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Hélder Bandarra, O Percurso do Artista, Aveiro, Novembro 2010, 180 páginas.

3. Vozes Críticas – por Isabel Ponce de Leão

Na arte, a única distinção importante é

a distinção entre boa arte e má arte.

Clive Bell

“Festa” – acrílico sobre tela - pág. 61

Pensar a arte, pensar o seu objecto que derivará numa hipotética conceptualização, pensar repensar as teorias essencialistas, da indefinibilidade da arte, estético-psicológicas ou institucionais que a tentam definir é convocar uma parafernália de autores – Clive Bell, Morris Weitz, Saul Krike, George Dicki, Croce… preocupados com teorias pertinentes, mas que me fazem olhar com uma objectividade seca para a produção de Hélder Bandarra. É precisamente isso que não quero. O que faço aqui não é fruto de um olhar académico, outrossim o reconto de uma história de afectos que, sem trair o rigor científico, sugira o ecletismo do autor e da obra.

“Festa” – acrílico sobre tela

Poderei, quando muito, convocar Goodman, não pela teoria simbólica que desenvolve, ainda que o pudesse fazer, aclamando outra parafernália de autores – Peirce, Cassirer, Langer… –, antes pela sua ajustada dúvida metódica: “Quando há arte?”. E interessa-me esta dúvida porque aqui e agora, o que nem sempre acontece, tenho matéria para a resposta, e arrisco: há arte quando olho a produção plástica de Hélder Bandarra.

Assumida esta postura, convoco uma defensável linha baudelairiana, e digo, em minha defesa, da sensação de arrebatamento perante muitos dos seus quadros. É que a obra deste artista, usando palavras de Clive Bell (2009), está longe dos “escuros vales da mera imitação”, antes veicula bons estados mentais, sempre em estreita cumplicidade com a vida e em demanda do conhecimento.

De facto, a produção de Hélder Bandarra, para além da mera fruição contemplativa e da experiência estética, também inquieta e reivindica a interpretação e respectiva compreensão, variáveis conforme a “enciclopédia cultural” do fruidor. Não há aqui qualquer paradoxo, antes a conciliação do momento do deslumbramento com uma mais reflectida interiorização cognitiva. O objecto soberano e imutável, forma pura, desperta emoções matizadas nos seus leitores, que o sentem e pensam de modo versátil, variado, contingente na sua intrínseca subjectividade.

Diz António José Saraiva (1993) que a arte sugere “uma geometria que o entendimento geométrico só por si não apreende, e uma realidade empírica que empiricamente não se explica”. Paradoxal, direi. De facto, assim é, e ainda bem, porque, e segundo o mesmo autor, “o paradoxo é o ponto a partir do qual a linguagem deixa de funcionar, porque entra em contradição consigo mesma”.

/ 61 / Desajustando e ajustando o paradoxo, direi que a obra de Hélder Bandarra encerra o estatuto intimamente subjectivo da emoção estética e do juízo do gosto, daquela inexplicável raison gourmande, fonte de prazer e de felicidade interior. Irrompe de uma necessidade vivencial.

“Pesca”, óleo sobre tela (grande formato) - pág.62

 “Pesca”, óleo sobre tela (grande formato)

“Nesta sua maneira de irromper está o seu veredicto: não há mais nenhum” (Rilke, 2002). Por isso prossigo consciente de uma decantada tautologia. / 63 /

Evoco Gustav Klimt (1900?): “Creativity arises out of the tension between spontaneity and limitations, the latter (like river bonks) forcing the spontaneity into the various forms which are essential to the work of art”. Assim é com Hélder Bandarra. Originalidade, criatividade, labor, direi, nunca traindo a perspectiva construtivista, na configuração do seu mundo. Sem insidiar os códigos universais de criação, o artista reformula-os crítica e diariamente. Contemplar a arte de Hélder Bandarra é convocar a sua existência fenomenológica, comparada e transcendente, reivindicando a concessão de uma certa liberdade de leitura que me permita dizer, com Sophia de Mello Breyner Andresen (1988), que a arte em geral e a pintura em particular, não se explica, implica. Implicada que estou nesta obra, permito-me dizer: gosto dela porque… sim. Tout court! Atracção, sedução, fascínio, encantamento não se explicam, vivem-se.

