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Origens da língua portuguesa: antecedentes históricos; povos da
Península Ibérica anteriores à romanização; noção de substrato;
a romanização; a noção de România e as línguas românicas; os
Bárbaros; a invasão árabe e a reconquista cristã; os
superstratos; os conceitos de latim erudito, latim vulgar e
latim cristão; do latim ao português.
Do século XII à actualidade: as diferentes periodizações na
evolução do português; a via erudita e a via popular; o período
galaico-português; Lisboa, centro difusor da língua padrão; os
cancioneiros; os primeiros textos em português: um testamento;
Cantiga da Garvaia; Cantiga de D. Sancho I; duas cantigas de D.
Dinis; uma cantiga de Afonso X; o período pré-clássico:
principais datas referentes à expansão portuguesa; alguns textos
desta fase; o período clássico: enriquecimento lexical do
português; alguns textos e nomes; os gramáticos; o período
moderno: breve panorama. |
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PERÍODO PRÉ-CLÁSSICO
Este
período, cujo começo é tradicionalmente situado em 1350, corresponde a
uma fase em que a prosa de carácter histórico se vai desenvolver, donde
a designação por Carolina Michaëlis e Serafim da Silva
Neto de período ou fase da prosa histórica. É um período
em que o português se distingue já do galego e que se caracteriza por
uma decadência da poesia e florescimento da prosa.
Embora como marco inicial se aponte tradicionalmente o
ano de 1350, Pilar Vásquez Cuesta, à semelhança do que faz S. Silva
Neto, é de opinião que a data mais significativa para o início deste
período é a da Batalha de Aljubarrota, em 1385, altura em que Portugal
afirma o desejo definitivo de constituir um país demarcado do resto da
península, firmando o seu desejo de independência e repudiando o domínio
de Castela.
Como limite desta fase, é apontada a data de 1540, ano em
que foi publicada a Gramática da língoa portuguesa, de João de
Barros.
Quatro anos antes, fora publicada uma colectânea de
Fernão de Oliveira, intitulada Gramática da lingoagem portuguesa.
Estas duas obras marcam «o primeiro esforço do humanismo lusitano para
elevar a língua vulgar do país à dignidade da língua latina» (P. Vázquez
Cuesta, op. cit., p. 186). Abrange o período correspondente aos reinados
de D. João I, D. Duarte, D. Afonso V e D. Manuel I.
É a partir do reinado de D. João I, que inicia a Dinastia
Joanina ou de Avis, que Portugal começa a sofrer um novo impulso em
vários domínios. Com os limites peninsulares atingidos desde o reinado
de D. Afonso III, a única via de expansão possível é para além do mar. E
a região mais próxima é o norte de África. Enquanto em épocas anteriores
o fluxo de povos ocorreu do sul para o norte, com a invasão árabe da
península, no século VIII, agora é o povo da península que enceta um
avanço para o sul, começando pelo norte de África. E como para onde quer
que o Homem se desloque leva sempre consigo a maior e mais duradoura das
heranças ─ a língua que herdou dos seus progenitores ─ a expansão
territorial portuguesa para sul, com a conquista, a descoberta e a
ocupação de novas áreas geográficas, vai corresponder logicamente à
expansão da língua portuguesa.
Em 1415, é dado o primeiro passo expansionista com a
conquista de Ceuta, no norte de África, que iria servir de ponto de
escala para um avanço para distâncias cada vez maiores em direcção ao
sul. Em 1418, é vencida a primeira das grandes barreiras naturais ─ o
Cabo Bojador ─, que é dobrado por Gil Eanes após doze anos de tentativas
inúteis, a fazer fé no que nos diz Gomes Eanes de Zurara na sua
Crónica dos Feitos da Guiné. É que este cabo prolonga-se
traiçoeiramente pelo mar, por baixo da superfície das águas, tendo
provocado o naufrágio nas tentativas anteriores, já que os barcos, nele
embatendo, destruíam a proa e afundavam-se. Para ser ultrapassado, os
barcos têm de efectuar uma larga volta, afastando-se algumas léguas da
costa. A segunda grande barreira seria, anos mais tarde, a passagem do
Cabo da Boa Esperança por Bartolomeu Dias, que lhe pôs o nome de Cabo
das Tormentas.
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Mas o primeiro grande campo de expansão linguística foi
constituído pelos Açores e pela Madeira, cuja colonização começou a
processar-se por volta de 1430. Para estas ilhas seguiram colonos de
várias regiões do continente, do norte a sul do país, desde o Minho ao
Algarve: Viana do Castelo, Bragança, Guimarães, Porto, Aveiro, Viseu,
Covilhã, Lisboa, Portalegre e Beja. Foram estas as grandes áreas que
forneceram colonos, segundo se deduz das referências em documentos
quinhentistas. |
Figura 38:
Quadro sinóptico com os principais marcos da expansão portuguesa. |
Estando isolados pelo mar e com reduzidas comunicações
com a metrópole, conservaram-se nas ilhas formas arcaicas de vida e,
consequentemente, de linguagem, assim se explicando as diferenças hoje
sentidas entre o português insular e o português continental, mormente
no campo da pronúncia.
O avanço foi prosseguindo lenta e inexoravelmente para
sul. Em 1460, trinta anos depois da colonização das ilhas, Diogo Gomes e
António de Nola chegam à ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde.
Em 1470 são descobertas as ilhas de Ano-Bom e S. Tomé e Príncipe. Em
1482, Diogo de Azambuja funda a praça de S. Jorge da Mina, à volta da
qual nasce uma povoação. Dois anos depois, em 1484, Diogo Cão chega ao
rio Zaire e ao reino do Congo. Quatro anos depois, em 1488, João Afonso
de Aveiro chega às terras de Benim e Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa
Esperança. Está-se então no reinado de D. João II. E só dez anos depois,
já no reinado de D. Manuel I, o Venturoso, no ano de 1498, se atinge o
Oriente, com a chegada da armada de Vasco da Gama à Índia. Dois anos
depois, com Pedro Álvares Cabral, é descoberto o continente americano,
chegando-se ao Brasil. Em breve, chegam os portugueses aos mais
longínquos países do Oriente: à China e ao Japão.
Do ponto de vista linguístico e literário, é com os
filhos de D. João I, a chamada Ínclita Geração, e inclusivamente com o
próprio rei D. João I, que começam a surgir as primeiras publicações em
prosa e os primeiros grandes nomes da prosa portuguesa. Como diz Serafim
da Silva Neto, «a prosa artística vai-se pouco a pouco desemperrando».
As frases vão-se tornando mais curtas, menos complicadas e de mais fácil
compreensão. Se a prosa vai ganhando cada vez mais fluidez e maior
valor literário, a poesia começa a ser colocada num plano secundário,
mais voltada para as «coisas de folgar e gentilezas», deixando para a
prosa os ensinamentos e as memórias dos feitos portugueses dignos de
registo.
Antes de vermos alguns textos deste período,
essencialmente no domínio da prosa, mas também alguma coisa no campo da
poesia, vejamos algumas das transformações sofridas pelo português nesta
fase evolutiva, que o vão diferenciar e tornar uma língua distinta do
galego.
Do ponto de vista ortográfico,
a grande separação em relação ao que ainda hoje se mantém no galego e no
castelhano é o registo gráfico à maneira provençal das palatais ─nh─
e ─lh─,
em vez de ─ñ─
e ─ll─.
