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                Origens da língua portuguesa: antecedentes históricos; povos da  
                Península Ibérica anteriores à romanização; noção de substrato; 
                a romanização; a noção de România e as línguas românicas; os 
                Bárbaros; a invasão árabe e a reconquista cristã; os 
                superstratos; os conceitos de latim erudito, latim vulgar e 
                latim cristão; do latim ao português. 
                 
                
                Do século XII à actualidade: as diferentes periodizações na 
                evolução do português; a via erudita e a via popular; o período 
                galaico-português; Lisboa, centro difusor da língua padrão; os 
                cancioneiros; os primeiros textos em português: um testamento; 
                Cantiga da Garvaia; Cantiga de D. Sancho I; duas cantigas de D. 
                Dinis; uma cantiga de Afonso X; o período pré-clássico: 
                principais datas referentes à expansão portuguesa; alguns textos 
                desta fase; o período clássico: enriquecimento lexical do 
                português; alguns textos e nomes; os gramáticos; o período 
                moderno: breve panorama. |  |  |  
        
        
 DO SÉC. XII À ACTUALIDADE
 
        
        AS DIFERENTES PERIODIZAÇÕES NA 
        
        EVOLUÇÃO DO PORTUGUÊS 
        Vimos 
        até agora   as origens do 
          português, desde épocas remotas até finais do século XI, muito embora 
        tenhamos já feito referência à expulsão definitiva dos árabes da 
        Península Ibérica em 1492, com a conquista de Granada pelos Reis 
        Católicos de Espanha. Iremos agora continuar a ver alguns aspectos da 
        evolução do português desde o século XII até à situação actual. 
        
        Por uma questão metodológica, o período de tempo entre o 
        século XI e o século XX costuma ser subdividido em momentos distintos, 
        cuja delimitação não pode ser encarada de modo rígido, mas antes como 
        balizas temporais aproximadas. Na evolução da Humanidade não é possível 
        marcar épocas como compartimentos estanques. O fluxo temporal processa-se 
        de modo uniforme, com alterações ou marcas de evolução humana quase 
        imperceptíveis para os homens que viveram essas fases evolutivas. Só à 
        distância de muitos anos ou mesmo séculos o Homem consegue ter uma visão 
        de conjunto e uma consciência perfeita da evolução e das características 
        de uma determinada época. Frequentemente, verificamos a coexistência de 
        mentalidades diferentes dentro de uma mesma época, com os consequentes 
        conflitos de geração que daí advêm. 
        
        Tal como acontece, por exemplo, com o problema da 
        periodização literária, que é sempre discutível e com limites temporais 
        flutuantes, o mesmo sucede com a divisão das épocas históricas ou com a 
        evolução de uma língua. Daqui se infere que uma divisão temporal é 
        sempre bastante arbitrária, variando, por isso mesmo, de autor para 
        autor. Quer isto dizer que para a marcação de épocas distintas na 
        evolução do português encontramos não só designações como limites 
        temporais diferentes. 
        
        Para nos darmos conta do quanto se torna difícil a 
        marcação de períodos de evolução ─ embora estes nos sejam 
        extraordinariamente úteis, permitindo-nos uma melhor situação no tempo ─ 
        começaremos por indicar a periodização da evolução do Português tal como 
        a encontramos em vários trabalhos. 
          
            |  | 
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            |  | Figura 35: Quadro com os 
            períodos da evolução do português segundo vários autores. |  |  
        
        Carolina Michaëlis divide a fase do português arcaico 
        em três períodos: o período proto-histórico, desde o século IX 
        até ao século XII,  que constitui uma fase complexa e de obscura 
        elaboração (veja-se o quadro da figura 28); o período trovadoresco, 
        do início do século XII até 1350, que está representado por um conjunto 
        de produção literária com base no grupo linguístico galego-interamnense; 
        o período do português comum, que corresponde a uma época de 
        produção de textos em prosa de carácter histórico. Será talvez 
        fundamental referir que esta divisão elaborada por Carolina Michaëlis 
        foi estabelecida tendo em conta a produção poética dos trovadores 
        galego-portugueses, inicialmente, e a produção em prosa a partir 
        essencialmente do reinado de D. João I (segunda dinastia). A datação 
        anterior ao começo da segunda dinastia deve-se ao facto de, desde 1350, 
        existirem dois grandes centros de produção textual em prosa: os 
        mosteiros de Santa Cruz, em Coimbra, e de Alcobaça. 
        
        Segundo José Joaquim Nunes[16]
        já 
        existe o português no século VIII, existência «atestada em documentos 
        dessa época, escritos em latim bárbaro, nos quais, devido à insciência 
        dos notários que os redigiam, transparecem aqui e ali termos que eles 
        iam buscar à língua falada, sendo só no século XII que aparecem textos 
        completos nesta última». Assim sendo, considera duas épocas 
        distintas: anteriormente ao século XII, época a que dá o nome de 
        português proto-histórico, compreendido entre os séculos VIII e XII; 
        posteriormente ao século XII, a época do português histórico. 
        
        Segundo José Joaquim Nunes, o vocabulário da língua 
        portuguesa é constituído por três espécies de elementos: populares,
        semi-eruditos e eruditos. Considera como populares 
        aqueles que passaram do latim ao português por via popular, sofrendo as 
        consequentes transformações fonéticas, bem como todos quantos se 
        formaram posteriormente a partir dos primeiros. São os vocábulos obtidos 
        por via popular que constituem, segundo ele, a verdadeira base da língua 
        portuguesa. Considera como vocábulos semi-eruditos aqueles que só 
        em parte sofreram influência das leis da evolução fonética, tais como, 
        por exemplo, apostoligo, vodivo, religas, insoa,
        ledania, etc. Considera como eruditos os vocábulos de 
        proveniência latina ou grega que, desde muito cedo, entraram no 
        português. 
        
        Uma vez fixada a língua portuguesa, Joaquim Nunes 
        considera duas grandes fases na evolução da língua: a fase arcaica, 
        desde o século XII até ao século XVI; a fase moderna, desde o 
        século XVI até aos nossos dias. 
        
        As considerações tecidas por José Joaquim Nunes têm ainda 
        para nós a qualidade de nos alertar para as duas grandes vias de 
        evolução do léxico na passagem do latim ao português:  a via erudita 
        e a via popular.  Enquanto a primeira se caracteriza pelo seu 
        carácter conservador, mantendo praticamente a palavra latina em 
        português, a segunda transforma a palavra latina num novo vocábulo, mais 
        fácil de articular e frequentemente bastante afastado do étimo, sofrendo 
        toda uma sequência de fenómenos fonéticos[17]. 
        