Pintar é aqui estado de espírito e não realidade, pois que ainda que aí tenha a sua génese, faz, contudo, um percurso autónomo. Dela se liberta para nela renascer transfigurada, pessoal, outra, demonstrando que só a existência subjectiva da emoção desencadeia a existência objectiva da obra de arte. / 64 /

  "Equilíbrio da vida", acrílico sobre tela - pág. 63   "Saltimbancos", acrílico sobre tela - pág. 65  
 

"Equilíbrio da vida", acrílico sobre tela

 

"Saltimbancos", acrílico sobre tela

 

Ora a obra de Hélder Bandarra mostra, como refere Diogo Macedo (1927), que “pintar não é trocar tintas, nem medir estradas, nem pesar luz”, por isso me atrai, me seduz, me captura num contágio afectivo, num derrame emotivo da sensualidade do entendimento, mas não me condena ao irracionalismo. Cruzo razão e emoção e espreita, de imediato, o artista artesão de uma arte laboriosa, alheia a facilitismos, que ele trabalha, faz e refaz até dar visibilidade na tela à sua existência fenomenológica. É numa luta de titãs, de forças cruzadas, de sentimentos contraditórios que a obra é concebida. Nesta luta, relevo duas coordenadas fundamentais que conduzem ao mais que evidente happy-end.

Detenho-me primeiro no desenho enquanto processo e resultado artístico, suporte de obras bidimensionais formadas por linhas, pontos e formas numa imitação de uma realidade sensível que recria uma nova realidade, ou apenas a esboça deixando, neste caso, de ser um fim / 65 / para se tornar em estrutura veicular. O gesto de Hélder Bandarra advém de uma depurada técnica que não oblitera a linha pura, o tom de linha e, muito particularmente, o tom puro de onde se soltam formas, figuras e espaços que povoam os contrastantes luz / sombra.

Trata-se de uma arte sustentadora, de uma expressão que demanda uma reciprocidade de percepções. Evoco Rembrant e Toulouse-Lautrec, Picasso e Matisse, Paul Klee e Ingres.

Ouço também o tom avisado de Sarah Aphonso e Francisco Simões quando se referem ao desenho como a base de toda a arte. Assim é. Hélder Bandarra é um imenso, um enorme desenhista, o que nem sempre acontece com outros pintores, sem que com isso deixem de ser grandes, mas não completos. Aqui e agora, pontos e linhas corporizam visualmente a ideia tendente ao infinito – visão subjectiva da realidade do mundo; poder encantatório do seu desvendamento. É assim o gesto de Hélder Bandarra.

“Trapezistas”, acrílico sobre tela - pág. 66
“Trapezistas”, acrílico sobre tela

Refiro agora a luz e a cor. Bem longe do tenebrismo à Caravaggio, é antes na policromia que assenta a coerência dos estilemas do artista. O seu poder de síntese orienta-se de acordo com um ponto de vista multidisciplinar servido pelo domínio da física e da química, da fisiologia / 66 / e da psicologia. Não é só a natureza da cor que interessa, é também a sua necessidade prática, a sua ligação ao objecto, tal como na Bauhaus. Detenho-me nessa policromia e vejo “o azul, a mais imaterial das cores, primo inter pares, a partir da qual irrompem todas as cores possíveis, não mais que as necessárias, servindo uma geologia de emoções” (Isabel Ponce de Leão, 2009). Depois o branco, extremidade da gama cromática, insinuando a ausência ou a soma de cores; paradoxal, portanto; logo os humildes castanhos rapidamente profanados por vermelhos e amarelos. A ambivalência do vermelho serve a conciliação de forças centrípetas e centrífugas. É esta alquimia da cor que sustenta uma semiótica em que a mimesis procura a poiesis: um vazio composto e decomposto, caminho para um infinito onde o real se transforma em imaginário e a luminosidade solar incendeia as trevas.