Do ponto de vista fonético,
podem-se apontar quatro factos importantes:
1º - A contracção das vogais iguais em contacto
após a síncope da consoante intervocálica:
Exs.:
lat. DOLOREM > gal.-port. door > dor
lat. VIDERE > gal.-port. veer > ver
lat. SEDERE > gal.-port. seer > ser
2º - Embora graficamente as palavras conservem a
terminação -om, deveriam já ter uma pronúncia igual à actual (em
-ão).
Exs.:
lat. LATRONEM > ladrom > ladrão
lat. RATIONEM > razom > razão
3º - No princípio do século XV, as terminações
latinas -ANUM, -ANEM e -ONEM igualam-se, dando a terminação -ão
Exs.:
lat. MANU(M) > mão
lat. PANE(M) > pão
4º - As palavras terminadas em -ades, -edes,
-ides perdem a consoante intervocálica e dão a forma actual.
Exs.:
amades > amaes > amais
soedes > sodes > soes > sois
5º - Desaparecem os vestígios do uso do partitivo
em português e começa também a usar-se o superlativo absoluto sintético,
ao lado do superlativo absoluto analítico, nesta época formado sobretudo
com a forma do advérbio mui em vez de muito.
Do ponto de vista sintáctico,
registaremos, entre outros aspectos, o uso de:
- que em vez de quem;
- pretérito mais-que-perfeito em vez do imperfeito do
conjuntivo ou do condicional;
- gerúndio em vez do infinito precedido das preposições
a, de, sem.
exs.: «sem saindo» em vez de 'sem sair'
«non cessam chorando» em vez de 'não cessam de
chorar'
No domínio da prosa, neste período, podemos considerar
duas etapas distintas: a primeira, anterior a Fernão Lopes; a segunda,
iniciada com este autor, cuja prosa constitui um grande salto
qualitativo no emprego escrito da língua portuguesa.
Na primeira etapa, surgem-nos obras como a Crónica
Geral de Espanha de 1344, o Livro de Montaria, de D. João I,
obra didáctica, com uma linguagem simples destinada aos amantes da caça
pelo monte, O Leal Conselheiro e o Livro da ensinança de bem
cavalgar toda a sela, obras de D. Duarte, o tratado de moral chamado
O Trauctado da Uirtuosa Benfeiturya, da autoria do Infante D.
Pedro, irmão do rei D. Duarte, etc.
De todo o conjunto de obras deste primeiro momento,
apresentamos a seguir apenas dois textos exemplificativos. O primeiro,
extraído da Crónica Geral de Espanha de 1344, fala-nos da região
de Lisboa; o segundo, extraído do Livro da Montaria, de D. João
I, apresenta-nos o prólogo ao livro. Para informação mais completa
acerca destes dois textos, leiam-se as notas correspondentes por nós
apresentadas.
Texto 1:
Do termho de
Lixboa[36]
O termho de Santarë parte cõ o de Lixboa. E Lixboa
jaz ao ouciente de Beja e ao ouciente de Cordova. E o
termho de Lixboa he cõprido de muytos beës, ca ha hy muy
saborosas fruytas. E ajuntou ë sy as bondades do mar e da terra. E em
todo tempo ë seu termho criam muy boõs açores que hy tomã de
çaffara, que husam mais caça e som melhores que os outros e son muy
fremosos. E ha hy muyto mel e muy boõ e he tam branco que nõ semelha se
nom açucar e sabe melhor que o açucar. E tãto he boõ per natura
que, pero o posessem no pano do lynho, nõ ficarya molhado ne
faria hy synal, tanto como se fosse pedra.
A cidade de Lixboa jaz sobre o ryo de Tejo muy preto
d'onde entra ëno mar. E Lixboa ha villas do seu senhorio, das quaaes hüa
he Almadaã e outra he Ossumo e a outra he Syntra. E
em Almadaã ha huü vyeiro de fyno ouro. E antre Lixboa e Almadaã
vay huü braço de mar que entra no Tejo. E ëno partimento de Beja
e de Lisboa ha huüs montes a que dizë os montes dos filhos de
Benamocer e chaman-lhe os moradores Arrabida. E, como vay a
ribeira atta cima do Algarve, podem achar muy boõ allambar,
melhor que todollos outros, e nõ semelha o de Indya, ante he d'outra
guysa feyto. E de Sãtarem a Lixboa ha quareenta e duas milhas.
Crónica Geral de Espanha de 1344,
II, pp. 66-67[37]
Texto 2:
Prólogo do
Livro da Montaria [38]
Disse Moyses, e disse a uerdade, que no primeiro começo,
que Deus criara os ceeos, e a terra, e todallas outras criaturas, que
criara o homem, e, quando o criou, que disse: «façamos homem a
simildom nossa»; e a occasiom porque disse Deus que o homem fosse
criado a sua simildom, determinarom que por duas cousas. A primeira,
porque Deus sabia, na sua alta sabedoria, que elle auia de ser homem, e
por isso disse que o homem fosse feito a sua simildom. A segunda rezom
he, porque elle queria fazer o homem razoauil, e por isso disse
que o queria fazer a sua simildom; e depois que o homem assi foi criado
foi razoauil e sabedor, e deshi uierom os homëes de geraçom em geraçom,
e começarom a prouar as cousas, e os conhecimentos d'ellas, e
uirom que aquelles que algüas cousas sabem, tanto que morriam elles, os
outros que depois d'elles uinham perdiam os saberes, por ende por
se perceberem de se os saberes nom perderem, catarom as
figuras das letras, e nomearom-nas, e fizerom em como se per ellas nom
perdessem os saberes; e entom começarom a escreuer liuros, em que os
puserom, e assi outros fizerom liuros de Gramatica, e de Rhetorica, e
outros muytos liuros que falam de muytas cousas. Fizerom outrosi liuros
de Phisica, e de Celorgia, e de Alueytaria, e de
Falcoaria, e d'outras muytas artes, que seriam longas de contar. Por
ende nos Dom Joham, por graça de Deus, rey de Portugal, e do Algarue,
senhor de Cepta, querendo seguir hum dito de Sam Bernardo, que
falla porque quis Deus nacer em proueza, diz que Deus quiz nacer em
proueza, porque elle, onde estaua, em nos ceeos, auia todo bem, senom
hum que jazia na terra entre os homeës, e era desprezado d'elles; e
porque elle auer todo o bem, quis tomar este per si, e
descendeu dos ceeos a terra, e ouue-o, e este bem assi desprezado
dos homëes era a proueza. Porem nos uendo em como o joguo de andar ao
monte era tam bõo, e tam proueitoso, que em sua bondade passa todollos
joguos, a que ora dizem manhas, e em seu seer, pera se os
homëes por elle poderem aproueitar mais que de nenhum dos outros de que
os homëes agora usam; e assi mesmo em como algüas outras, de que se
algüus trabalharam de fazer liuros, assi como de Falcoaria, e de
Cantigas, e d'outras cousas e artes que muyto menos que esta aproueitam;
e nos uendo tam bõa cousa, que he usada dos bõos e grandes, estar
desprezada; e porque a nosso ueer nom foi nenhum que se d'ella
trabalhasse fazer liuro, e como pollos liuros que eram feitos se nom
podessem mostrar as perfeiçoões que em ella á, nem outrosi que dessem
ensino a aquelles que ouuessem sabor de serem monteyros, em como o
poderiam melhor seer, e assi mesmo em como se podessem guardar de
algüas cousas que em ella á de perderem o seer bõos, por tanto nos
trabalhamos com a ajuda de Deus de fazer este Liuro de Montaria ...