        Serafim da Silva Neto divide o período arcaico do 
        português em duas fases: a fase trovadoresca, desde o último 
        terço do século XII até 1350 ou 1385 (data da batalha de Aljubarrota); a
        fase da prosa histórica,  «verdadeira e exclusivamente portuguesa», 
        de 1385 até aos princípios do século XVI. 
        
        De acordo com o que nos diz Pilar Vázquez Cuesta, não há 
        até ao momento nenhuma nomenclatura verdadeiramente satisfatória para 
        designar as diferentes etapas que se podem distinguir na história da 
        língua portuguesa. No entanto, divide a evolução da língua em quatro 
        momentos:     
        
        1 - período galaico-português, desde os finais do 
        século XII até 1350 aproximadamente; 
        
        2 - período pré-clássico, de 1350 a 1540; 
        
        3 - período clássico, desde 1540 até meados do 
        século XVIII; 
        
        4 - período moderno, desde meados do século 
        XVIII até à data actual. 
        
        Perante tamanha diversidade de divisões e já que todas 
        elas são passíveis de discussão, adoptaremos a última e por ela nos 
        orientaremos na nossa viagem através da história evolutiva do português. 
          
        
        PERÍODO GALAICO-PORTUGUÊS 
        Este 
        período, que vai desde  os finais do século XII até meados do século XIV 
        e que corresponde aproximadamente ao período da lírica trovadoresca 
        galaico-portuguesa, é assim designado por Vásquez Cuesta pelo facto de, 
        nesta altura, se tornar difícil distinguir o português do galego. 
        
        A separação da Galiza e Portugal só ocorre após a 
        conquista de Toledo, em 1085. É nesta altura que Afonso VI, para premiar 
        o auxílio prestado pelos cavaleiros francos, D. Henrique e D. Raimundo, 
        lhes concede a mão de suas filhas. A D. Raimundo é-lhe concedida a mão 
        de D. Urraca;  a D. Henrique é-lhe dada D. Teresa. Como D. Urraca, filha 
        legítima, seria a herdeira do reino de Leão por morte do pai, a D. 
        Teresa, filha bastarda, é-lhe concedido o Condado Portucalense, faixa de 
        terra que se estendia do Minho até ao Mondego. 
        
        Mais tarde, D. Afonso Henriques, desgostoso talvez pela 
        ligação de sua mãe com o padrasto, mas sobretudo desejoso de governar um 
        país independente e liberto da vassalagem a Leão, consegue a 
        independência do Condado Portucalense e inicia o alargamento do 
        território para sul.  Conquista sucessivamente aos mouros vários 
        castelos e burgos, entre os quais se contam Santarém e, sobretudo, 
        Lisboa, a grande cidade moçárabe, que vai permitir a deslocação da 
        capital do reino para sul. 
        
        No reinado de D. Afonso III, o Bolonhês, Portugal atinge 
        as dimensões actuais, com a conquista do Algarve e a expulsão definitiva 
        dos árabes para o extremo sul da Península Hispânica. 
        
        A deslocação da capital do reino para Lisboa levantou um 
        problema bastante discutido actualmente: onde terá nascido a língua 
        comum hoje chamada português? Terá sido Coimbra, o centro do país, ou 
        terá sido Lisboa o grande centro director e difusor da língua portuguesa, 
        do designado português padrão? 
        
        As opiniões são muito divergentes. Há quem aponte Coimbra, 
        há quem considere Lisboa como a região onde se localizará o português 
        padrão. Serafim da Silva Neto[18]
        considera Lisboa como o grande centro difusor, devido à sua situação 
        privilegiada. Se efectuarmos uma retrospectiva histórica da situação 
        portuguesa, tudo parece confirmar a opinião de Serafim da Silva Neto. No 
        reinado de D. Afonso III (1250), Lisboa passa a ser a capital do reino. 
        Quando, em 1290, são criados os Estudos Gerais, é em Lisboa que a 
        Universidade é fixada. Apesar de ter sido transferida para Coimbra, em 
        1308, regressa à capital trinta anos depois. Em 1354 volta para Coimbra, 
        mas em 1377 está de novo em Lisboa e, desta vez, para sempre.  A partir 
        do reinado de D. Fernando, Lisboa vai ganhando sempre, e cada vez mais, 
        nobreza, carácter e dignidade. Durante  o período do interregno, entre 
        1383-85, período conturbado em que a nacionalidade portuguesa se vê 
        ameaçada e em que várias cidades tomam voz por Castela, é Lisboa que vai 
        assumir a liderança do país com a escolha do Mestre de Avis, cuja defesa 
        e aclamação pelo povo de Lisboa nos é mostrada por Fernão Lopes, no 
        capítulo «Do alvoroço que foi na cidade cuidando que matavam o Mestre, e 
        como lá foi Álvaro Pais e muitas gentes com ele». E, segundo Fernão 
        Lopes, Lisboa é a «mais famosa entre as cidades, forte esteio e 
        coluna que sustém Portugal, (...) vida e coração deste reino, purgada de 
        todas as fezes no fogo da lealdade.»[19]
         
        
        Para Lisboa convergiram elementos de várias proveniências, 
        tais como homens de letras, artistas, filósofos, juristas, moralistas, 
        educadores e pedagogos, líderes políticos, etc.. 
        
        Durante a primeira fase, em que o português e o galego 
        são difíceis, se não impossíveis, de distinguir, floresce em toda a 
        península uma literatura de carácter profano e religioso, compilada nos 
        cancioneiros, dos quais chegaram até nós quatro valiosos exemplares[20].
         
        
        A língua presente nos cancioneiros é de feição literária, 
        o que significa que se trata de um registo diferente do da língua falada. 
        As cantigas registadas nos cancioneiros representam, como bem nos lembra 
        Serafim da Silva Neto, «uma estilização da língua falada 
        contemporaneamente na região Entre-Douro-e-Minho, língua que em relação 
        àquela que mais tarde se tornou padrão mostrava aspecto conservador». 
        
        Os primeiros documentos em português são de natureza 
        jurídica e datam dos finais do século XIII. Até 1957, eram considerados 
        como os mais antigos o auto de partilhas, a que era atribuída a 
        data de 1192, um testamento de 1193 e a Notícia de Torto, 
        dos princípios do século XIII. A partir de 1957, o problema dos 
        primeiros documentos renovou-se por completo. Foi nesta data que o 
        Doutor Avelino Costa chegou à conclusão que o famoso auto de 
        partilhas não era o original, mas uma cópia bastante posterior. A 
        esta mesma conclusão chegou também posteriormente o Doutor Rui de 
        Azevedo, que confirmou as suspeitas de falsificação ou, pelo menos, de 
        cópia mais tardia, tanto mais que aparecem no aludido documento traços 
        linguísticos próprios de uma época posterior à atribuída ao documento. 
        