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/ 67 / Tudo, mas tudo, em demanda do onírico. Hélder Bandarra é um penitente sonhador. Procura o sonho, constrói-o e desconstrói-o e volta ao início, recomeça, persiste qual artesão, pisando obstinadamente os caminhos de Sísifo. Mas a pedra empurrada por Hélder Bandarra só não fica no cimo do monte pelo seu fazer perfeccionista e intransigente. Não por qualquer castigo dos deuses. Aqui não se trata de um castigo mas de uma condição, uma feliz condição. / 68 /

Obra inacabada, direi, só e apenas na justa medida em que, finda uma unidade, o artista se lança numa outra, cada vez e sempre mais aprimorada que a concluída. Freud e Jung sentam-se à sua mesa, anima e animus convivem em fraternidade, e o artista procura o seu processo de individualização e, veladamente embora, ostenta aspectos da sua vida emocional. / 69 /

Trabalha a tela trabalhando o sonho. Não pára, não pode parar, porque “se todos os artistas da terra parassem durante umas horas, deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música, fazia-se um deserto extraordinário” (Agustina, 2008). Hélder Bandarra não pára precisamente porque é artista e não escamoteia responsabilidades na sustentação da terra ab-rogando desertos.

Ora “Um artista é grande quando é ele próprio, e tanto maior quanto mais original, mais pura, mais virgem for a sua personalidade”, diz João Gaspar Simões (1928). Evoco-o aqui como sustentáculo de tudo quanto tenho vindo a afirmar sobre Hélder Bandarra, que poderei completar com a postura opinativa de José Régio (1927): “Entre as faculdades anormalmente desenvolvidas do Homem que virá a ser Artista, citaremos: a imaginação, a sentimentalidade, a inteligência, a emotividade, etc. Um Artista é pois um Homem que possui faculdades anormalmente desenvolvidas; que possui a necessidade de as realizar pela exteriorização; e que possui dons que lho permitam.”  / 70 /

Estas palavras de João Gaspar Simões e de José Régio parecem-me por demais caracterizadoras do Artista em causa. Pureza e originalidade são-lhe peculiares; sentimentalidade, imaginação, inteligência e emotividade, também. Por isso a sua arte é uma arte de afectos sem escamotear o belo.

Caberá aqui questionar o que é o belo em arte. Poderia recuar a Kant e a tantos outros que o precederam e sucederam e, com base nos seus estudos e entrando nos domínios da Estética, relacionar a experiência do belo com a realização das habilidades supremas do ser humano. / 71 /

Prefiro, contudo, seguir uma via mais imediatista e questionar antes o que é o belo, melhor dito, o que é o encontro com o belo na arte de Hélder Bandarra. Convoco Freud e quero crer que não me deparo com algo pronto e codificado, com uma fórmula conceptual, antes com algo diferente um non so che involuntário que brota do inconsciente sob os efeitos de uma pulsão que pensa, sonha e diz, e cuja função terapêutica é uma forma de conhecimento.

O belo, em Hélder Bandarra, é um modus vivendi que giza a obra de arte e que provoca emoção estética, como reivindica Clive Bell (2009): “O ponto de partida de todos os sistemas estéticos deve ser a experiência pessoal de uma emoção particular”. Assim é, de facto, porque: “A grandeza dum espírito está na pluralidade e plenitude da sua sensibilidade. Todo o vasto espírito é sempre um tanto santo e outro tanto demoníaco. Todo o artista exagera ou dilui, aviva ou simplifica” (Agustina, 2008). / 72 /

Ora todos estes postulados se presentificam em temas e motivos coerentes e sistemáticos nesta obra pictórica. Quero dizer que, apesar das diferentes fases (nomenclatura perversa mas necessária a uma sistematização), que a pintura de Hélder Bandarra atravessa, há certas constantes que urge observar porque reveladoras de opções estéticas e experiências pessoais.

Dos primórdios à actualidade temas como a solidão, o intimismo, o sofrimento, a alegria, a infância, a arte, a natureza, o trabalho são células de um outro, matricial e crucial, que o artista desenvolve no percurso entre a figuração e a abstracção – refiro-me concretamente ao sonho, essa arte poética involuntária que refere Kant (1926). Sinto-me efectivamente em presença de um longo peregrinar em demanda do onírico, cada vez mais volátil, mais depurado, mais desconstruído – uma catadupa de imagens, pensamentos e fantasias que irrompem na mente. Sinto, com António Tabucchi (2006), que “o ponto de encontro entre a criação artística e a vida talvez esteja naquele espaço privilegiado que é o sonho”.

Vejo o sonho em Hélder Bandarra menos na perspectiva freudiana de realização de desejos, e mais na junguiana enquanto forma de expressão do inconsciente. Há na sua arte uma procura de equilíbrio através da passagem para o consciente de conteúdos do inconsciente.

O sonho é aqui uma força natural viabilizadora da individualização do artista num processo de rotatividade que me faz evocar Helena Blavatsky (1888): “o homem faz de si, a imagem dos seus sonhos”.