D. João I, Livro da Montaria, pp. 2-3[39].
Na segunda etapa, vai-se verificar um grande progresso no
domínio da prosa com as crónicas de Fernão Lopes. Além de historiador,
já no sentido moderno do termo, homem que procura a verdade dos factos
com base em fontes fidedignas e em testemunhos orais, sempre que
possível, Fernão Lopes é, simultaneamente, o artista que vai limar a
prosa da sua primitiva dureza, conferindo-lhe nova flexibilidade, doçura
e riqueza de estilo. Diz-nos Alexandre Herculano que nas crónicas de
Fernão Lopes não há apenas história, mas poesia e drama. Nelas surge-nos
a Idade Média com a sua fé, com o seu entusiasmo e com o seu amor de
glória. Só assim se explica que Fernão Lopes tenha ultrapassado o limiar
do histórico e entrado no universo da literatura, tornando-se o primeiro
grande prosador da língua portuguesa.
Apesar de contemporâneo dos prosadores que anteriormente
referimos e ao serviço de D. João I e D. Duarte, Fernão Lopes possui
qualidades que faltaram aos seus contemporâneos: sensibilidade,
capacidade descritiva e de visualização, gosto pela minúcia e precisão.
Fernão Lopes tornou-se simultaneamente o historiador probo, amigo da
clara certidão da verdade, e o artista[40].
Por ser bastante conhecido e estudado nas nossas escolas,
permitimo-nos não transcrever mais do que um texto de Fernão Lopes,
apresentado a seguir na «Sugestão de trabalho».
Sugestão de trabalho
10
Leia
atentamente o texto que a seguir se transcreve, procurando realizar,
depois, as actividades que lhe são propostas. As palavras apresentadas
em letra negrita (ou «bold») encontram-se explicadas nas notas, pelo que
o texto não apresenta quaisquer dificuldades de compreensão.
Texto
Do alvoroço
que foi na çidade cuidamdo que matavom o Meestre,
e como allo
foi Alvoro Paaez e muitas gemtes com elle[41]
O Page do Meestre, que estava aa porta, como lhe
disserom que fosse pella villa segumdo ja era perçebido, começou
d'hir rrijamente a gallope em çima do cavallo em que estava, dizemdo
altas vozes, braadamdo pella rrua:
─ Matom o Meestre! matom ho Meestre nos paaços da rainha!
Acorree ao Meestre que matam!
E assi chegou a casa d'Alvoro Paaez, que era d'alli
gramde espaço.
As gentes que esto ouviam sahiam aa rrua veer que cousa
era; e, começamdo de fallar huüs com os outros, alvoraçavomsse nas
voomtades e começavõ de tomar armas cada huü como melhor e mais
asinha podia. Alvoro Paaez, que estava prestes e armado cõ huüa
coiffa na cabeça, segumdo husamça d'aquell tempo, cavallgou logo a
pressa em çima d'huü cavallo que anos aviia que nom cavallgara; e todos
seus alliados com elle, braadamdo a quaaes quer que achava dizemdo:
─ Acorramos ao Meestre, amigos, acorramos ao Meestre, ca
filho he d'el-rei Dom Pedro. E assi braadavom ell e o Page himdo pella
rrua.
Soarom as vozes do arroido pella çidade, ouvimdo todos
braadar que matavom o Meestre; e assi como viuva que rei nom
tiinha, e como sse lhe este ficara em logo de marido, se moverom todos
com maão armada, corremdo a pressa pera hu deziam que sse esto fazia,
por lhe darem vida e escusar morte. Alvoro Paaez nom quedava
d'hir pera alla, braadamdo a todos:
─ Acorramos ao Meestre, amigos, acorramos ao Meestre que
matam sem por que.
A gemte começou de sse jumtar a elle, e era tanta, que
era estranha cousa de veer. Nõ cabiam pellas ruas primçipaaes, e
atravessavom logares escusos, desejando cada huü de seer o primeiro; e
preguntamdo huüs aos outros quem matava o Meestre, nom mimguava quem
rrespomder que o matava o Comde Joham Fernamdez, per mamdado da
Rainha.
E per voomtade de Deos, todos feitos d'huü coraçom, com
tallemte de o vimgar, como forom aas portas do Paaço, que
eram ja çarradas, amte que chegassem, com espamtosas pallavras começarom
de dizer:
─ Hu matõ ho Meestre? Que he do Meestre? Quem çarrou
estas portas?
Alli eram ouvidos braados de desvairadas maneiras. Taaes
hi avia que çerteficavõ que o Meestre era morto, pois as portas estavom
çarradas, dizemdo que as britassem pera emtrar demtro, e veeriam
que eera do Meestre, ou que cousa era aquella.
D'elles
braadavom por lenha, e que vehesse lume pera poerem fogo aos Paaços e
queimar o treedor e a aleivosa. Outros sse afficavom,
pedimdo escaadas pera sobir açima, para veerem que era do Meestre;
e em todo isto era ho arroido atam gramde que sse nom emtemdiam huüs com
os outros, nem determinavom nehuüa cousa. E nom soomente era isto aa
porta dos Paaços, mas ahimda arredor d'elles per hu homeës e molheres
podiam estar. Huüas viinham com feixes de lenha, outras tragiam
carqueyja pera açemder o fogo cuidamdo queimar o muro dos Paaços com
ella, dizemdo muitos doestos contra a Rainha.
De çima nom minguava quem braadar que o Meestre
era vivo, e o Comde Joham Fernamdez morto; mas isto nom queria nehuü
creer, dizemdo:
─ Pois se vivo he, mostraaenollo e veelloemos.
Emtom os do Meestre, veemdo tam gramde alvoroço como este,
e que cada vez se açemdia mais, disserom que fosse sua merçee de
sse mostrar aaquellas gemtes, d'outra guisa poderiam quebrar as
portas, ou lhe poer o fogo, e emtramdo assi demtro per força, nom lhe
poderiam depois tolher de fazer o que quisessem.
Alli sse mostrou ho Meestre a hüa gramde janella que
viinha sobre a rrua omde estava Alvoro Paaez e a mais força de gemte e
disse:
─ Amigos, apacificaae-vos, ca eu vivo e saão soom a Deos
graças.
E tamta era a torvaçam d'elles, e assi tiinham ja em
creemça que o Meestre era morto, que taaes aviia hi que aperfiavõ
que nom era aquelle; porem, conheçendo-o todos claramente, ouverom gram
prazer quamdo o virom, e deziam huüs comtra os outros:
─ Oo que mall fez! pois que matou o treedor do Comde, que
nom matou logo a alleivosa com elle. Creedes em Deos aimda lhe ha de
viinr alguü mall per ella. Oolhae e veede que maldade tam gramde,
mamdaram-no chamar omde hia ja de seu caminho, pera o matarem aqui per
traiçom. Oo alleivosa! ja nos matou huü senhor, e agora nos queria matar
outro; leixaae-a, ca ainda ha mall d'acabar por estas cousas que faz.
E, sem duvida, se elles emtrarom demtro, nom sse
escusara a Rainha de morte, e fora maravilha quamtos eram da sua
parte e do Comde poderë escapar. O Meestre estava aa janella, e todos
oolhavom comtra elle dizemdo:
─Oo Senhor! como vos quiserõ matar per treiçom! Beemto
seja Deos que vos guardou desse treedor! Viimde-vos, daae ao demo
esses paaços, nom sejaaes la mais.
E, em dizemdo esto, muitos choravom com prazer de o veer
vivo. Veëdo el estomçe que nehuüa duvida tiinha em sua segurança,
deçeo afumdo e cavallgou com os seus, acompanhado de todollos outros que
era maravilha de veer. Os quaaes mui ledos arredor d'elle,
bradavom, dizemdo:
─ Que nos mandaaes fazer, Senhor? Que querees que façamos?