        Assim sendo, parece que os documentos não literários 
        mais antigos serão a Notícia de Torto, que deverá ser dos 
        princípios do século XIII, como já referimos (1211?), e o Testamento 
        de Afonso II, de 1214. 
        
        No domínio dos textos literários, considerou-se durante 
        bastante tempo que o texto mais antigo era a célebre Cantiga da 
        Garvaia (ou Guarvaia), atribuída por Carolina Michaëlis de 
        Vasconcelos a Pai Soares de Taveirós. Actualmente pensa-se que este 
        texto será do segundo terço do século XIII, pelo que os textos 
        literários mais antigos serão uma cantiga de amigo de D. Sancho I 
        (1154-1211) e uma cantiga de maldizer de João Soares de Paiva, 
        nascido por volta de 1140 e que datará, segundo López Aydillo, de 1196.  
        
        Antes de vermos 
        alguns destes primeiros textos, vejamos 
        algumas das características do português da época. De uma maneira 
        bastante sintética, poderemos apresentar  as seguintes: 
        
        1 - Abundância de hiatos por síncope da consoante intervocálica: 
        
               exs.:   door  < latim  DOLORE(M) veer  <  latim  VIDERE 
        
        2 - Era fechada a vogal o em adjectivos com 
        terminação em -oso, -osa e nos comparativos maior,
        melhor, pior, bem como  noutras palavras em -or 
        provenientes da terminação latina -OREM. Só mais tarde, por analogia com 
        as formas do plural, as vogais passaram a ser abertas.  Portanto, 
        pronunciava-se [fremôsa], [piôr], [maiôr], etc.[21] 
         
        
        3 - As palavras terminadas em -ONEM  e -ANEM em latim 
        conservavam a terminação -OM e -AM. 
        
        exs.: razom < latim RATIONE(M) multidom < 
        lat.MULTITUDINE(M)     pam < lat. PANE(M) 
        
        4 - O grupo CH tinha uma pronúncia africada, isto é, 
        pronunciava-se [tch] 
        
        5 - Eram uniformes os nomes e adjectivos terminados em 
        -OR, -OL,  -ES  e  -ANTE. 
        
             exs.:  mia senhor fremosa 
        
        6 - Presença do artigo partitivo, à semelhança do que 
        ainda hoje ocorre no francês actual. 
        
        7 - Presença dos pronomes adverbiais, ainda hoje 
        existentes no francês. 
        
        8 - Grande quantidade de vocábulos de origem francesa e 
        provençal.  
        
        Todas estas características e muitas outras aqui não 
        referidas poderão ser facilmente detectadas a partir da leitura das 
        cantigas da época trovadoresca ou encontradas na obra de Pilar Vázquez 
        Cuesta, Gramática da língua portuguesa[22]. 
        
         Vejamos agora alguns textos do período galaico-português[23]:
          
        
        Texto 1: 
        Testamento 
        
        In Christi nomine. Amen. Eu Eluira Sanchiz offeyro[24]
        o meu corpo aas virtudes de Sam Saluador do moensteyro de 
        Vayram e offeyro co' no meu corpo todo o herdamento que eu ey en 
        Centegãus e as tres quartas do padroadigo d'essa eygleyga e todo
        hu herdamento de Creixemil, assi us das sestas como todo u outro 
        herdamento: que u aia u moensteyro de Vayram por en saecula saeculorum. 
        Amen. 
        
        Fecta karta mense Septembri era MCCXXXI. 
        
        Menendus Sanchiz testes. Stephanus Suariz testes. Vermuu 
        Ordoniz testes. Sancho Diaz testes. Gonsaluus Diaz testes. 
        
        Ego Gonsaluus Petri presbyter notauit. 
        
        In: J. LEITE DE VASCONCELOS, Textos arcaicos, 3ª 
        ed., pp. 14-15. 
          
        
        O texto acima transcrito é um documento notarial, um 
        testamento em que Elvira Sanches lega ao mosteiro de Vairão diversos 
        bens imóveis situados em Santarém e em Creixomil. Trata-se precisamente 
        do testamento que, juntamente com o auto de partilhas, foi considerado 
        até 1957 como o segundo texto mais antigo e hoje considerado, talvez, 
        uma falsificação ou, mais provavelmente, uma cópia posterior do 
        original. 
        
        Vairão é o nome de um lugar no concelho de Vila do Conde. 
        Elvira Sanches é o mesmo nome que se encontra no auto de partilhas. Este 
        testamento foi apresentado por J. Leite de Vasconcelos com a data de 
        1193.
 
        
        Texto 2: 
        Cantiga da 
        Garvaia 
        
          No mundo non me sei parella 
        
          mentre me for como me vãy. ca ia moi 
        
          ro por vos e ãy. mia sennor branca e 
        
          vermella. queredes que vus retraya. 
        
          Quando vus eu vj en saya. mao dia 
        
          me levãtey. que vus enton non vj  
        
          
        
        fea. 
        
          
        
          E mia señor des aquel. dia. y. 
        
          me foy ami muy mal. 
        
          e vus filla de don paay. 
        
          moniz eben vus semella. 
        
          daver eu por vos guarvaya. 
        
          pois eu mia señor dalfaya 
        
          nunca de vos ouve në ey 
        
          valia düa correa. 
          
          
            |  | 
        
        A cantiga da garvaia é um daqueles textos que têm 
        levantado problemas, quer relativamente à data e à autoria, quer 
        relativamente à interpretação. Embora não seja a mais antiga, é uma das 
        que mais polémicas tem levantado devido, em grande parte, à sua 
        dificuldade de interpretação. 
        
        O texto apresentado encontra-se em transcrição 
        diplomática, isto é, apresenta-se tal como vem no Cancioneiro da Ajuda, 
        devendo datar do segundo terço do século XIII. Os pontinhos parecem 
        separar versos, embora não se encontrem em alguns sítios. |  
        
        O sistema rimático da primeira estrofe, tendo em conta os 
        pontos assinalados ao longo da composição, seria a, b, 
        b, a, c, c, d, e com rimas 
        interpolada, emparelhada e solta nos dois últimos versos. Na segunda 
        estrofe, os dois primeiros versos não se podem esquematizar. Os 
        restantes seguem rigorosamente o esquema da primeira estrofe. 
        
