimt (1900?): “Creativity arises out of the tension between
spontaneity and limitations, the latter (like river bonks) forcing the
spontaneity into the various forms which are essential to the work of
art”. Assim é com
Hélder Bandarra. Originalidade, criatividade, labor, direi, nunca
traindo a perspectiva construtivista, na configuração do seu mundo. Sem
insidiar os códigos universais de criação, o artista reformula-os
crítica e diariamente. Contemplar a arte de Hélder Bandarra é convocar a
sua existência fenomenológica, comparada e transcendente, reivindicando
a concessão de uma certa liberdade de leitura que me permita dizer, com
Sophia de Mello Breyner Andresen (1988), que a arte em geral e a pintura
em particular, não se explica, implica. Implicada que estou nesta obra,
permito-me dizer: gosto dela porque… sim. Tout court! Atracção, sedução,
fascínio, encantamento não se explicam, vivem-se.
Pintar é aqui estado de espírito e não realidade, pois que ainda que aí
tenha a sua génese, faz, contudo, um percurso autónomo. Dela se liberta
para nela renascer transfigurada, pessoal, outra, demonstrando que só a
existência subjectiva da emoção desencadeia a existência objectiva da
obra de arte.
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"Equilíbrio da vida", acrílico sobre tela |
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"Saltimbancos", acrílico sobre tela |
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Ora a obra de Hélder Bandarra mostra, como refere Diogo Macedo (1927),
que “pintar não é trocar tintas, nem medir estradas, nem pesar luz”, por
isso me atrai, me seduz, me captura num contágio afectivo, num derrame
emotivo da sensualidade do entendimento, mas não me condena ao
irracionalismo. Cruzo razão e emoção e espreita, de imediato, o artista
artesão de uma arte laboriosa, alheia a facilitismos, que ele trabalha,
faz e refaz até dar visibilidade na tela à sua existência
fenomenológica. É numa luta de titãs, de forças cruzadas, de sentimentos
contraditórios que a obra é concebida. Nesta luta, relevo duas
coordenadas fundamentais que conduzem ao mais que evidente happy-end.
Detenho-me primeiro no desenho enquanto processo e resultado artístico,
suporte de obras bidimensionais formadas por linhas, pontos e formas
numa imitação de uma realidade sensível que recria uma nova realidade,
ou apenas a esboça deixando, neste caso, de ser um fim
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para se tornar em estrutura veicular. O gesto de Hélder Bandarra advém
de uma depurada técnica que não oblitera a linha pura, o tom de linha e,
muito particularmente, o tom puro de onde se soltam formas, figuras e
espaços que povoam os contrastantes luz / sombra.
Trata-se de uma arte sustentadora, de uma expressão que demanda uma
reciprocidade de percepções. Evoco Rembrant e Toulouse-Lautrec, Picasso
e Matisse, Paul Klee e Ingres.
Ouço também o tom avisado de Sarah Aphonso e Francisco Simões quando se
referem ao desenho como a base de toda a arte. Assim é. Hélder Bandarra
é um imenso, um enorme desenhista, o que nem sempre acontece com outros
pintores, sem que com isso deixem de ser grandes, mas não completos.
Aqui e agora, pontos e linhas corporizam visualmente a ideia tendente ao
infinito – visão subjectiva da realidade do mundo; poder encantatório do
seu desvendamento. É assim o gesto de Hélder Bandarra.
“Trapezistas”, acrílico sobre tela
Refiro agora a luz e a cor. Bem longe do tenebrismo à Caravaggio, é
antes na policromia que assenta a coerência dos estilemas do artista. O
seu poder de síntese orienta-se de acordo com um ponto de vista
multidisciplinar servido pelo domínio da física e da química, da fisiologia
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e da psicologia. Não é só a natureza da cor que interessa, é
também a sua necessidade prática, a sua ligação ao objecto, tal como na
Bauhaus. Detenho-me nessa policromia e vejo “o azul, a mais imaterial
das cores, primo inter pares, a partir da qual irrompem todas as cores
possíveis, não mais que as necessárias, servindo uma geologia de
emoções” (Isabel Ponce de Leão, 2009). Depois o branco, extremidade da
gama cromática, insinuando a ausência ou a soma de cores; paradoxal,
portanto; logo os humildes castanhos rapidamente profanados por
vermelhos e amarelos. A ambivalência do vermelho serve a conciliação de
forças centrípetas e centrífugas. É esta alquimia da cor que sustenta
uma semiótica em que a mimesis procura a poiesis: um vazio
composto e decomposto, caminho para um infinito onde o real se
transforma em imaginário e a luminosidade solar incendeia as trevas.