Este macrotema constelar é servido por motivos diversificados aos quais compete criar a imagem da grande ilusão. São os anjos e os santos, os barcos e o casario, os trabalhadores e as mulheres, as crianças e o mar, os brinquedos e as guitarras e toda a parafernália do mundo circense e de la commedia dell’arte, muito na linha de Almada, que concretizam o mundo onírico do artista suportando e corporizando preocupações, sentimentos e emoções.

O estudo da obra de arte exige que se entre em conexão com arquétipos. Por mais independente que ela se configure há sinais que remetem para modelos anteriores. Não contexto a independência do fazer artístico de Hélder Bandarra e sinto que nele “A inspiração é um estado de fé no seio da humildade absoluta” (Garcia Lorca, 1978). Não contesto também a sua grandeza e a sua mestria, mas “Há na história de toda a arte uma filiação. Quando nos apercebemos de um grande mestre, verificamos sempre que se aproveitou do que os seus antecessores tinham de bom e que é isso precisamente que o torna grande” (Goethe, 1827).

Tal como os biólogos enjeitam a aparição instintiva da matéria viva, “a criação artística em geral também não nasce espontaneamente do nada” (Eugénio Lisboa, 2009).

“Menino com carro de pau”, acrílico sobre tela - pág. 73

/ 75 / Estando, como estou, com um grande mestre in presentia, querendo como quero desvendar a sua arte, não posso agir divorciada de modelos, tendências, estéticas, movimentos… que, explicita ou implicitamente, o influenciaram sem que isso constitua um arrombo na sua originalidade outrossim uma mais-valia numa produção que, sendo reflexo de um eu, é-o, concomitantemente, das circunstâncias que lhe couberam vivenciar, e de uma visível aprendizagem que orientam a linha evolutiva da sua obra, numa síntese-soma como o próprio admite: “Pinto o que pinto. Mas se o que pinto, o escolhi, é fruto da minha memória plástica de anos de experiências plenas de emoções estéticas, sínteses e reflexões”.

“Menino com carro de pau”, acrílico sobre tela

As primeiras manifestações artísticas de Hélder Bandarra encerram um projecto de demanda de um locus que, aceitando a transitoriedade, persegue a perfeição. Inserindo-se num fenómeno geracional começa por publicar em jornais – concretamente o Jornal Litoral de Aveiro.

São desenhos a tinta-da-china, a grafite e a carvão que, sem qualquer filiação, descobrem a ambiência vivencial do artista, e revelam o poder do seu traço.  / 76 /

Aveiro é a cidade. O mar, a ria e os seus canais, a pesada faina dos pescadores são motivos obsessivos como o próprio afirma: “A pequena embarcação as redes e outros utensílios de pesca fizeram despertar em mim o desejo plástico de dominar pelo desenho ou pintura toda essa magia do homem do mar, nunca deixando de me comover ao executar esses trabalhos”.

“O apanha luas”, óleo sobre tela - pág. 75
“O apanha luas”, óleo sobre tela

Também a feira – que decorria em Março na cidade – e o mundo circense se presentificam em palhaços e acrobatas, carrosséis e brinquedos, motivos que não mais abandonará.

O sonho – o tal macrotema a que já aludi – é emergente – às vezes, raras vezes, como pesadelo –, não prescindindo do mundo da infância, do trabalho, do sacrifício, e deixando antever um intimismo latente.

Claramente influenciado pelas artes gráficas, desenvolve um projecto de auto-formação privilegiando o desenho. É o artista artesão confesso que persegue obsessivamente o conhecimento, como dá conta: “O meu pai arranjava-me revistas americanas, que comprava ao peso num alfarrabista, que eram ricamente ilustradas por mestres famosos do desenho como Rokwell, Fawsset, Connor Doyle. Cito, entre outras, as revistas Saturday Evening Post a Colliers e Ladies. Tentava fazer igual copiando; exercitava e visualizava técnicas. As horas passavam e eu, agarrado aos meus exercícios, sentia o prazer de ter lápis, papel e borracha para poder desenhar.”

Trata-se de uma fase de aprendizagem que, ao começar pelo processo embrionário do desenho, criou bases sólidas no percurso do artista. Não há influências de estéticas ou movimentos.