        A esquematização da rima torna-se muito mais fácil se 
        efectuarmos uma nova transcrição da poesia, separando cada verso pelo 
        ponto que parece marcar o seu final. 
        
        Esta composição, como todas as do Cancioneiro da Ajuda, é 
        anónima, ao contrário do que acontece com os outros cancioneiros. Para 
        descobrir  o nome do autor, Carolina Michaëlis foi ao Cancioneiro da 
        Biblioteca Nacional e efectuou o estudo comparativo entre este e o outro 
        cancioneiro.  Verificou que a composição se encontrava no meio das 
        cantigas de Pai Soares de Taveirós, concluindo dever ser este o seu 
        autor. 
        
        Para a atribuição da data de 1189, data esta que não deve 
        estar correcta, Carolina Michaëlis apoiou-se nos versos em que se diz 
        «... e ben vus semella daver eu por vos guarvaya». Relacionou este verso 
        com D. Maria Pais, a Ribeirinha, a quem a cantiga deverá ser dirigida. 
        Segundo se crê, estaria esta numa fase em que recebera grandes favores 
        do rei. E, assim sendo, foi procurar um documento em que se fizesse 
        referência às doações feitas por D. Sancho I a D. Maria Pais. Encontrou-o 
        em Vila do Conde, num foral datado de 1189, data que não deverá estar 
        correcta devido a erro do copista.  A data do foral encontra-se em era 
        romana e indica 1257. Para a reduzir à era cristã, terão de ser 
        retirados 38 anos, o que dá a data de 1219. Após o estudo de vários 
        historiadores, a data foi emendada para 1257 ou 1247, sob a alegação de 
        um erro do copista. Foram-lhe retirados 10 anos, o que dá em era cristã 
        a data de 1209, anterior à morte de D. Sancho I, em 1211. Dado que a 
        base em que Carolina Michaëlis se apoiou para estabelecimento da data 
        está  errada, a cantiga da Garvaia deverá datar de 1200, segundo parece 
        inferir-se dos forais de Pousada e Paradela. 
        
        Outro problema suscitado pela Cantiga da Garvaia é o da 
        sua interpretação. Branca e vermella deverá referir-se às cores 
        do rosto, tanto mais que se trata de uma expressão frequente noutras 
        composições da época. Retraya é uma forma do verbo retraer, 
        que significa 'contar'. En saya parece aludir ao facto da mulher 
        usar um vestido comprido e sem manto.  O facto do sujeito poético a ter 
        visto em saia sem outra peça de vestuário terá feito com que a mulher se 
        lhe afigurasse mais bela, cativando-o. Daí o afirmar que em mau dia se 
        levantou, porque então não a viu feia, apaixonando-se por ela. Mas o 
        maior problema relativo à interpretação assenta na expressão e vus 
        filla de don paay moniz. Esta permite mais do que uma interpretação, 
        variável de acordo com a maneira como considerarmos, quer a forma 
        pronominal vus, quer a palavra filla. Vus tanto 
        poderá ser considerado como uma forma tónica como átona, enquanto a 
        palavra filla poderá ser considerada como um nome ou como uma 
        forma verbal. 
        
        Se vus for uma forma tónica, separada da palavra 
        seguinte por uma vírgula, a palavra seguinte terá de ser considerada 
        como o nome filha e o fragmento terá como leitura «e vós, filha de D. 
        Pai Moniz». Se o vus for átono, poderemos considerar a palavra 
        seguinte como uma forma do verbo «filhar», podendo ser entendido quer no 
        sentido de 'tomar', 'tirar', quer de 'apropriar-se', o que poderá dar 
        estas duas leituras: «e vos toma de don Pai Moniz» e «e se apropria de 
        vós Pai Moniz». 
        
        Segundo Elza Paxeco, o vus é átono e não tónico, 
        pelo que será [vos]  em vez de [vós], o que dará lugar a uma 
        interpretação diferente relativamente à palavra filla, que 
        passará a ser uma forma do verbo filhar, que significa 'tirar, tomar'. 
        Assim sendo, a leitura proposta por Carolina Michaëlis de Vasconcelos «e 
        vós, filha de D. Pai Moniz» não estará correcta.  Partindo da 
        interpretação de Elza Paxeco, a composição em português moderno deverá 
        ter o seguinte sentido:  
        
        «No mundo não conheço desgraça igual à minha / 
        enquanto as coisas me correrem como agora: / pois já me sinto morrer por 
        vossa causa. / E, ai, minha senhora branca e vermelha, / quereis que vos 
        lembre / que já vos vi em saia? / Em má hora me levantei naquele dia! / 
        Porque não vos vi então antes feia? // E, minha senhora, desde aquele 
        dia / houve para mim mui mal: / não só Pai Moniz se apropria de vós / 
        como a vós parece coisa natural / que de vós receba (em compensação) uma 
        garvaia, / quando até hoje nunca de vós recebi (como prova de amor) nem 
        coisa no valor de uma correia». 
        
        Para concluirmos a análise da cantiga, resta-nos dizer 
        que a garvaia  (ou guarvaia) era uma peça de vestuário bastante 
        cara, feita de pele de arminho, donde o contraste de cores referido no 
        poema: branca, da pele de arminho, e vermelha, das cores do rosto. 
        
          
        
        Entre os textos literários mais antigos encontra-se uma
        cantiga de maldizer de João Soares de Paiva e a célebre 
        cantiga de D. Sancho I, que passamos a transcrever: 
         
        Texto 3:  
        
          Ay eu, coitada, como viuo 
        
          en gram cuydado por meu amigo 
        
          que ey alongado! muyto me tarda 
        
          o meu amigo na Guarda! 
        
          
        
          Ay eu, coitada, como viuo 
        
          en gram deseio por meu amigo 
        
          que tarda e non ueio! muyto me tarda 
        
          o meu amigo na Guarda. 
        
          C. B. N. 398, C. B. 348
 
        
        O texto, atribuído por Carolina Michaëlis a D. Sancho I, 
        é uma cantiga paralelística de métrica irregular. Encontra-se no 
        Cancioneiro da Biblioteca Nacional com o número 398 e é anónima. O que 
        levou Carolina Michaëlis a atribuí-la a D. Sancho I foi uma nota que se 
        encontra no verso do fólio do C. B. N., na margem inferior, e que diz: 
        
          Rº outro Rº das Cantigas q fez o mui 
        
          nob' Rey don Sancho deyoit  (Che) e 
        
          diz ai eu coitada como uiue. 
        