E ell lhes rrespomdia, aadur podemdo seer ouvido,
que lh'o gradeçia muito, mas que por estomçe nom avia d'elles mais
mester. E assi emcaminhou pera os paaços do almiramte, hu pousava o
Comde Dom Joham Affonsso, irmaão da Rainha, com que avia de comer. As
donas da çidade, pella rrua per hu ell hia, sahiam todas aas janellas
com prazer, dizemdo altas vozes:
─ Mantenha-vos Deos, Senhor! Beemto seja Deos, que vos
guardou de tamanha traiçom, quall vos tiinham basteçida!
Ca nenhuü por estomçe podia outra cousa cuidar.
E hindo assi ataa emtrada do Ressio, e o Comde
viinha cõ todollos seus e outros boõs da çidade que o aguardavom, assim
commo Affomss' Eanes Nogueira, e Martim Affonsso Vallemte, e Estevam
Vaasquez Phillipe, e Alvoro do Rego, e outros fidallgos; e, quamdo vio o
Meestre hir d'aquella guisa, foy-o abraçar com prazer e disse:
─ Mamtenha-vos Deos, Senhor! Sei que nos tirastes de
gramde cuidado, mas vos mereçiees esta homrra melhor que nos. Amdaae,
vaamos logo comer.
E assim forom per os paaços hu pousava o comde. (...)
FERNÃO LOPES, Crónica de D. João I, I Parte[42].
1 - Agora, que leu o texto transcrito, procure responder
às questões formuladas:
1.1 - Determine o tema e o assunto do texto.
1.2 - Identifique os diferentes referentes situacionais:
local de acção e tempo.
1.3 - Identifique os intervenientes na acção (personagens),
tendo o cuidado de determinar rigorosamente o papel desempenhado por
cada um.
1.4 - Caracterize o tipo de narrador (se tiver dúvidas,
consulte o índice, que o remeterá para o capítulo e páginas onde o
conceito de narrador é abordado).
2 - A técnica narrativa utilizada por Fernão Lopes é
bastante moderna. Tal como um operador com uma câmara cinematográfica,
que tudo procura registar, F. Lopes procura mostrar-nos as reacções de
todo o povo de Lisboa, focando ora um, ora outro aspecto, juntando à
imagem as palavras e o ruído da multidão, pondo bem em evidência a sua
turbação e dando-nos, qual repórter que fosse acompanhando o evoluir dos
acontecimentos, os seus comentários pessoais.
2.1 - Centre a sua atenção no excerto «Alli eram ouvidos
braados... até ... Viinde-vos, daae ao demo esses paaços, nom sejaaes
la mais» e, com base nele, demonstre a afirmação anterior, pondo em
destaque os diferentes planos focados. Preste atenção aos articuladores
do discurso: «D'elles»; «Outros»; «e em todo isto»; «E non soomente...
mas ahinda»; «Hüuas»; «Outras»; «De çima»; etc.
3 - Dissemos, no capítulo II deste trabalho, pp. 50-54,
que todo o texto deve apresentar uma estrutura ou plano de
desenvolvimento das ideias. Dissemos então que um texto deve ter uma
introdução, um desenvolvimento e uma conclusão, podendo, por sua vez,
cada uma destas partes, subdividir-se em momentos. Tendo em conta a
estratégia narrativa e o desenrolar da acção, determine a estrutura do
texto.
4 - Recorrendo a uma edição da Crónica de D. João I,
1ª parte, ou a um manual escolar que apresente textos de Fernão Lopes,
leia o capítulo «Das tribullaçoões que Lixboa padeçia per mingua de
mantiimentos».
4.1 - Efectue uma análise do texto, seguindo a mesma
orientação de trabalho atrás apresentada para o texto que transcrevemos
(questões 1 a 3)[43].
5 - Procurando respeitar a estrutura dos textos e as
ideias neles contidas, efectue o resumo de um dos textos, tendo em conta
as regras enunciadas no capítulo II (vd. págs. 71-76).
No domínio da produção poética, ficou-nos do período
pré-clássico o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, vasta
compilação de poesia produzida durante um período de tempo que vai desde
a segunda metade do século XV até aos começos do século XVI. Encerra um
total de cerca de mil composições, pertencentes a 286 autores, com
temática de feição amorosa, satírica e heróica. As formas
versificatórias utilizadas vão desde composições bastante curtas, como
vilancetes, cantigas e esparsas, a composições longas, escritas na
medida tradicional ou medida velha, em redondilha menor ou em redondilha
maior.
Há no Cancioneiro Geral muitos poemas dignos de uma
leitura atenta, quer pela originalidade no tratamento de certos temas,
quer pela capacidade de expressão sentimental, muitas vezes conseguidas
em composições bastante curtas. Limitar-nos-emos, no entanto, à
transcrição de um texto muito curto, com treze versos apenas,
pertencente a João Roiz de Castelo Branco[44].
Cãtygua
partindo-sse
Senhora, partem tã tristes
meus olhos por vos, meu bë,
que nünca tam tristes vistes
outros nenhüs por ninguem.
Tam tristes, tam saudosos.
tam doentes da partyda,
tam canssados, tã chorosos.
da morte mays desejosos
çem myl vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
Tam fora d'esperar bem,
que nüca tam trystes vistes
outros nenhus por ninguem.
Joham Rroiz de Castell' Branco, III, 134.
João Roiz de Castelo Branco foi um poeta que viveu na
corte, no tempo de D. João II, tendo-se depois retirado para a Beira, a
fim de dirigir a cultura das suas propriedades. Foi também contador da
Guarda, conforme se depreende de outra composição sua escrita a António
Pacheco, vedor da moeda de Lisboa.
A composição transcrita é uma cantiga escrita em versos
de redondilha maior, constituída por um mote de quatro versos e uma
volta ou glosa de nove versos. É uma composição isométrica segundo o
esquema A B A B c d c c d a b A B. Os dois últimos versos da glosa são
os dois últimos do mote, ao passo que os dois anteriores apenas repetem
as últimas palavras dos dois primeiros versos do mote.
O tema da composição é a tristeza da partida, ou seja, a
profunda tristeza motivada pela separação. Embora o tema dos olhos como
causa de sofrimento ou como espelho ou «janelas da alma» seja frequente
em poetas de épocas anteriores, quer na lírica provençal, quer na lírica
galaico-portuguesa, havendo no próprio Cancioneiro Geral várias
referências a eles, a verdade é que esta composição se destaca das
demais, sendo talvez das mais belas acerca da tristeza da separação.
De que modo conseguiu João Roiz acentuar essa tristeza
provocada pela separação?
A sugestão e intensificação da tristeza é-nos dada
essencialmente através de três níveis:
a nível do ritmo;
a nível fónico;
a nível semântico.
Fig. 39 - Leitura do poema, tendo em conta o
ritmo e pondo em destaque os elementos que se repetem. |
|
A nível do ritmo e fónico, verificamos que ele se
caracteriza pela sua grande fluidez e variedade, ajustando-se à
expressão das ideias. Se efectuarmos a decomposição do poema tendo em
conta as pausas rítmicas, obteremos o esquema que transcrevemos no
quadro a que atribuímos a designação de figura 39.
Os números a seguir indicam o número de sílabas, contadas
até à última tónica. Após uma sequência de segmentos curtos, oscilando
entre 2 e 4, seguem-se segmentos longos de sete sílabas. |
Esta variedade rítmica é acentuada pelas repetições de
certos sons, de entre os quais se destacam os nasais, decorrentes da
repetição do advérbio tão e da consoante oclusiva
t em certos vocábulos. Esta aliteração reforça a ideia de
tristeza, já amplificada pelo uso do advérbio de quantidade.