Os primeiros desenhos e pinturas de Hélder Bandarra são, acima de tudo, resultantes das circunstâncias vividas – onde não será despiciendo evidenciar um pendor provincial – e da vontade de construção do futuro.

“Na terra e no mar”, acrílico sobre tela. - pág. 77

O cruzamento das estéticas modernistas tem, na arte de Hélder Bandarra, um lugar electivo.

O artista assimilou a grande revolução sofrida pelas artes visuais que, começando a olhar o quotidiano traduziam, sem tabus, a mais íntima percepção da realidade liberta de regras e convenções. Não havendo, propriamente, na presente obra, grandes reflexos impressionistas – em que o modernismo teve a sua génese pela atitude anati-académica assumida –, é notório o conhecimento das técnicas de Manet, Monet, Degas e Renoir sobretudo pela nova concepção de luz e cor.

“Na terra e no mar”, acrílico sobre tela.

O artista apreende também toda a série de movimentos fragmentados em ruptura com padrões anteriores num conhecimento perfeito do modernismo e das vanguardas. O expressionismo à Munch, o fauvismo à Vlamink, o cubismo à Picasso, o dadaísmo à Duchamp, o simultaneismo e o interseccionismo à Delaunay e mesmo o surrealismo à Dali fundem-se e confundem-se na produção de Hélder Bandarra sem que, por tal, se quebre a coerência, o equilíbrio, a seriedade e o rigor que a caracterizam. Não há seguidismos obsessivos, / 80 / antes reflexos de um estudo aturado e recriado pelo artista onde, moderadamente, espreitam, discreta, muito discretamente, Darwin e Marx, Freud e Nietzsche. Estou perante uma obra autónoma que não renega o passado, antes se mostra consciente da sua importância reconhecendo, como escreveu Álvaro de Campos (1912?), “que nenhuma geração transmite a outra a sua sensibilidade. Transmite-lhe apenas a inteligência que teve dessa sensibilidade”. / 82 /

Mas se as manifestações modernistas emergentes fora de Portugal tiveram claras influências na arte de Hélder Bandarra – não esqueço que estudou em Paris, cidade onde tudo acontecia –, as portuguesas foram, a meu ver, determinantes. O artista abandona a pintura naturalista romântica na linha de Malhoa, centra-se na nova estética internacional e demanda Cézanne e Delaunay em Eduardo Viana ou Modigliani e Braque em Amadeo de Sousa-Cardozo. Dórdio Gomes, Abel Manta, Mário Eloy, Diogo de Macedo e, muito particularmente, Almada Negreiros são referências e, embora de forma muito longínqua, espreita o vento surrealizante de Cesariny e Vespeira.

  “Encontro”, acrílico sobre tela - pág. 80   “Repouso na mesa”, acrílico sobre tela (0,73 x 0,60) – 1993 - pág. 82  
 

“Encontro”, acrílico sobre tela

 

“Repouso na mesa”, acrílico sobre tela (0,73 x 0,60) – 1993

 

/ 84 / De todos, Amadeo e Almada, sobretudo este último, são figuras tutelares. As cores usadas, os grandes temas enroupados pelo macrotema do sonho, e os motivos já atrás aduzidos são disso garante.

Hélder Bandarra não lava as mãos no milenar lavatório de Pilatos, antes assume explicitamente, na sua obra, temas e motivos usando técnicas em perfeita sintonia com os ditames dos 1.º, 2.º e 3.º (?) modernismo portugueses, num feliz conciliábulo com as suas idiossincrasias artísticas das quais relevo a excelência do desenho particularmente manifesta numa série de grafites.

Coexistindo com os tumultos da modernidade, sobretudo com o expressionismo, surge na pintura de Hélder Bandarra um forte (ainda que escasso em termos de produção) pendor neo-realista preocupado “por um lado com a narração da verdade, da verdade sem deturpação, tal como pode vê-la e amá-la um homem ascendente; por outro lado, e simultaneamente, com o sonho – sem o qual nenhuma obra pode viver e actuar, o sonho melhor de todos os sonhos – que é a parte do real que tende para ele” (Mário Dionísio, 1945).