        Todavia, o problema não fica desde logo resolvido, pois 
        para complicar a questão, na própria página da cantiga, aparece a 
        rubrica que diz «El Rey don affonso de leon». Assim sendo, a quem 
        atribuir a composição:  a D. Sancho ou a D. Afonso de Leão? Mesmo que 
        optemos por uma das hipóteses, continuaremos com o mesmo problema, uma 
        vez que não saberemos a que rei D. Sancho ou D. Afonso de Leão a a 
        atribuir. 
        
        Carolina Michaëlis optou pela hipótese de D. Sancho I e 
        propôs a data de 1199 em virtude de no refrão se afirmar que «muyto me 
        tarda o meu amigo na Guarda» e por ter D. Sancho I concedido um foral à 
        cidade da Guarda e aí ter permanecido por mais de uma vez. 
        
        Segundo Silvio Pellegrini[25],
        é de Afonso X que se trata e o vocábulo  guarda não é um topónimo 
        mas sim um substantivo comum[26].
         
        
        Os textos que transcrevemos, pertencentes ao período 
        galaico-português, estão longe de primar quer pelo seu conteúdo, 
        
        quer pelo seu valor literário. O primeiro texto constitui 
        um exemplar de um documento notarial  dos mais antigos que se conhecem; 
        o segundo e o terceiro são já de carácter literário e destacam-se apenas 
        pelo facto de serem dos mais antigos. Estão longe de revelar as 
        capacidades literárias dos poetas deste período, o que equivale a dizer 
        que, quer no domínio da lírica, seja ela de natureza profana ou 
        religiosa, quer no domínio da narrativa em verso, encontramos 
        composições dignas de figurar numa antologia, tornando-se difícil 
        seleccionar um exemplar de cada. 
        
        Há em muitas composições dos nossos trovadores, como bem 
        o salienta Serafim da Silva Neto, «frescura e espontaneidade», aliando à 
        beleza da imagística e aos sentimentos expressos uma grande musicalidade.  
        Se as chamadas cantigas de amigo apresentam relativamente às 
        cantigas de amor menor riqueza de ideias, têm para nós o mérito de 
        serem mais espontâneas, menos artificiais e buriladas, com muito maior 
        musicalidade e ritmo de feição mais ao gosto popular. No entanto, umas e 
        outras abordam geralmente o mesmo tema ─ o amor ─, embora visto por 
        facetas diametralmente opostas. As cantigas de amigo revelam-nos o 
        sentimento  amoroso pelo lado feminino; as de amor apresentam-nos o 
        homem apaixonado e subjugado à dama, a quem prestam preito, isto 
        é, vassalagem amorosa. 
        
        Para encerrar a breve panorâmica aqui apresentada acerca 
        da época galaico-portuguesa, procure realizar as actividades a seguir 
        propostas na «Sugestão de trabalho». Aí encontrará três composições da 
        época analisada. As duas primeiras, da autoria de D. Dinis, são 
        respectivamente uma cantiga de amigo, paralelística perfeita, e uma 
        cantiga de amor. A terceira composição é uma narrativa em verso de 
        carácter religioso, na qual se apresenta um milagre da Virgem contado 
        por Afonso X.[27]
        Quer D. Dinis, quer Afonso X, foram os dois soberanos que mais se 
        distinguiram nesta época no domínio da literatura, tendo-nos deixado um 
        elevado número de textos. 
        
          
        
        
        Sugestão de trabalho 
        9 
        
        São-lhe apresentados três textos do período galaico-português da autoria 
        dos dois reis mais importantes no domínio da produção poética: D. Dinis 
        e D. Afonso X. Antes de os ler, preste atenção às questões formuladas, 
        procurando efectuar as actividades aí propostas. Estas permitir-lhe-ão 
        não só descobrir as ideias dos textos, segundo uma progressão lógica, 
        mas também verificar e aplicar conhecimentos adquiridos em capítulos 
        anteriores. 
        
        Texto 1: 
        
          Ay flores, ay flores do uerde 
        pyno 
        
          se sabedes nouas do meu amigo! 
        
          Ay Deus, e hu é? 
        
          
        
          Ay flores, ay flores do uerde ramo, 
        
          se sabedes nouas do meu amado! 
        
          Ay Deus, e hu é? 
        
          
        
          Se sabedes  nouas do meu amigo, 
        
          aquele que metiu do que pos cõmigo! 
        
          Ay Deus, e hu é? 
        
          
        
          Se sabedes nouas do meu amado, 
        
          aquel que mëtiu do que mh á jurado? 
        
          Ay Deus, e hu é? 
        
          
        
          Vos me preguntades polo uoss' amigo, 
        
          e eu ben uos digo que é san' e uiuo; 
        
          Ay Deus, e hu é? 
        
          
        
          Vos me preguntades polo uoss' amado, 
        
          e eu bë uos digo que é uiu' e sano. 
        
          Ay Deus, e hu é? 
        
          
        
          E eu bë uos digo que é san' e uyuo, 
        
          e seera uosc'  ant'  o prazo saydo; 
        
          Ay Deus, e hu é? 
        
          
        
          E eu be  uos digo que é uiu'  e sano, 
        
          e seera uosc' ant' o prazo passado! 
        
          Ay Deus, e hu é? 
        
          D. Dinis, C. V. 171, C. B. N. 533
 
        
        1 - Leia atentamente o texto, procurando captar as ideias. 
        Para sua ajuda, as palavras transcritas em letra negrita ou 
        «bold» encontram-se na nota[28]. 
        
        2 - A composição pode dividir-se em duas partes distintas, 
        com igual estrutura, existindo em cada uma delas um emissor e um 
        receptor, entre os quais se estabelece a comunicação: 
        
        2.1 - Delimite as duas partes presentes na composição; 
        
        2.2 - Identifique o sujeito emissor e o receptor para 
        cada uma das partes; 
        
        2.3 - Identifique, transcrevendo-as, as mensagens 
        produzidas nos dois momentos da situação de comunicação existente no 
        texto.   
        
        3 - Identifique o tema e o assunto do texto. 
        
        4 - Quando uma pessoa se encontra preocupada com algum 
        problema, a maneira de aliviar o sofrimento é desabafar com alguém com 
        quem tenha grande amizade e confiança. A essa pessoa com quem se 
        desabafa e nos ouve pacientemente, dando-nos palavras de conforto, dá-se 
        o nome de confidente. 
        
        4.1 - Haverá no texto uma situação de confidência? 
        