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Tudo, mas tudo, em demanda do onírico. Hélder Bandarra é um penitente
sonhador. Procura o sonho, constrói-o e desconstrói-o e volta ao início,
recomeça, persiste qual artesão, pisando obstinadamente os caminhos de
Sísifo. Mas a pedra empurrada por Hélder Bandarra só não fica no cimo do
monte pelo seu fazer perfeccionista e intransigente. Não por qualquer
castigo dos deuses. Aqui não se trata de um castigo mas de uma condição,
uma feliz condição.
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Obra inacabada, direi, só e apenas na justa medida em que, finda uma
unidade, o artista se lança numa outra, cada vez e sempre mais
aprimorada que a concluída. Freud e Jung sentam-se à sua mesa, anima e
animus convivem em fraternidade, e o artista procura o seu processo de
individualização e, veladamente embora, ostenta aspectos da sua vida
emocional.
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Trabalha a tela trabalhando o sonho. Não pára, não pode parar, porque
“se todos os artistas da terra parassem durante umas horas, deixassem de
produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música, fazia-se um deserto
extraordinário” (Agustina, 2008). Hélder Bandarra não pára precisamente
porque é artista e não escamoteia responsabilidades na sustentação da
terra ab-rogando desertos.
Ora “Um artista é grande quando é ele próprio, e tanto maior quanto mais
original, mais pura, mais virgem for a sua personalidade”, diz João
Gaspar Simões (1928). Evoco-o aqui como sustentáculo de tudo quanto
tenho vindo a afirmar sobre Hélder Bandarra, que poderei completar com a
postura opinativa de José Régio (1927): “Entre as faculdades
anormalmente desenvolvidas do Homem que virá a ser Artista, citaremos: a
imaginação, a sentimentalidade, a inteligência, a emotividade, etc. Um
Artista é pois um Homem que possui faculdades anormalmente
desenvolvidas; que possui a necessidade de as realizar pela
exteriorização; e que possui dons que lho permitam.”
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Estas palavras de João Gaspar Simões e de José Régio parecem-me por
demais caracterizadoras do Artista em causa. Pureza e originalidade
são-lhe peculiares; sentimentalidade, imaginação, inteligência e
emotividade, também. Por isso a sua arte é uma arte de afectos sem
escamotear o belo.
Caberá aqui questionar o que é o belo em arte. Poderia recuar a Kant e a
tantos outros que o precederam e sucederam e, com base nos seus estudos
e entrando nos domínios da Estética, relacionar a experiência do belo
com a realização das habilidades supremas do ser humano.
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Prefiro, contudo, seguir uma via mais imediatista e questionar antes o
que é o belo, melhor dito, o que é o encontro com o belo na arte de
Hélder Bandarra. Convoco Freud e quero crer que não me deparo com algo
pronto e codificado, com uma fórmula conceptual, antes com algo
diferente um non so che involuntário que brota do inconsciente sob os
efeitos de uma pulsão que pensa, sonha e diz, e cuja função terapêutica
é uma forma de conhecimento.
O
belo, em Hélder Bandarra, é um modus vivendi que giza a obra de arte e
que provoca emoção estética, como reivindica Clive Bell (2009): “O ponto
de partida de todos os sistemas estéticos deve ser a experiência pessoal
de uma emoção particular”. Assim é, de facto, porque: “A grandeza dum
espírito está na pluralidade e plenitude da sua sensibilidade. Todo o
vasto espírito é sempre um tanto santo e outro tanto demoníaco. Todo o
artista exagera ou dilui, aviva ou simplifica” (Agustina, 2008).
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Ora todos estes postulados se presentificam em temas e motivos coerentes
e sistemáticos nesta obra pictórica. Quero dizer que, apesar das
diferentes fases (nomenclatura perversa mas necessária a uma
sistematização), que a pintura de Hélder Bandarra atravessa, há certas
constantes que urge observar porque reveladoras de opções estéticas e
experiências pessoais.