A nível semântico, destacam-se as repetições de
determinados vocábulos. Além do advérbio intensificador, que se repete
dez vezes, encontramos seis vezes a palavra tristes, que no verso
10 se encontra duas vezes: os tristes, nome que substitui os olhos,
partem tão tristes. E vemos que o adjectivo tristes qualifica e acentua
a tristeza daqueles que já por si só detêm o atributo da tristeza.
Também o facto de serem os olhos do poeta, em vez deste,
que partem acentua a tristeza, duplicando-a. A personificação da
tristeza nos olhos do poeta amplifica a dor da partida. Uma coisa é
dizer «eu parto de vós»; outra é dizer «eles [os meus olhos] partem de
vós». Há uma amplificação resultante do emprego do plural pelo singular.
A tristeza da partida é também traduzida pelo uso dos
diferentes adjectivos (tristes, saudosos, doentes [da partida],
cansados, chorosos), reforçados pelo advérbio «tão» e, mais adiante,
pelo uso da comparação hiperbólica «cem mil vezes mais desejosos da
morte que da vida».
As ideias do poema centram-se nos dois pólos da
comunicação ─ o eu e o tu ─, ou seja, nos olhos do poeta
e na mulher de quem ele se aparta ─ o vós ─, podendo ser reduzidas ao
esquema da figura 40.
Relativamente ao primeiro pólo da comunicação ─ o emissor
ou sujeito poético, representado pelo olhos do poeta ─ o facto de
partirem implica desde logo separação e, como tal, sofrimento. Este é
intensificado pelo uso do advérbio tão. Se este advérbio só por
si já implica quantidade, intensidade, a sua repetição dez vezes vai
amplificar o estado psicológico do poeta, expresso pelo uso dos
diferentes adjectivos, culminando o sofrimento com o desejo da morte,
também este amplificado pela hipérbole «cem mil vezes».
Quanto ao outro pólo, o receptor ou destinatário da
mensagem poética, é-lhe dado constatar a intensidade da dor na separação,
reforçada não só pelo advérbio de quantidade, mas também pelo advérbio
de negação nunca. A ela, a mulher amada, nunca lhe foi dado ver
nenhuns outros olhos tão tristes por ninguém.
[36]
–
As palavras transcritas em «bold» encontram-se explicadas no final
do texto.
[37] –
O texto transcrito é de fácil compreensão e procura dar-nos a conhecer a
localização geográfica da região de Lisboa e suas riquezas: animais,
vegetais e minerais. No entanto, será de interesse efectuar a leitura
dos comentários aos vocábulos destacados no texto e que a seguir se
transcrevem:
Santarë:
a origem do vocábulo, tal como nos recorda Almeida Garrett no
capítulo XXX de Viagens na minha terra, tem a sua origem em
Sancta Irene ou Eirene (do grego Eìηvη
'paz'), devendo ter sofrido a seguinte evolução: SANCTA EIRENE > *Santeirene
> Santarëe > Santerem > Santarém.
parte cõ:
(do latim PARTIRE 'partir, separar') - confina com
Beja:
Beja era a PAX JULIA dos romanos. A partir do acusativo latino
PACE(M), cuja pronúncia era [pake(m)] terá sofrido a evolução PACE >
Paca > Baja > Beja. A passagem de Paga a Baja ter-se-á verificado
durante o período da ocupação árabe da península, segundo Leite de
Vasconcelos.
Ouciente:
É o mesmo que Ocidente. No original encontra-se escrito «ao ouriente
de Beja e ao ouriente de Cordova», o que deverá ter sido erro do
copista, dado que Lisboa fica para ocidente quer de Beja, quer de
Córdova e não ao contrário.
cõprido:
este vocábulo já surgiu num texto de D. Dinis anteriormente
transcrito, embora registado sob a forma 'conprida'. Tem o sentido
de 'cheio, pleno, abundante, provido'.
açores:
plural da palavra açor (do latim popular ACCEPTORE > accetor >
açetor > açtor > atçor > açor), designa uma ave de rapina que era
domesticada e utilizada na caça, à semelhança do que também se fazia
com o falcão. Capturados ainda novos, em estado selvagem, eram
depois domesticados e treinados, sendo muito utilizados pelos nobres
na arte venatória.
çaffara:
registado sob as formas çafra, safra ou safro,
é uma palavra proveniente do árabe çahara, que significa
'campo, deserto, reles, inculto'.
açucar:
é também um vocábulo de origem árabe, proveniente de aç-çukkar,
por sua vez proveniente do sânscrito çarkara, que significa 'grãos
de areia'.
pero:
(do latim PER HOC) significa 'porém, todavia, contudo, posto que,
ainda que, embora, conquanto'.
Almadaã:
também registado Almadana e Almadaa, é uma palavra proveniente do
árabe al-macdan, que significa 'a mina'. Designa a
povoação situada em frente a Lisboa, na margem esquerda do Tejo.
Ossumo:
designa um topónimo desconhecido da região de Lisboa. Se ainda
existe, não se sabe actualmente a que povoação corresponde.
Syntra:
povoação referida na Geografia do árabe Edrisi, com a grafia
Chintra.
vyeiro:
(do latim VENARIU(M), de VENA, 'veia, artéria, veio') designa neste
caso um veio aurífero que seria explorado na zona de Almada. O
vocábulo designava também o tributo, foro ou pensão, constituído
pelo terço do valor em ouro, prata ou cobre explorados nas minas do
reino.
partimento:
relacionado com partir, significa 'limite, linha de demarcação,
divisória'.
Benamocer:
antiga designação da serra da Arrábida.
Arrabida:
o mesmo que Arrábida (palavra proveniente do árabe arrabda,
que significa 'pastagem, terra de gado'), serra da província da
Estremadura.
allambar:
o mesmo que alambre (palavra do árabe alcanbar, 'o
cachalote, o âmbar cinzento'), hoje designado âmbar ou âmbar
cinzento, produto outrora utilizado em farmácia, sendo ainda hoje
procurado no comércio, pois constitui um excelente fixador de
perfumes caros.
guysa:
também registado guisa (do antigo alto alemão wisa, que deu
em alemão actual weise) significa 'jeito, modo, maneira,
razão, forma, espécie, categoria'.
O texto transcrito é interessante pelo facto de nos dar uma ideia
do que era a região de Lisboa no século XIV, que se caracterizava
essencialmente por nela se terem reunido diversas «bondades do mar e
da terra». Além de referir os diferentes dons de que a natureza a
dotou, fornece-nos elementos de carácter geográfico.
A Crónica Geral de Espanha de 1344
é uma obra que apresenta a história de toda a Península Hispânica e
das obras mais antigas que chegou completa até nós. É da autoria do
Infante D. Pedro, Conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis.
Sobre esta obra, veja-se Crónica Geral de Espanha de 1344. A
Lenda do rei Rodrigo, col. "Textos Clássicos", com introdução,
notas e glossário de L. F. Lindley Cintra, Editorial Verbo, 1964.
[38]
–
No final do texto apresentam-se os vocábulos destacados em letra
negrita.