Ecoam na obra de Hélder Bandarra as vozes de Álvaro Cunhal (1939), de Júlio Pomar (1943) e do Vespeira (1945) da “Carta Aberta aos Pintores Portugueses”. Há nela a consciência de que “a transformação da arte deriva da transformação da mentalidade humana e que aquela deve ser o reflexo da realidade da época, neste caso uma tendência histórica de matriz progressista, assegurada pelo socialismo. O povo seria a base e o objecto da pintura, não o seu fim, assumindo o artista essa mesma condição” (Isabel Ponce de Leão, 2002).

A tendência neo-realista de Hélder Bandarra tem um carácter peculiar, contém a sua verdade sócio-cultural; obedecendo a uma contestação emergente, não cede ao facilitismo da mera intervenção antes privilegia o rigor estético. É densa em ternura humana, em factos belos passados com homens comuns, possuindo o seu traço um sentido de síntese que faz eliminar elementos supérfluos. O artista sabe e demonstra que “A arte não pode ser política, nem sujeição social, nem glosa duma ideia que faz época; nem mesmo pode estar de qualquer forma aliada ao conceito «progresso». É algo mais. É o próprio alento humano para lá da morte de todas as quimeras, da fadiga de todas as perguntas sem solução” (Agustina, 2009).

Destarte, perseguindo um dos seus temas electivos, presentifica toda a faina do mar em pescadores e varinas, barcos e canastras que insinuam a força do trabalho. Não se tratando de uma arte comprometida segundo os cânones mais ortodoxos do neo-realismo, revela uma enorme preocupação estética sem descurar as circunstâncias histórico-sociais envolventes. / 85 /

Nem Portinari, nem Rivera; nem Mário Dionísio, nem Arco. Talvez Pomar na sua primeira fase. Mas pouco, muito pouco. O neo-realismo de Hélder Bandarra é, acima de tudo, uma inscrição social simbólica do sujeito, é a sua verdade sócio-cultural, como referi, é a prova acabada de que “Arte e vida não são uma mesma coisa, mas podem tornar-se unidas” (Bakhtin, 1970). / 87 /

Trata-se de uma fase breve, mas não menor, pela excelência do traço, que parece fazer a mediação entre os entusiasmos modernistas e a nuvem onírica da desconstrução. É, justamente, a desconstrução e o sonho que imperam na sua última fase da produção.

O artista entra num estado de lúcida letargia. Vê e perscruta o real através do sonho. Desconstrói, primeiro timidamente, depois com veemência na demanda do onírico. O desenho lá está, correcto, perfeito mas expressivamente desmantelado, ousadamente desmoronado, significativamente difuso. Trata-se de uma natural ruptura, como o próprio afirma: “A ruptura é uma auto-realização assumida, não é a personalidade alterada. A minha pintura mudou.

  “S. Gonçalinho, o Mar e o Céu”, acrílico sobre tela - pág. 85   “Rapaz com arco”, (0,73 x 0,60) acrílico - 1993 - pág. 86  
 

“S. Gonçalinho, o Mar e o Céu”, acrílico sobre tela

 

“Rapaz com arco”, (0,73 x 0,60) acrílico - 1993

 

É o consciente presente, problemático, frente a um desafio «inquietante» por resolver, mas com novas coordenadas.”

Não me deparo, pois, com um problema de incoerência, outrossim de uma evolução pessoal e artística. É a necessidade de libertar a arte de irrelevâncias simplificando-a, “pois a arte é a criação de forma significante, e a simplificação é o que liberta a forma significante daquilo que ela não é” (Clive Bell, 2009). Alcança o artista o estádio superior da arte pura em que / 89 / “os vestígios do desejo prático podem ser completamente eliminados, a pintura pode falar de espírito para espírito através de uma língua puramente artística; ela constitui um domínio de seres picto-espirituais”. (Kandinsky, 2008). Trata-se de uma arte sintética baseada numa ciência estética que demanda a unicidade.

Refiro-me, concretamente, ao abstraccionismo expressionista ou expressionismo abstracto em parte sob a influência dos nova-iorquinos Pollock, Wilhelm e Kooning, muitas vezes confundido com a Action painting. Negando uma concepção clássica-académica, bane as áreas nobres da tela elaborando uma composição holística. Abandona o compromisso de representação da realidade aparente; não reproduzindo motivos concretos, dá um primeiríssimo plano a formas, que cria no acto de pintura, e a uma sinfonia cromática, que demanda o lirismo, para exprimir emoções, na senda de Kandinski e Paul Klee. Destarte, agiliza a liberdade interpretativa gerida pela sensibilidade individual.