Dos primórdios à actualidade temas como a solidão, o intimismo, o
sofrimento, a alegria, a infância, a arte, a natureza, o trabalho são
células de um outro, matricial e crucial, que o artista desenvolve no
percurso entre a figuração e a abstracção – refiro-me concretamente ao
sonho, essa arte poética involuntária que refere Kant (1926). Sinto-me
efectivamente em presença de um longo peregrinar em demanda do onírico,
cada vez mais volátil, mais depurado, mais desconstruído – uma catadupa
de imagens, pensamentos e fantasias que irrompem na mente. Sinto, com
António Tabucchi (2006), que “o ponto de encontro entre a criação
artística e a vida talvez esteja naquele espaço privilegiado que é o
sonho”.
Vejo o sonho em Hélder Bandarra menos na perspectiva freudiana de
realização de desejos, e mais na junguiana enquanto forma de expressão
do inconsciente. Há na sua arte uma procura de equilíbrio através da
passagem para o consciente de conteúdos do inconsciente.
O
sonho é aqui uma força natural viabilizadora da individualização do
artista num processo de rotatividade que me faz evocar Helena Blavatsky
(1888): “o homem faz de si, a imagem dos seus sonhos”.
Este macrotema constelar é servido por motivos diversificados aos quais
compete criar a imagem da grande ilusão. São os anjos e os santos, os
barcos e o casario, os trabalhadores e as mulheres, as crianças e o mar,
os brinquedos e as guitarras e toda a parafernália do mundo circense e
de la commedia dell’arte, muito na linha de Almada, que
concretizam o mundo onírico do artista suportando e corporizando
preocupações, sentimentos e emoções.
O
estudo da obra de arte exige que se entre em conexão com arquétipos. Por
mais independente que ela se configure há sinais que remetem para
modelos anteriores. Não contexto a independência do fazer artístico de
Hélder Bandarra e sinto que nele “A inspiração é um estado de fé no seio
da humildade absoluta” (Garcia Lorca, 1978). Não contesto também a sua
grandeza e a sua mestria, mas “Há na história de toda a arte uma
filiação. Quando nos apercebemos de um grande mestre, verificamos sempre
que se aproveitou do que os seus antecessores tinham de bom e que é isso
precisamente que o torna grande” (Goethe, 1827).
Tal como os biólogos enjeitam a aparição instintiva da matéria viva, “a
criação artística em geral também não nasce espontaneamente do nada”
(Eugénio Lisboa, 2009).
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Estando, como estou, com um grande mestre in presentia, querendo
como quero desvendar a sua arte, não posso agir divorciada de modelos,
tendências, estéticas, movimentos… que, explicita ou implicitamente, o
influenciaram sem que isso constitua um arrombo na sua originalidade
outrossim uma mais-valia numa produção que, sendo reflexo de um eu, é-o,
concomitantemente, das circunstâncias que lhe couberam vivenciar, e de
uma visível aprendizagem que orientam a linha evolutiva da sua obra,
numa síntese-soma como o próprio admite: “Pinto o que pinto. Mas se o
que pinto, o escolhi, é fruto da minha memória plástica de anos de
experiências plenas de emoções estéticas, sínteses e reflexões”. |
“Menino com carro de pau”, acrílico sobre tela |
As primeiras manifestações artísticas de Hélder Bandarra encerram um
projecto de demanda de um locus que, aceitando a transitoriedade,
persegue a perfeição. Inserindo-se num fenómeno geracional começa por
publicar em jornais – concretamente o Jornal Litoral de Aveiro.
São desenhos a tinta-da-china, a grafite e a carvão que, sem qualquer
filiação, descobrem a ambiência vivencial do artista, e revelam o poder
do seu traço.
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76 /
Aveiro é a cidade. O mar, a ria e os seus canais, a pesada faina dos
pescadores são motivos obsessivos como o próprio afirma: “A pequena
embarcação as redes e outros utensílios de pesca fizeram despertar em
mim o desejo plástico de dominar pelo desenho ou pintura toda essa magia
do homem do mar, nunca deixando de me comover ao executar esses
trabalhos”.
“O apanha luas”, óleo sobre tela
Também a feira – que decorria em Março na cidade – e o mundo circense se
presentificam em palhaços e acrobatas, carrosséis e brinquedos, motivos
que não mais abandonará.
O
sonho – o tal macrotema a que já aludi – é emergente – às vezes, raras
vezes, como pesadelo –, não prescindindo do mundo da infância, do
trabalho, do sacrifício, e deixando antever um intimismo latente.