[39]
–
Antes de apresentarmos uma síntese das ideias do texto e de referirmos
alguns aspectos estilísticos, a seguir se apresentam os vocábulos
destacados no texto:
simildom:
do latim SIMILITUDINE(M) - semelhança, esta palavra deu em espanhol
similitud, em francês similitude e em italiano
similitudine.
razoauil:
aparece também registado sob a forma razoavil. Provém do
latim RATIONABILE(M) - 'racional, inteligente, dotado de razão'.
prouar:
do latim PROBARE, significa 'provar, observar, examinar,
experimentar, investigar'.
por ende:
esta expressão significa 'por isso'. (Veja-se o que se disse aquando
da análise da cantiga de Afonso X anteriormente transcrita).
perceberem:
forma do infinitivo pessoal do verbo perceber (do latim
PERCIPERE, 'perceber, compreender'), significa 'precaverem,
acautelarem, evitarem, prepararem'.
catarom:
forma do verbo catar (do latim CAPTARE), poderá significar 'olhar,
observar, dar por si, acautelar, ver, examinar, procurar'.
celorgia:
(do latim CHIRURGIA, palavra proveniente do grego) significa
cirurgia, operação, trabalho manual.
alueytaria:
palavra proveniente de alveitar (do árabe albaitar,
possivelmente obtido a partir do grego, 'veterinário'), significa 'medicina
veterinária'.
falcoaria:
palavra obtida a partir de falcõo (do latim FALCONE(M), 'falcão'),
designa a arte de adestrar e tratar falcões, usados na arte
venatória.
Sam Bernardo:
o mesmo que S. Bernardo. Este vocábulo é de origem germânica, do
antigo alto alemão bero, 'urso', e hard, 'duro, forte,
vigoroso'. São Bernardo foi um monge, teólogo, pensador e fundador
do célebre mosteiro de Claraval (Clairvaux) e pregador da segunda
cruzada (1091-1153).
senom:
o mesmo que senão, significa 'ao passo que, excepto'.
auer:
forma correspondente ao pretérito imperfeito do conjuntivo houvesse
(do latim HABERET). A frase onde este vocábulo se encontra terá o
seguinte sentido: 'e porque ele tivesse (ou houvesse) todo o bem' ou
ainda 'e porque ele tinha todo o bem'.
descendeu:
forma do pretérito perfeito do indicativo de descender (do
latim DESCENDERE, 'descer'). Confronte-se com o francês descendre.
Significa 'descer, baixar'.
manhas:
forma do plural de manha (do latim vulgar manea, por
MANUA, ou do baixo latim mania; confronte-se com o espanhol
maña)
─
qualidades, artes, habilidades, maneiras, jogos.
seer:
substantivo com o sentido de 'valor, importância'.
trabalharam:
forma do pretérito perfeito de trabalhar, de trabalho (latim
TRIPALIU(M), 'aparelho formado por três paus (PALUS) que servia para
segurar cavalos difíceis de ferrar; a partir da palavra TRIPALIU(M)
deverá ter-se formado a palavra TRIPALIARE que deu as diferentes
formas românicas correspondentes: port. trabalho, trabalhar; esp.
trabajo, trabajar; fr. travail, travailler)
─
esforçaram-se, preocuparam-se.
guardar:
defender-se, acautelar-se.
Relativamente às ideias, teremos de salientar o facto de que este
prólogo, que constitui uma apresentação dos motivos que levaram o
seu autor a escrever a obra, foi elaborado à semelhança do que fez
Afonso XI, de Castela, no seu Libro de la Monteria. D. João
I, rei de Portugal e do Algarve e senhor de Ceuta, justifica a
concepção e elaboração da obra, começando por reflectir acerca do
acto da criação do Homem por Deus, dando uma explicação para o
aparecimento da escrita. Apoiando-se em Moisés, afirma que, tendo
Deus feito o Homem à sua semelhança, o dotou de inteligência. Este
facto permitiu-lhe aumentar os conhecimentos, através da observação
e da experiência. E, para evitar que esses conhecimentos caíssem no
esquecimento e se perdessem, inventou a escrita como forma de
registo e transmissão através dos tempos. Surgiram então diferentes
livros: de Gramática e de Retórica, de Física, de Cirurgia, de
Veterinária e Falcoaria, e de muitas outras artes.
O Autor considera ainda que, de entre as várias actividades
desportivas, é a montaria a mais proveitosa. E se houve quem
escrevesse livros sobre actividades menos proveitosas, como por
exemplo os das Cantigas e de outras áreas de menor interesse, mais
razão haveria em escrever sobre uma actividade tão proveitosa como é
a da montaria. E assim surgiu a sua decisão de escrever um livro
sobre esta arte, para que o seu conhecimento se perpetuasse.
O prólogo, bem como o conteúdo da obra, denota um bom nível de
conhecimentos por parte do Autor. Além de conhecimentos
relacionados com a Bíblia e com os Doutores da Igreja, D. João I
mostra conhecer escritores do seu tempo em diferentes domínios:
História e Poesia, diferentes ciências, tais como Astronomia (Ptolomeu, Albenazar, Ali ben Ragel), Gramática, Retórica e outras.
Do ponto de vista estilístico, teremos de referir a grande
extensão dos períodos, uma exposição que nem sempre segue uma
sequência lógica e, por vezes, uma construção de tipo oralizante e
popular, com a repetição frequente de que. Estamos ainda muito longe,
no domínio da capacidade comunicativa e expressiva, daquele tipo de
prosa dinâmica e carregada de visualismo introduzida na nossa língua
por Fernão Lopes.
[40]
–
A seguir se apresentam alguns elementos informativos acerca de F. Lopes.Não se sabe quando nem onde terá nascido F. Lopes.
Provavelmente entre 1378 e 1385, num período crítico da História de
Portugal. De origem vilã, o seu nome surge pela primeira vez num
documento de 1418, ano em que nos aparece como guarda-mor das
escrituras da Torre do Castelo de Lisboa. Em 1419 é escrivão dos
livros de D. João I e em 1422 exerce as funções de escrivão da
puridade do Infante D. Fernando. No reinado de D. Duarte, este
concede-lhe, em 1434, uma tença anual para empreender uma obra vasta
e necessária
─
pôr em crónica toda a história geral do reino, desde as origens até
D. João I.
Empreende então uma vasta tarefa de recolha de informações por todo
o reino, pesquisando em igrejas, mosteiros e cartórios e indagando
inclusivamente os próprios letreiros das sepulturas.
Em 1454, D. Afonso V, atendendo à sua avançada idade, mandou-o
reformar e substituir por Gomes Eanes de Zurara. Em 1459, F. Lopes
ainda está vivo, conforme o atesta um documento desse ano. Deverá
ter morrido por alturas de 1460.
A sua obra, conforme se depreende do que dela nos chegou, deveria
constar das crónicas de todos os reis portugueses, desde as origens
da nacionalidade até D. João I. No entanto, apenas chegaram até nós
as Crónicas de D. Pedro, D. Fernando e D. João I
e, desta última, a primeira e segunda partes.
Como historiador, o seu trabalho foi pautado pelo rigor e exactidão,
pelo apoio em documentos escritos que lhe merecessem completa
confiança. Procura analisar os problemas à luz da verdade e da
imparcialidade.
Como escritor, além de um estilo arcaizante denotando
conhecimentos de autores antigos, a sua principal característica é
um poderoso visualismo, aliado a técnicas narrativas que tornam a
leitura das suas páginas mais agradável, com descrições minuciosas e
recurso à acção e ao diálogo.
[41]
–
Apresentam-se no final do texto as notas referentes às palavras
destacadas em bold.