O abstraccionismo expressionista é, em Hélder Bandarra, tendencialmente informal, ainda que assomem, recorrentemente, vestígios de geometrismo herdeiro do interseccionismo e / 90 / do cubismo. As formas e as cores brotam impulsivamente na livre trajectória da emoção, com absoluto predomínio do sentimento; é a expressão de uma emoção e não de uma imagem filtrada pelo intelecto; é uma revolta do espírito contra a precisão, o racionalismo e a exactidão.

 

Palhaço rico e pobre”, (0,73 x 0,60) acrílico sobre tela - pág. 89

 

 “Crianças com vira-vento”, (0,73 x 0,60) acrílico sobre tela - pág. 89

 
 

Palhaço rico e pobre”, (0,73 x 0,60) acrílico sobre tela

 

 “Crianças com vira-vento”, (0,73 x 0,60) acrílico sobre tela

 

Linhas e cores têm virtudes poéticas, musicais configuradoras das realidades do mundo interior do artista. A luminosidade oscila entre as tonalidades delicadas e feéricas e outras arrojadas e vulcânicas, premonitórias da deambulação entre lirismo e dramatismo.

A obra de arte reflecte-se na superfície desmaterializada da consciência e tenta inventar a vida, tornar inteligível a sua palpitação e averiguar da ordem de tudo o que vive, tal como acontece em telas de Bual, Jorge Oliveira ou D’ Assumpção e, muito de passagem, de Nadir Afonso. É a maturidade que se manifesta no pensamento que busca a vitalidade comunicativa.

É a temperança que se instala percorridos que estão os caminhos, todos os caminhos conducentes à emancipação estabelecedora do compromisso entre a ordem e a desordem.

Por vezes, o artista faz pausas. Há uma linha evolutiva que permanece conciliando-se com o apelo da diversidade. Fugas, chamarei aos magníficos desenhos produzidos no Outono de 2009 em Paris. Agora o artista exulta. Tem uma relação mais directa com o papel; e “como não há coisa mais escrupulosa no mundo que papel e pena” (Pr. António Vieira, 1650), a mão prolonga-se no lápis e arranca da brancura da folha silenciosa, cenas lembradas e imaginadas.

  Paul Gauguin, mostrando desenhos a Van Gogh, em casa deste na rua Lepic, Montmartre – Paris - pág. 91   Visita de Picasso ao Mestre Auguste Renoir em 1912 – Paris - pág. 91  
 

Paul Gauguin, mostrando desenhos a Van Gogh, em casa deste na rua Lepic, Montmartre, Paris - pág. 91

 

Visita de Picasso ao Mestre Auguste Renoir em 1912 – Paris

 

O desenho é, em Hélder Bandarra, o elemento fundamental da criação artística. É o / 91 / tom puro que usa para construir formas através dos possíveis relacionamentos luz /sombra.

É a textura suave dos meios-tons em que os dégradés conseguem a ablação da linha. É o pormenor do insignificante que ganha protagonismo.

De Rembrandt a Rubens, de Goya a Fragonard, de Dégas a Van Gogh ou de Matisse a Picasso, a capacidade de desenhar sempre se alçou como marca distintiva do grande artista.

Também Hélder Bandarra pousou o grafite sobre a folha de papel branca e viajou pelos ateliers parisinos de Toulouse-Lautrec, Picasso e Renoir; encontrou-se no Café La Rotonde com Modigliani e Van Gogh e entrou em casa deste acompanhado de Paul Gauguin. Estou em Montmartre, guarida de arte e artistas, e contemplo seis magníficos desenhos metapictóricos.

Neles está vertida a preocupação do ser enquanto artista. Neles vejo artistas que fazem a sua arte, que a mostram, que a ensinam, que a difundem, naquela ambiência de humildade material e grandeza espiritual propícia aos génios. / 93 /

Cinco destes desenhos são tutelados por um anjo, “la créature dans laquelle apparait déjà réalisé la transformacion du visible en invisible que nous accomplissons” (Rilke, 1926). Assim se cumpre o sonho e a esperança de uma evolução / inspiração supra-humanas e assim se cumpre o pressagiado por Diego Rivera (1953): “Every great work of art has two face, one toward its own time and one toward the future, toward eternity”.