        4.2 - Caso afirmativo, identifique os intervenientes. 
        
        4.3 - Diga, por palavras suas, o que se passou. 
        
        5 - Ideologicamente, a composição pode reduzir-se a sete 
        versos apenas. Efectue a síntese das ideias, transcrevendo esses versos. 
        
        6 - Do ponto de vista formal, uma composição pode ser 
        isomórfica ou heteromórfica. Se é constituída por estrofes todas elas 
        com a mesma estrutura, será isomórfica; se as estrofes apresentam uma 
        estrutura variável, por exemplo, número de versos diferente ou diferente 
        número de sílabas métricas, a composição será heteromórfica. 
        
        6.1 - Por quantas estrofes (coplas ou coblas) é 
        constituída a composição? 
        
        6.2 - Verifique se os dois primeiros versos de cada 
        estrofe apresentam dez sílabas métricas; 
        
        6.3 - Diga quantas sílabas métricas apresenta o último 
        verso de cada estrofe; 
        
        6.4 - Que nome dá a esse último verso sempre igual em 
        todas as estrofes? 
        
        7 - Se ideologicamente a composição é relativamente pobre, 
        formalmente a cantiga apresenta características que lhe conferem ritmo e 
        musicalidade. 
        
        7.1 - Sublinhe, usando cores diferentes, os versos que 
        são rigorosamente iguais dois a dois. 
        
        7.2 - Verifique agora, relativamente às quatro primeiras 
        estrofes, se o segundo verso da primeira estrofe é o primeiro da 
        terceira e se o segundo verso da segunda estrofe é o primeiro da quarta. 
        
        7.3 - Efectue actividade idêntica à anterior 
        relativamente às quatro estrofes seguintes. 
        
        7.4 - Compare as estrofes duas a duas. Verifique o que é 
        igual nos versos e quais as alterações introduzidas. Repare, por exemplo, 
        nos seguintes versos das estrofes 5 e 6: 
        
        «e eu ben uos digo que é san' e uiuo;» 
        
        «e eu be  uos digo que é uiu' e sano.» 
        
        Registe as conclusões que esta análise lhe permitiu tirar. 
        
        8 - Classifique os versos quanto ao esquema rimático e à 
        qualidade da rima[29]. 
        
        Texto 2: 
        
          Quer' eu en maneyra de proençal 
        
          fazer agora hum cantar d'amor 
        
          e querrey muyt' i loar mha senhor, 
        
          a que prez nem fremusura non 
        fal 
        
          nen bondade, e mays uos direy en: 
        
          tanto a fez Deus conprida de ben 
        
          que mays que todas las do mundo ual. 
        
          
        
          Ca 
        mha senhor quiso Deus fazer tal 
        
          quando a fez, que a fez sabedor 
        
          de todo bë e de mui grã ualor 
        
          e cõ tod' est [o] é mui comunal, 
        
          aly hu deue; er deu-lhi bõ 
        sen 
        
          e des y nõ lhe fez pouco de ben, 
        
          quando nõ quis que lh' outra foss' igual. 
        
          
        
          Ca en mha senhor nüca Deus pos mal, 
        
          mays pos hi prez e beldad' e loor 
        
          e falar mui bë e rjir melhor 
        
          que outra molher; des y é leal 
        
          muyt', e por esto nõ sey oi' eu que 
        
          possa compridamente no seu be 
        
          falar, ca nõ á, tra lo seu ben, al. 
        
          D. Dinis, C. V. 123, C. B. N. 485[30] 
          
        
        1 - Leia atentamente o texto acima transcrito, procurando 
        captar-lhe as ideias. Consulte a nota[31],
        que lhe 
        apresenta a explicação das palavras transcritas em letra negrita ou 
        «bold». 
        
        2 - Foi dito nas páginas anteriores relativas ao período 
        galaico-português que uma das características desta época era a grande 
        importação de vocábulos de origem francesa e provençal. 
        
        2.1 - Prove que a composição transcrita é um claro 
        exemplo da influência da língua e cultura francesa e provençal em 
        Portugal (Releia com atenção as notas referidas na alínea 1; 
        
        2.2 - Transcreva a expressão do texto que melhor revela 
        essa influência; 
        
        2.3 - Que pretende concretamente o sujeito poético? 
        
        3 - Transcreva do texto expressões referentes às 
        qualidades físicas, psicológicas, morais e sociais da «dona», 
        preenchendo o quadro apresentado: 
          
            |  | 
              
                | Qualidades físicas | Qualidades 
                psicológicas | Qualidades 
                morais | Qualidades 
                Sociais |  
                |     |  |  |  |  |  |  
        
        4 - Explique o sentido das seguintes expressões: 
        
        4.1 - «tanto a fez Deus conprida de ben / que mays que 
        todas las do mundo ual» (vv. 7-8); 
        
        4.2 - Qual a intenção do sujeito poético ao efectuar esta 
        afirmação? 
        
        4.3 - Esta afirmação encontra-se amplificada pelo 
        processo repetitivo:  transcreva outras expressões em que a mesma ideia 
        é reforçada. 
        
        4.4 - A superioridade da mulher «louvada» é "superlativada" 
        com uma expressão com a qual o sujeito poético conclui a sua 
        caracterização. Transcreva-a e explique o sentido. 
        
        5 - As cantigas de medievais podiam ser de refrão ou de 
        mestria. As primeiras eram consideradas mais simples, de feição mais 
        popular, enquanto as segundas eram composições de mestre, isto é, 
        composições que exigiam maior mestria, maiores conhecimentos e 
        habilidade por parte do trovador.  Segundo José Joaquim Nunes, as 
        cantigas de mestria seriam «as mais antigas, propriamente cortesãs e de 
        pura imitação provençal». Por outro lado, as cantigas profanas de 
        temática amorosa dividem-se em duas classes, conforme o amor é visto 
        pelo lado feminino ou pelo lado masculino. Se é a rapariga que fala do 
        amigo, teremos uma «cantiga de amigo»; se, pelo contrário, o amor é 
        visto pelo lado do homem, que fala da mulher amada, teremos uma cantiga 
        de amor. 
        
        Tendo em conta as informações fornecidas no parágrafo 
        anterior, classifique o texto em análise. 
        
        6 - Na lírica medieval, existia um processo poético 
        trovadoresco que consistia em ligar as estrofes entre si por meio de uma 
        conjunção tal como, por exemplo, car, ca, pois, 
        e, etc, conhecido pelo nome de atafinda. Veja se tal se 
        verifica na composição em análise, destacando e classificando 
        morfologicamente a conjunção utilizada. 
        