[42]
–
A seguir se apresenta a explicação correspondente ao vocabulário
destacado no texto:
page:
forma de origem francesa (do baixo latim PAGIU-) - pajem.
perçebido:
combinado, tratado, preparado.
acorree:
forma do imperativo do verbo accorrer, que significa 'socorrer,
acudir, defender'.
asinha:
depressa.
coiffa:
palavra de origem germânica (kupphia), deu em espanhol cofia,
em francês coiffe e em italiano cuffia. Designa uma
touca, cobertura ou resguardo para a cabeça. No caso do texto,
deverá possivelmente referir-se a uma parte da armadura, que
protegia a cabeça.
viuva:
(Do latim VIDUA(M), 'viúva, solteira') - deverá haver aqui uma
alusão à falta de rei, de que Lisboa e o país precisavam para
governá-los. É interessante a comparação efectuada em que o Autor
compara o Mestre de Avis ao rei que a naçäo portuguesa não tinha.
escusar: (do latim EXCUSARE, 'desculpar') - evitar, escusar,
dispensar, obviar, impedir, livrar.
rresponder:
(do latim responderet, de RESPONDERE) - pretérito imperfeito
do conjuntivo: respondesse.
tallente:
o mesmo que talã, talam, talante (do latim
TALENTU-, do grego
τάλαvτov),
significa 'inclinação, vontade, desejo, diligência'. Entrou no
português através do francês talant, cuja forma actual é
talent. A palavra conserva-se no português actual, embora com o
sentido diferente e com a forma talento .
como:
(do latim QUOMO, por QUOMODO ou COMODO) - quando, logo, que.
britassem:
pretérito imperfeito do conjuntivo de britar, que significa 'arrombar,
quebrar, partir'. Trata-se de uma palavra de origem anglo-saxónica,
proveniente de britan, brytan, bryttan ou
bryttian. De britar formou-se o substantivo britamento,
que significa 'naufrágio, despedaçamento, destruição' e a actual
palavra brita, que significa 'pedra pequena, utilizada na
pavimentação das estradas'.
d'elles:
embora no período pré-clássico tenha desaparecido o partitivo em
português, encontramos em Fernão Lopes vestígios dele. Neste caso
significa 'alguns deles'.
treedor:
(do latim TRADITORE-, 'o que entrega') - traidor. Refere-se ao Conde
João Fernandes Andeiro, amante da rainha D. Leonor ainda em vida do
rei.
aleivosa:
também registado sob a forma alleivosa, é uma forma
proveniente de aleive (do gótico levjan, 'trair').
Significa 'adúltera, falsa, perversa, maldosa'. Refere-se à rainha
adúltera D. Leonor.
afficavom:
pretérito imperfeito de afficar (do latim vulgar figicare)
- teimavam, insistiam, afiançavam.
escaadas:
do latim SCALATAS, 'escadas'. Deu em espanhol antigo escalada
e moderno escalera, em francês antigo éschelée e
moderno échelle, em italiano scala.
braadar:
pretérito imperfeito do conjuntivo
─
bradasse
─
(do latim *balaterare, 'gritar' de BALARE, 'balar, dizer tolices'.
merçee:
(do latim MERCEDE-) - mérito, disposição, dependência, favor'. No
texto a expressão «que fosse sua merçee» significa 'que se dignasse,
que fizesse o favor de'.
guisa:
(forma do antigo alemão wisa, alemão weise) - jeito,
modo, maneira, razão, espécie, forma'.
creemça:
(do latim CREDENTIA-, 'crença, confiança') - crença. «Tinham ja em
creemça» - acreditavam já, pensavam já'.
aperfiavõ:
(pretérito imperfeito de aperfiar (de a + perfiar, do latim
PERFIDIARE - teimar, insistir) - teimavam, insistiam.
escusara:
pretérito mais-que-perfeito do indicativo de escusar, com o
valor de condicional - evitaria.
beento:
bendito, abençoado, do latim BENEDICTU(M).
demo:
(do latim DAEMON-, 'espírito') - demónio, diabo.
estonce:
também registado com a forma entonces (do latim *INTUNCE),
significa 'então'. Ao lado destas duas formas existe também, entõ
com o mesmo sentido e proveniente do latim INTUNC.
ledo:
(do latim LAETU-) - alegre, contente, satisfeito, ledo.
aadur:
também registado sob as formas adur, aduro (do latim
AD DURU-), significa 'dificuldade, dificilmente, mal, apenas, a
custo'.
mester:
(do latim MINISTERIU-) - necessidade, precisão, aperto, aflição.
basteçida:
forma do particípio passado de bastecer (do espanhol
bastecer
─
abastecer, tramar, maquinar)
─
maquinada, tramada, urdida, preparada, combinada.
Ressio:
também registado sob a forma resio, rresio e rossio
(do latim RESIDIU-), significa 'praça ou terreiro largo, terreno
roçado e explorado em comum'. No caso do texto, designa a praça de
Lisboa que ainda hoje conserva o mesmo nome.
O texto transcrito é uma narrativa histórica que nos mostra a
agitação do povo de Lisboa, que, incitado por Álvaro Pais, acode em
defesa do Mestre de Avis. Trata-se de um texto carregado de
dinamismo, que nos mostra as reacções populares até ao mais pequeno
pormenor. Incitados pelo brado de Álvaro Pais, apresentado em
discurso directo, o qual vai reunindo cada vez mais gente pelas ruas
por onde passa, os habitantes da cidade, homens e mulheres, correm
em defesa do Mestre. Os seus sentimentos e reacções são-nos
apresentados com minúcia e realismo. As opiniões são tão
desencontradas e a perturbação é tamanha que chegam a querer deitar
o fogo aos muros de pedra.
O narrador utiliza sucessivamente diversos planos na apresentação
das cenas. É um narrador omnisciente, que abarca toda a cena, ora
dando-nos uma visão geral, ora focando pequenas áreas e registando
opiniões individuais, reforçando os aspectos focados com comentários
pessoais.
Tendo em conta a estratégia narrativa e o desenrolar da acção,
podemos distinguir no texto essencialmente cinco partes distintas:
1ª parte - «O page do Meestre... que matam sem por que.»;
2ª parte - «A gente começou de sse juntar a elle, ... dizendo
muitos doestos contra a rainha.»;
3ª parte - «De çima nom mimguava quem braadar... ca eu vivo e
saão soom a Deos graças.»;
4ª parte - «E tamta era a torvaçom d'elles... Ca nenhuu por
estomçe podia outra cousa cuidar.»;
5ª parte - «E hindo assi ataa emtrada do ressio... E assim forom
pera os paaços hu pousava o comde.»
A primeira parte apresenta-nos o começo de toda a acção. O pajem
do Mestre, primeiro, e depois Álvaro Pais, de acordo com o combinado,
sublevam as gentes da cidade, gritando-lhes que acudam ao Mestre,
que o querem matar.
O crescendo da sublevação é-nos apresentado pelo narrador em dois
momentos. No primeiro, é o pajem quem lança em alta voz o brado de
alerta, cavalgando «em cima do cavalo em que estava» rijamente a
galope. Além do pleonasmo, que é frequente ao longo de todo o texto,
a sensação de perigo e urgência é-nos dada quer pelo advérbio de
modo rijamente («rijamente a galope»), quer pela repetição do verbo
e do nome, reforçados pelo reduzido tamanho das frases,
desempenhando plenamente a sua função apelativa. Matam e mestre
repetem-se três vezes; a última frase apresenta a indicação da acção
a desenvolver: «acorrei ao Mestre, porque o matam.» Após este
primeiro apelo, vemos as gentes intrigadas e curiosas, saindo à rua
para saberem o que se passa e criando ânimo para reagirem o mais
depressa que lhes é possível.