Modigliani mostrando a Van Gogh, alguns dos seus desenhos. Café “La Rotonde” – Paris - pág. 93 Picasso no seu estúdio, explicando a Matisse a génese do quadro. “As meninas de Avignon” – Paris, 1907 - pág. 93
 

Modigliani mostrando a Van Gogh, alguns dos seus desenhos. Café “La Rotonde” – Paris

 

Picasso no seu estúdio, explicando a Matisse a génese do quadro. “As meninas de Avignon” – Paris, 1907

 

Esboços lhes chama o autor, obra acabada direi eu, pela superação dos próprios limites “pela fusão do detalhe minucioso, dos virtuosismos da técnica, dos rigores e precisão do desenho e da qualidade dentro de uma síntese de efeito de que não se despolariza o efeito geral” (Abel Salazar, 2000). Exercendo a sua vocação de desenhador compulsivo, o lápis foge-lhe da realidade visual para a integral – a imaginação jamais a poderá aperfeiçoar. / 94 /

Ao mencionar, atrás, os vários períodos da pintura de Hélder Bandarra, fiz a opção de um mal menor. Não quis erguer marcos nem fronteiras, muito menos compartimentos estanques.

Fi-lo por uma questão de sistematização, sem preocupações cronológicas ou diacrónicas que se poderiam tornar perversas. Fi-lo ainda para evidenciar a sua versatilidade e, concomitantemente, a sua coerência. Explicito: estas fases não são independentes no tempo e no espaço; coexistem, misturam-se, são intrínsecas em si e no seu génio; sustenta esta afirmação o facto de o artista raramente datar as suas obras, o que poderá não ser inocente.

De resto, todo o aparato paratextual da sua obra é omisso e contido. Não sei se para o bem se para o mal, porque concedendo uma maior liberdade interpretativa, arrisca a omissão de certos pormenores pelos leitores mais incautos.

Artista no seu atelier – 2007 - pág. 95

Naturalmente que a primeira fase desvenda a frescura de uma juventude que pode, por vezes, ser insegura. Mas essa insegurança é medida, cônscia, preventiva, e remete para uma prossecução avisada e consistente. Não há hesitações. Hélder Bandarra tem já o seu rumo definido, e é com perseverança que o vai perseguindo; para tal, torneia a dicotomia tirânica entre o cognitivo e o emotivo, e, através do estudo e do númen, concilia-os num tom harmónico que domina todos os sintomas do estético.

Artista no seu atelier – 2007

Nenhuma tendência do modernismo e das vanguardas lhe é alheia, e a todas atende com enorme acuidade, ciente de que “A arte depende da sociedade e ajuda á sua manutenção – existe porque nenhum homem é uma ilha, e ajuda a garanti-lo” (Goodman, 2006).

Sendo o abstraccionismo o seu ponto de chegada, o seu ex libris actual, não deixa de reconhecer: “constantes da minha obra, sublimados estão períodos figurativos, testemunhos da minha identidade de percurso”. Justamente, aqui está plasmado o continuum evolutivo de um processo que se foi maturando e edificando.

Método, critério, abertura de espírito, perseverança são epítetos que cabem ao modus faciendi de Hélder Bandarra que me parece bem caracterizado nas sábias palavras de Agustina (2009): “Os grandes artistas não vivem em conflito com as suas opções. Tudo neles é vida, violenta, sagrada, e a inspiração depende disso; depois com metódica certeza, é preciso completar a força inicial com a força da disciplina, sem, contudo, perturbar a criação”.

De facto a arte é, para Hélder Bandarra, uma maneira de viver lúcida e assumida, sabendo como sabe que “ser artista é ser bom e é ser sábio e é ser humilde; é saber de antemão que vai ser sacrificado no próprio fogo que o excita e correr para a morte risonhamente, lançando beijos e bênçãos aos mirones que o aplaudem ou pateiam” (Diogo de Macedo, 1927).

Estes pensamentos, que ora aqui verto sobre a obra de Hélder Bandarra, não têm a pretensão de um discurso encomiástico, tão só tentam alertar para esta epifania do sonho que, atravessando a pampa da vida, se cruza com o Belo, acaso o último dos deuses a merecer preces diárias. / 95 /

Fico do lado daqueles que, mais que aplausos, lhe professam respeito, admiração e ternura, deixando-me embalar pela longínqua, muito longínqua voz do grego Simónides de Ceos (500 a. C.): Poema pictura loquens, pictura poema silens.

Isabel Ponce de Leão

2010

 
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