Claramente influenciado pelas artes gráficas, desenvolve um projecto de
auto-formação privilegiando o desenho. É o artista artesão confesso que
persegue obsessivamente o conhecimento, como dá conta: “O meu pai
arranjava-me revistas americanas, que comprava ao peso num alfarrabista,
que eram ricamente ilustradas por mestres famosos do desenho como
Rokwell, Fawsset, Connor Doyle. Cito, entre outras, as revistas Saturday
Evening Post a Colliers e Ladies.
Tentava fazer igual copiando;
exercitava e visualizava técnicas. As horas passavam e eu, agarrado aos
meus exercícios, sentia o prazer de ter lápis, papel e borracha para
poder desenhar.”
Trata-se de uma fase de aprendizagem que, ao começar pelo processo
embrionário do desenho, criou bases sólidas no percurso do artista. Não
há influências de estéticas ou movimentos.
Os primeiros desenhos e pinturas de Hélder Bandarra são, acima de tudo,
resultantes das circunstâncias vividas – onde não será despiciendo
evidenciar um pendor provincial – e da vontade de construção do futuro.
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O
cruzamento das estéticas modernistas tem, na arte de Hélder Bandarra, um
lugar electivo.
O
artista assimilou a grande revolução sofrida pelas artes visuais que,
começando a olhar o quotidiano traduziam, sem tabus, a mais íntima
percepção da realidade liberta de regras e convenções. Não havendo,
propriamente, na presente obra, grandes reflexos impressionistas – em
que o modernismo teve a sua génese pela atitude anati-académica assumida
–, é notório o conhecimento das técnicas de Manet, Monet, Degas e Renoir
sobretudo pela nova concepção de luz e cor. |
“Na terra e no mar”, acrílico sobre tela. |
O
artista apreende também toda a série de movimentos fragmentados em
ruptura com padrões anteriores num conhecimento perfeito do modernismo e
das vanguardas. O expressionismo à Munch, o fauvismo à Vlamink, o
cubismo à Picasso, o dadaísmo à Duchamp, o simultaneismo e o
interseccionismo à Delaunay e mesmo o surrealismo à Dali fundem-se e
confundem-se na produção de Hélder Bandarra sem que, por tal, se quebre
a coerência, o equilíbrio, a seriedade e o rigor que a caracterizam. Não
há seguidismos obsessivos,
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antes reflexos de um estudo aturado e recriado pelo artista onde,
moderadamente, espreitam, discreta, muito discretamente, Darwin e Marx,
Freud e Nietzsche. Estou perante uma obra autónoma que não renega o
passado, antes se mostra consciente da sua importância reconhecendo,
como escreveu Álvaro de Campos (1912?), “que nenhuma geração transmite a
outra a sua sensibilidade. Transmite-lhe apenas a inteligência que teve
dessa sensibilidade”.
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Mas se as manifestações modernistas emergentes fora de Portugal tiveram
claras influências na arte de Hélder Bandarra – não esqueço que estudou
em Paris, cidade onde tudo acontecia –, as portuguesas foram, a meu ver,
determinantes. O artista abandona a pintura naturalista romântica na
linha de Malhoa, centra-se na nova estética internacional e demanda
Cézanne e Delaunay em Eduardo Viana ou Modigliani e Braque em Amadeo de
Sousa-Cardozo. Dórdio Gomes, Abel Manta, Mário Eloy, Diogo de Macedo e,
muito particularmente, Almada Negreiros são referências e, embora de
forma muito longínqua, espreita o vento surrealizante de Cesariny e
Vespeira.
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“Encontro”, acrílico sobre tela |
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“Repouso na mesa”, acrílico sobre tela (0,73 x 0,60) – 1993 |
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De todos, Amadeo e Almada, sobretudo este último, são figuras tutelares.
As cores usadas, os grandes temas enroupados pelo macrotema do sonho, e
os motivos já atrás aduzidos são disso garante.
Hélder Bandarra não lava as mãos no milenar lavatório de Pilatos, antes
assume explicitamente, na sua obra, temas e motivos usando técnicas em
perfeita sintonia com os ditames dos 1.º, 2.º e 3.º (?) modernismo
portugueses, num feliz conciliábulo com as suas idiossincrasias
artísticas das quais relevo a excelência do desenho particularmente
manifesta numa série de grafites.