No segundo momento do levantamento popular, já não é o pajem que
incita o povo, mas Álvaro Pais que, com o seu próprio exemplo, junta
a si a multidão. E o apelo passa do discurso de segunda pessoa para
o discurso de primeira pessoa («Acorramos ao Mestre... porque é
filho de el-rei D. Pedro.»), repetindo-se a seguir a nova
apresentação da reacção popular, na qual teremos que destacar a
comparação com duplo sentido: «assim como viúva que rei não tinha».
A segunda parte apresenta-nos essencialmente as diferentes e
desencontradas reacções populares, que têm de comum estarem, por
vontade de Deus, «todos feitos d'um coração», isto é, embora as
opiniões sejam desencontradas, todos sentem o mesmo desejo de vingar
a suposta morte do Mestre. Nesta segunda parte, o narrador dá-nos,
mais do que uma visão de conjunto, diferentes macro-planos,
mostrando-nos as opiniões e as atitudes ora de uns, ora de outros,
pondo deste modo em destaque o desencontrado de opiniões e a
perturbação popular, a ponto de não conseguirem ouvir-se uns aos
outros e acabarem por nada conseguirem decidir.
Na terceira parte, o narrador passa a apresentar a reacção
daqueles que se encontram no paço, levando-os a pedirem ao Mestre
que vá a uma janela e se mostre ao povo, para o acalmar.
Novamente, na parte seguinte, é-nos mostrada a reacção popular ao
verem o Mestre. Nesta quarta parte, podemos ainda distinguir dois
momentos: inicialmente, o povo ainda duvida que o Mestre esteja
vivo, apesar de o estar a ver; no entanto, acalmados os ânimos,
reconhecem-no. E seguem-se as diferentes exclamações populares de
que o narrador nos dá conta. No segundo momento, reconhecido
plenamente o Mestre, este desce à rua, enquanto elementos do povo
choram de alegria por o verem são e salvo e lhe oferecem os seus
serviços. E, por entre a multidão, o Mestre encaminha-se para os
paços do almirante.
Na quinta e última parte, o narrador conclui o episódio
apresentando-nos a chegada do Mestre ao Rossio e enumerando aqueles
que o aguardavam.
Uma outra divisão possível para este episódio será a de
considerarmos apenas três partes: a primeira, correspondente à
incitação do povo de Lisboa; a segunda, mostrando-nos a reacção
popular durante a ida para os paços da rainha e junto destes; a
terceira e última parte, a chegada do Mestre ao Rossio.
Outra divisão possível para o texto é aquela que nos apresenta
três partes subdivididas em momentos, de acordo com o esquema:
I - INTRODUÇÃO:
convocatória efectuada pelo pajem e por Álvaro Pais.
II - DESENVOLVIMENTO:
movimentação
–
Pajem + Álvaro Pais + Povo
concentração –
o Povo vai para o paço da rainha
manifestação –
o Povo junto ao paço
aclamação –
o Povo + o Mestre
III - CONCLUSÃO:
dispersão─
o Mestre + o Povo
Seja qual for a divisão que adoptemos, todas elas nos mostram
essencialmente as reacções de uma personagem colectiva, que é posta
em destaque pelo narrador ao longo de todo o texto, podendo por isso
ser considerada como a mais importante. Essa personagem colectiva,
focada pelo narrador de maneira completa, quer no geral, quer nos
mais pequenos pormenores individuais, é o povo de Lisboa. A segunda
personagem importante do texto é o Mestre, que vai ser o móbil de
toda a acção. Quanto ao pajem e a Álvaro Pais, têm apenas como
função despoletar toda a acção.
[43]
–
Se teve o cuidado de procurar o capítulo por nós indicado e o leu, terá
constatado que esse texto nos dá uma imagem impressionante do sofrimento
dos habitantes da cidade de Lisboa durante o cerco castelhano em 1384.
Seguindo uma sequência cronológica, o narrador vai-nos mostrando as
dificuldades crescentes da população, à medida que o tempo de cerco
aumenta e as provisões diminuem. Apesar das várias medidas
assumidas, desde as saídas furtivas de bateis durante a noite para
recolha de provisões, até à expulsão de pessoas que não serviam para
defesa da cidade, as privações aumentam. A partir de certa altura, a
falta de alimentos é tal que o preço dos poucos géneros existentes
atinge valores elevadíssimos. No entanto, nem mesmo o dinheiro
consegue comprar alimentos. Produtos pouco ou nada adequados começam
a servir de alimento. Homens e crianças esgaravatam o chão à procura
de grãos de trigo em locais onde outrora era vendido. Outros
enchem-se de tanta água, que jazem mortos, inchados, em praças e
noutros lugares. Toda a cidade sofre e procura em vão a ajuda
divina.
Podemos encontrar no texto uma sequência descritiva dos
padecimentos, intercalada por observações do próprio narrador, que
frequentemente se dirige ao narratário, convidando-o a
imaginar as cenas descritas como se estivesse presente. Embora todas
as divisões sejam sempre discutíveis, podemos considerar
essencialmente cinco grandes partes no desenvolvimento do quadro
trágico dos padecimentos da cidade:
· 1ª parte: saída de barcos durante a noite para carregarem trigo e
reacção da cidade quando os barcos são detectados pelos sitiantes.
· 2ª parte: expulsão da cidade de pessoas minguadas e não prestáveis
para a defesa e atitudes assumidas pelos castelhanos.
· 3ª parte: pormenores sobre as carências da cidade, valores
atingidos pelos produtos e consequências da falta de géneros
· 4ª parte: padecimento generalizado de toda a cidade, seu esforço
quando os sinos tocam a rebate e desespero resultante do sofrimento.
· 5ª parte: conclusão - causas da fome apesar do reduzido tempo de
cerco, convite ao narratário para imaginar o estado da cidade e
exclamações do narrador.
Outra divisão possível segundo o esquema clássico:
I - INTRODUÇÃO: dois primeiros parágrafos
II - DESENVOLVIMENTO:
–
expulsão dos minguados e não pertencentes para defesa
–
atitudes dos sitiantes
–
medidas tomadas pelo Mestre
–
pormenores sobre as faltas, valores atingidos pelos alimentos e
consequências da fome
–
generalizaçäo do sofrimento e atitudes assumidas pelos habitantes da
cidade.
–
interrogações do narrador
–
boato que correu pela cidade e seus efeitos
III - CONCLUSÃO:
–
convite ao narratário para imaginar a situação da cidade e
exclamações finais.
[44]
–
Para aqueles que desejem ficar com uma visão mais completa do
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, aconselhamos a leitura
dos seguintes textos:
* «Meu amor, sem vos ver ...» do Conde de Vimioso.
* «Antre mim mesmo e mim ...» de Bernardim Ribeiro.
* «Oo montes erguidos, ...» de Francisco de Sousa.
* Trovas à morte de Inês de Castro de Garcia de Resende.
* Partindo de Santarém de Duarte de Brito.
* Poesia contra as mulheres de Jorge de Aguiar.
* Trovas d' Álvaro de Brito Pestana a Luís Fogaça.
* Trovas que fez Duarte da Gama às desordens que agora se costumam
em Portugal.
Das cerca de mil composições, apenas indicamos estas oito. De
leitura bastante fácil, abordam diferentes temáticas, desde o amor à
sátira e crítica social, constituindo uma primeira abordagem do
cancioneiro suficientemente agradável para despertar o interesse do
leitor para a leitura de outras composições. Alguns destes textos,
bem como o transcrito, poderão ser encontrados na colectânea já
citada de Corrêa de Oliveira e Saavedra Machado (vd. nota da pág.
220). |