        7 - Analise formalmente o texto tendo em conta as alíneas: 
        
        7.1 - isomorfismo ou heteromorfismo; 
        
        7.2 - número de sílabas métricas; 
        
        7.3 - esquema rimático; 
        
        7.4 - Classificação da rima quanto: 
        
                 7.4.1 - ao esquema rimático; 
        
                 7.4.2 - à qualidade da rima; 
        
        7.5 - Classificação dos versos quanto à acentuação. 
        
        8 - Elabore um comentário pessoal ao texto, expondo o que 
        pensa acerca dele [alguns aspectos que poderá ter em conta: valor 
        literário; valor documental; actualidade ou anacronismo do tema, etc.]
        [32]. 
          
          
            |  | 
             |  |  
            |  | Figura 36: Como um 
            monge rogava sempre Santa Maria que lli mostrasse o ben do paraiso.
            Ilustração da cantª CIII, estampa 114. |  |  
        
        
        Texto 3[33]: 
        
        Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao 
        canto da passarya porque lle pedia que lle mostrasse qual era o 
        ben que auian os que eran en Paraiso. 
        
          
        
                          Quen a Uirgen ben seruira 
        
                          a Parayso ira. 
        
          
        
          
        
               E daquest'  un gran miragre uos quer'  eu ora contar, 
        
        que fezo Santa Maria por um monge, que rogar 
        
        ll'  ia sempre que lle mostrasse qual ben en Parais'  á 
        
                          Quen a Uirgen ben seruira...     
        
               E 
        que o uiss' en ssa uida, ante que fosse morrer, 
        
        Et porend' a Groriosa uedes que lle foi 
        fazer: 
        
        fez-lo entrar en hüa orta, en que muitas vezes
        ia 
        
                          Quen a Uirgen ben seruira... 
        
          
          
        
               Entrara;  mais aquel dia fez que hüa font' achou 
        
        mui crara et mui fremosa, et cab' ela 
        s'assentou; 
        
        et, pois lauou ben sas mãos, diss': «Ai, Uirgen, que 
        sera? 
        
                          Quen a Uirgen ben seruira... 
        
          
        
          
        
               Se uerei do Parayso o ch' eu muito pidi, 
        
        algun pouco de seu uiço ante que saya d' aqui, 
        
        e que sabia do que ben  obra que galardon 
        auera?» 
        
                          Quen a Uirgen ben seruira... 
        
          
        
          
        
               Tan toste que acabada ouu' o mong' a oraçon, 
        
        oyu hüa passarinna cantar log' en tan bon son, 
        
        que se escaeceu  seendo et, catando 
        sempr' ala, 
        
                          Quen a Uirgen ben seruira... 
        
          
        
          
        
               Atan grand sabor auia daquele cant' e daquel lais, 
        
        que grandes trezentos anos esteue assi ou mays, 
        
        cuidando que non esteuera senon pouco com' esta 
        
                          Quen a Uirgen ben seruira... 
        
          
        
          
        
               Monge algüa vez no ano, quando sal ao uergeu; 
        
        des i foi-ss' a passarynna, de que foi a el mui greu, 
        
        et diz: «Eu d'aqui ir-me quero, ca oy mais comer
        querra 
        
                          Quen a Uirgen ben seruira... 
        
          
        
          
        
               O convent'.» Et foi-sse logo et achou un grand portal, 
        
        que nunca uira, et disse: «Ai, Santa Maria, ual! 
        
        Non é est' o meu mõesteiro; pois de mi que se fara?» 
        
                          Quen a Uirgen ben seruira... 
        
          
        
          
        
               
        
        Des i 
        entrou na eigreja, et ouueron grand pauor 
        
        os monges quando o uiron, et demandou-ll' o prior 
        
        dizend': «Amigo, uos quen sodes ou que buscades aca?» 
        
                          Quen a Uirgen ben seruira... 
        
          
        
          
        
               Diss' el: «Busco meu abade, que agor' aqui leixey, 
        
        et o prior e os frades, de que mi agora 
        quitey 
        
        quando fui a aquela orta; u seen, quen mi o dira?» 
        
                          Quen a Uirgen ben seruira...[34] 
             
        
               Quand' est' oyu o abade, teue-o por de mal 
        sen 
        
        e outrossi o conuento;  mais, des que souberon ben 
        
        de que fora este feyto, diseron: «Quen oyra 
        
                          Quen a Uirgen ben seruira... 
        
          
        
          
        
               Nunca tan gran marauilla como Deus por este fez, 
        
        pelo rogo de ssa Madre, Uirgen Santa de gran prez! 
        
        E por aquesto a loemos, mais quen a non loara, 
        
                          Quen a Uirgen ben seruira... 
        
          
        
          
        
               Mais d' outra cousa que seia? Ca, par Deus, gran direit' 
        é 
        
        pois quanto nos lle pedimos nos da seu Fill' a la fee, 
        
        por ela, e aqui nos mostra o que nos depois dara. 
        
                          Quen a Uirgen ben seruira... 
        
                          a Parayso ira. 
        
        CSM, CE J. b. 2 e T. j. 1, CIII (ed. de Valmar), R. Lapa,
        Alfonso X, o Sabio, Cantigas de Santa Maria, 15. (Vd. também op. 
        cit. de Corrêa de Oliveira e Saavedra Machado, pp. 152-154.
 
        
        1 - Não leia, por enquanto, o texto anteriormente 
        transcrito. Em vez disso, observe atentamente a
        figura 36, procurando 
        interpretar a narrativa aí apresentada. Para sua ajuda, são-lhe 
        apresentadas a seguir algumas orientações: 
        
        1.1 - Que tipo de texto se encontra documentado na figura 
        36? Em caso de dúvida, observe também o exemplar apresentado na 
        figura 
        37. 
        
        2 - Centre a sua atenção na primeira imagem da figura 36: 
        
        2.1 - Onde se situa a acção? 
        
        2.2 - Que personagens aí se encontram? 
        
        2.3 - Que estará a fazer a personagem que se encontra na 
        metade esquerda? 
        
        3 - Centre a sua atenção nas três imagens seguintes. 
        
        3.1 - Onde se passa a acção? 
        
        3.2 - Que faz a personagem principal? (Preste atenção às 
        posições e atitudes assumidas por ela nas três quadrículas) 
        
        3.3 - Observe mais atentamente a terceira imagem. Além da 
        personagem principal, encontra-se outra aí presente, cujo papel é 
        importante. Localize-a. 
        