Coexistindo com os tumultos da modernidade, sobretudo com o
expressionismo, surge na pintura de Hélder Bandarra um forte (ainda que
escasso em termos de produção) pendor neo-realista preocupado “por um
lado com a narração da verdade, da verdade sem deturpação, tal como pode
vê-la e amá-la um homem ascendente; por outro lado, e simultaneamente,
com o sonho – sem o qual nenhuma obra pode viver e actuar, o sonho
melhor de todos os sonhos – que é a parte do real que tende para ele”
(Mário Dionísio, 1945).
Ecoam na obra de Hélder Bandarra as vozes de Álvaro Cunhal (1939), de
Júlio Pomar (1943) e do Vespeira (1945) da “Carta Aberta aos Pintores
Portugueses”. Há nela a consciência de que “a transformação da arte
deriva da transformação da mentalidade humana e que aquela deve ser o
reflexo da realidade da época, neste caso uma tendência histórica de
matriz progressista, assegurada pelo socialismo. O povo seria a base e o
objecto da pintura, não o seu fim, assumindo o artista essa mesma
condição” (Isabel Ponce de Leão, 2002).
A
tendência neo-realista de Hélder Bandarra tem um carácter peculiar,
contém a sua verdade sócio-cultural; obedecendo a uma contestação
emergente, não cede ao facilitismo da mera intervenção antes privilegia
o rigor estético. É densa em ternura humana, em factos belos passados
com homens comuns, possuindo o seu traço um sentido de síntese que faz
eliminar elementos supérfluos. O artista sabe e demonstra que “A arte
não pode ser política, nem sujeição social, nem glosa duma ideia que faz
época; nem mesmo pode estar de qualquer forma aliada ao conceito
«progresso». É algo mais. É o próprio alento humano para lá da morte de
todas as quimeras, da fadiga de todas as perguntas sem solução”
(Agustina, 2009).
Destarte, perseguindo um dos seus temas electivos, presentifica toda a
faina do mar em pescadores e varinas, barcos e canastras que insinuam a
força do trabalho. Não se tratando de uma arte comprometida segundo os
cânones mais ortodoxos do neo-realismo, revela uma enorme preocupação
estética sem descurar as circunstâncias histórico-sociais envolventes.
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Nem Portinari, nem Rivera; nem Mário Dionísio, nem Arco. Talvez Pomar na
sua primeira fase. Mas pouco, muito pouco. O neo-realismo de Hélder
Bandarra é, acima de tudo, uma inscrição social simbólica do sujeito, é
a sua verdade sócio-cultural, como referi, é a prova acabada de que
“Arte e vida não são uma mesma coisa, mas podem tornar-se unidas” (Bakhtin,
1970).
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Trata-se de uma fase breve, mas não menor, pela excelência do traço, que
parece fazer a mediação entre os entusiasmos modernistas e a nuvem
onírica da desconstrução.
É, justamente, a desconstrução e o sonho que imperam na sua última fase
da produção.
O
artista entra num estado de lúcida letargia. Vê e perscruta o real
através do sonho. Desconstrói, primeiro timidamente, depois com
veemência na demanda do onírico. O desenho lá está, correcto, perfeito
mas expressivamente desmantelado, ousadamente desmoronado,
significativamente difuso. Trata-se de uma natural ruptura, como o
próprio afirma: “A ruptura é uma auto-realização assumida, não é a
personalidade alterada. A minha pintura mudou.
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“S. Gonçalinho, o Mar e o Céu”, acrílico sobre tela |
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“Rapaz com arco”, (0,73 x 0,60) acrílico - 1993 |
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É
o consciente presente, problemático, frente a um desafio «inquietante»
por resolver, mas com novas coordenadas.”
Não me deparo, pois, com um problema de incoerência, outrossim de uma
evolução pessoal e artística. É a necessidade de libertar a arte de
irrelevâncias simplificando-a, “pois a arte é a criação de forma
significante, e a simplificação é o que liberta a forma significante
daquilo que ela não é” (Clive Bell, 2009). Alcança o artista o estádio
superior da arte pura em que
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“os vestígios do desejo prático podem ser completamente eliminados, a
pintura pode falar de espírito para espírito através de uma língua
puramente artística; ela constitui um domínio de seres picto-espirituais”.
(Kandinsky, 2008). Trata-se de uma arte sintética baseada numa ciência
estética que demanda a unicidade.
Refiro-me, concretamente, ao abstraccionismo expressionista ou
expressionismo abstracto em parte sob a influência dos nova-iorquinos
Pollock, Wilhelm e Kooning, muitas vezes confundido com a Action
painting. Negando uma concepção clássica-académica, bane as áreas nobres
da tela elaborando uma composição holística. Abandona o compromisso de
representação da realidade aparente; não reproduzindo motivos concretos,
dá um primeiríssimo plano a formas, que cria no acto de pintura, e a uma
sinfonia cromática, que demanda o lirismo, para exprimir emoções, na
senda de Kandinski e Paul Klee. Destarte, agiliza a liberdade
interpretativa gerida pela sensibilidade individual.
O
abstraccionismo expressionista é, em Hélder Bandarra, tendencialmente
informal, ainda que assomem, recorrentemente, vestígios de geometrismo
herdeiro do interseccionismo e
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do cubismo. As formas e as cores brotam impulsivamente na livre
trajectória da emoção, com absoluto predomínio do sentimento; é a
expressão de uma emoção e não de uma imagem filtrada pelo intelecto; é
uma revolta do espírito contra a precisão, o racionalismo e a exactidão.
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Palhaço rico e pobre”, (0,73 x 0,60) acrílico sobre tela |
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“Crianças
com vira-vento”, (0,73 x 0,60) acrílico sobre tela |
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Linhas e cores têm virtudes poéticas, musicais configuradoras das
realidades do mundo interior do artista. A luminosidade oscila entre as
tonalidades delicadas e feéricas e outras arrojadas e vulcânicas,
premonitórias da deambulação entre lirismo e dramatismo.
A
obra de arte reflecte-se na superfície desmaterializada da consciência e
tenta inventar a vida, tornar inteligível a sua palpitação e averiguar
da ordem de tudo o que vive, tal como acontece em telas de Bual, Jorge
Oliveira ou D’ Assumpção e, muito de passagem, de Nadir Afonso. É a
maturidade que se manifesta no pensamento que busca a vitalidade
comunicativa.
É
a temperança que se instala percorridos que estão os caminhos, todos os
caminhos conducentes à emancipação estabelecedora do compromisso entre a
ordem e a desordem.
Por vezes, o artista faz pausas. Há uma linha evolutiva que permanece
conciliando-se com o apelo da diversidade. Fugas, chamarei aos
magníficos desenhos produzidos no Outono de 2009 em Paris. Agora o
artista exulta. Tem uma relação mais directa com o papel; e “como não há
coisa mais escrupulosa no mundo que papel e pena” (Pr. António Vieira,
1650), a mão prolonga-se no lápis e arranca da brancura da folha
silenciosa, cenas lembradas e imaginadas.
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Paul Gauguin, mostrando
desenhos a Van Gogh, em casa deste na rua Lepic, Montmartre, Paris -
pág. 91 |
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Visita
de Picasso ao Mestre Auguste Renoir em 1912 – Paris |
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O
desenho é, em Hélder Bandarra, o elemento fundamental da criação
artística. É o
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91 /
tom puro que usa para construir formas através dos possíveis
relacionamentos luz /sombra.
É
a textura suave dos meios-tons em que os dégradés conseguem a ablação da
linha. É o pormenor do insignificante que ganha protagonismo.
De Rembrandt a Rubens, de Goya a Fragonard, de Dégas a Van Gogh ou de
Matisse a Picasso, a capacidade de desenhar sempre se alçou como marca
distintiva do grande artista.
Também Hélder Bandarra pousou o grafite sobre a folha de papel branca e
viajou pelos ateliers parisinos de Toulouse-Lautrec, Picasso e Renoir;
encontrou-se no Café La Rotonde com Modigliani e Van Gogh e entrou em
casa deste acompanhado de Paul Gauguin. Estou em Montmartre, guarida de
arte e artistas, e contemplo seis magníficos desenhos metapictóricos.
Neles está vertida a preocupação do ser enquanto artista. Neles vejo
artistas que fazem a sua arte, que a mostram, que a ensinam, que a
difundem, naquela ambiência de humildade material e grandeza espiritual
propícia aos génios.
/ 93 /
Cinco
destes desenhos são tutelados por um anjo, “la créature dans laquelle
apparait déjà réalisé la transformacion du visible en invisible que nous
accomplissons” (Rilke, 1926). Assim se cumpre o sonho e a esperança de
uma evolução / inspiração supra-humanas e assim se cumpre o pressagiado
por Diego Rivera (1953): “Every great work of art has two face, one
toward its own time and one toward the future, toward eternity”.
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Modigliani mostrando a Van Gogh, alguns dos seus desenhos. Café “La
Rotonde” – Paris |
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Picasso no seu estúdio, explicando a Matisse a génese do quadro. “As
meninas de Avignon” – Paris, 1907 |
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Esboços lhes chama o autor, obra acabada direi eu, pela superação dos
próprios limites “pela fusão do detalhe minucioso, dos virtuosismos da
técnica, dos rigores e precisão do desenho e da qualidade dentro de uma
síntese de efeito de que não se despolariza o efeito geral” (Abel
Salazar, 2000). Exercendo a sua vocação de desenhador compulsivo, o
lápis foge-lhe da realidade visual para a integral – a imaginação jamais
a poderá aperfeiçoar.
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Ao mencionar, atrás, os vários períodos da pintura de Hélder Bandarra,
fiz a opção de um mal menor. Não quis erguer marcos nem fronteiras,
muito menos compartimentos estanques.
Fi-lo por uma questão de sistematização, sem preocupações cronológicas
ou diacrónicas que se poderiam tornar perversas. Fi-lo ainda para
evidenciar a sua versatilidade e, concomitantemente, a sua coerência.
Explicito: estas fases não são independentes no tempo e no espaço;
coexistem, misturam-se, são intrínsecas em si e no seu génio; sustenta
esta afirmação o facto de o artista raramente datar as suas obras, o que
poderá não ser inocente.
De resto, todo o aparato paratextual da sua obra é omisso e contido. Não
sei se para o bem se para o mal, porque concedendo uma maior liberdade
interpretativa, arrisca a omissão de certos pormenores pelos leitores
mais incautos.
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Naturalmente que a primeira fase desvenda a frescura de uma juventude
que pode, por vezes, ser insegura. Mas essa insegurança é medida,
cônscia, preventiva, e remete para uma
prossecução avisada e consistente. Não há hesitações. Hélder Bandarra
tem já o seu rumo definido, e é com perseverança que o vai perseguindo;
para tal, torneia a dicotomia tirânica entre o cognitivo e o emotivo, e,
através do estudo e do númen, concilia-os num tom harmónico que domina
todos os sintomas do estético. |
Artista no seu atelier – 2007 |
Nenhuma tendência do modernismo e das vanguardas lhe é alheia, e a todas
atende com enorme acuidade, ciente de que “A arte depende da sociedade e
ajuda á sua manutenção – existe porque nenhum homem é uma ilha, e ajuda
a garanti-lo” (Goodman, 2006).
Sendo o abstraccionismo o seu ponto de chegada, o seu ex libris actual,
não deixa de reconhecer: “constantes da minha obra, sublimados estão
períodos figurativos, testemunhos da minha identidade de percurso”.
Justamente, aqui está plasmado o continuum evolutivo de um
processo que se foi maturando e edificando.
Método, critério, abertura de espírito, perseverança são epítetos que
cabem ao modus faciendi de Hélder Bandarra que me parece bem
caracterizado nas sábias palavras de Agustina (2009): “Os grandes
artistas não vivem em conflito com as suas opções. Tudo neles é vida,
violenta, sagrada, e a inspiração depende disso; depois com metódica
certeza, é preciso completar a força inicial com a força da disciplina,
sem, contudo, perturbar a criação”.
De facto a arte é, para Hélder Bandarra, uma maneira de viver lúcida e
assumida, sabendo como sabe que “ser artista é ser bom e é ser sábio e é
ser humilde; é saber de antemão que vai ser sacrificado no próprio fogo
que o excita e correr para a morte risonhamente, lançando beijos e
bênçãos aos mirones que o aplaudem ou pateiam” (Diogo de Macedo, 1927).
Estes pensamentos, que ora aqui verto sobre a obra de Hélder Bandarra,
não têm a pretensão de um discurso encomiástico, tão só tentam alertar
para esta epifania do sonho que, atravessando a pampa da vida, se cruza
com o Belo, acaso o último dos deuses a merecer preces diárias.
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Fico do lado daqueles que, mais que aplausos, lhe professam respeito,
admiração e ternura, deixando-me embalar pela longínqua, muito longínqua
voz do grego Simónides de Ceos (500 a. C.):
Poema pictura loquens, pictura poema
silens.
Isabel Ponce de Leão
2010
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