        3.4 - Trace uma diagonal na imagem três, ligando o canto 
        inferior esquerdo ao canto superior direito. 
        
        3.4.1 - Que elementos se encontram nessa diagonal? Se não 
        conseguiu responder à pergunta 3.3, tente fazê-lo agora. 
        
        3.4.2 - Procure descobrir o que estará a personagem 
        principal a fazer. 
        
        3.5 - Observe nas três imagens o portal de entrada do 
        mosteiro. 
        
        3.5.1 - Que alterações observa? 
        
        3.5.2 - Qual a função desempenhada por este elemento no 
        desenvolvimento da história? 
        
        4 - Observe a atitude da personagem na imagem 4. 
        
        4.1 - Que facto revela? 
        
        5 - Centre a sua atenção nas imagens 5 e 6. 
        
        5.1 - Onde se passa a acção? 
        
        5.2 - Quantos elementos humanos aí se encontram? 
        
        5.3 - Que facto se estará a passar? 
        
        6 - Centre a sua atenção na imagem 6. 
        
        6.1 - Em que parte do mosteiro se passa a acção? 
        
        6.2 - Compare com a imagem 1. 
        
                6.2.1 - Tratar-se-á do mesmo local? 
        
                6.2.2 - Tratar-se-á do mesmo período de tempo? 
        
        6.3 - Para ajudar a descobrir a resposta para a questão 
        6.2.2, efectue a seguinte actividade: 
        
                6.3.1 - Compare o portal de entrada nas imagens 1 e 6. 
        
                6.3.2 - Observe a lanterna suspensa nas imagens 1 e 6. 
        
                6.3.3 - A que conclusão chegou? 
        
        7 - O que estarão os monges a fazer na imagem 6? 
        
               7.1 - Como explica a sua atitude? 
        
        8 - Chegou agora o momento de ler o texto. Faça-o 
        consultando, para sua ajuda, as notas apresentadas com o vocabulário. 
        Para facilitar a leitura, salte o refrão. 
        
        9 - Estabeleça uma relação entre o texto que acabou de 
        ler e a banda desenhada medieval presente na figura 36. 
        
        9.1 - Procure fazer corresponder os diferentes momentos 
        da sequência narrativa às imagens da figura 36. 
        
        9.2 - Tendo por base os três períodos de tempo 
        fundamentais,  divida o texto em partes. 
          
            |  | 
             |  |  
            |  | Figura 37: Aspecto da 
            primeira página de uma banda desenhada portuguesa de 1933. |  |  
        
        10 - Efectue a leitura da B. D. presente na figura 37.
 
        
        10.1 - Compare-a com a da figura 36. Responda às questões, 
        procurando justificar o seu ponto de vista. 
        
        10.1.1 - Qual a mais interessante? 
        
        10.1.2 - Qual a mais rica ideologicamente? 
        
        10.1.3 - Qual a melhor relativamente à qualidade da 
        imagem? 
        
        11 - Analise formalmente o texto 3, tendo em conta os 
        seguintes aspectos: 
        
        11.1 - Agrupamento estrófico: composição hetero ou 
        isomórfica? 
        
        11.2 - Tipo de composição. 
        
        11.3 - Número de sílabas métricas. 
        
        11.4 - Esquema rimático. 
        
        11.5 - Tipo de rima.[35]
         
 
            
            [16] – JOSÉ JOAQUIM NUNES, Crestomatia Arcaica, 5ª ed., Lisboa, 
            Livraria Clássica Editora, 1959, pp. XXI-XXIII. 
            
        [17] – 
            Vejam-se os seguintes exemplos de palavras divergentes, que 
            nos mostram bem a diferença e o grau de evolução entre as duas vias: 
            
            
               LATIM CLAVEM -----> via erudita clave; via popular 
            chave 
            
            
               LATIM  FOCUM -----> via erudita foco;  via popular fogo 
            
            
               LATIM PLANUM -----> via erudita plano; via popular chão 
            
            
             Enquanto na via erudita, nos exemplos citados, apenas ocorre a 
            apócope da desinência do acusativo latino, na via popular ocorrem 
            diversos fenómenos: 
            
            
            CLAVE(M) 
            >  clave > chave   (apócope  e palatalização); 
            
            
            FOCU(M)  
            >  foco  >  fogo   (apócope e sonorização); 
            
            
            PLANU(M) 
            >  plano >*chano > chão (apócope, palatalização, síncope e nasalização. 
            
        [18] – 
            SERAFIM DA SILVA NETO, História da Língua Portuguesa, 3ª 
            ed., pp. 380 a 395. 
            
            
        [19] – FERNÃO LOPES, Crónica de D. João I, 1ª parte. 
            
        [20] – 
            Chegaram até nós quatro cancioneiros: o Cancioneiro da 
        Ajuda, o Cancioneiro da Vaticana, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional e as 
            Cantigas de Santa Maria, de Afonso X. 
            
            
                        O Cancioneiro da Ajuda é de todos o mais completo. 
            Apresenta apenas composições anteriores ao reinado de D. Dinis e 
            deixa de fora os géneros mais vulgares, como as cantigas de amigo e 
            as de escárnio e de maldizer. É no entanto valioso, porque é da 
            própria época, apresentando a grafia de então e valiosas iluminuras, 
            que documentam aspectos da vida da época. 
            
            
                        Os Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional 
            foram compilados após a morte de D. Dinis, abrangendo um período de 
            tempo mais vasto, apresentando poetas anteriores à época de D. 
            Afonso III e posteriores a D. Dinis. Apresentam além disso todos os 
            géneros de composições. 
            
            
                        De todos, o mais completo é o Cancioneiro da Biblioteca 
            Nacional, também conhecido por Cancioneiro de Colocci-Brancuti 
            por ter pertencido a este erudito italiano. Foi adquirido pelo 
            governo português em 1924. 
            
            
                        Para um conhecimento mais aprofundado, quer dos cancioneiros, 
            quer da lírica medieval, aconselha-se, além dos verbetes respectivos 
            presentes em enciclopédias, a obra de ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA e ÓSCAR 
            LOPES, História da Literatura Portuguesa, 8ª edição, Porto 
            Editora, pp. 15 a 74. 
            
        [21] –
            Regista-se entre parênteses rectos, embora sem 
            recorrer a uma transcrição fonética, a pronúncia das palavras cuja 
            vogal acentuada com circunflexo tinha um som fechado. 
            
        [22] – 
            PILAR VÁZQUEZ CUESTA e MARIA ALBERTINA MENDES DA LUZ, Gramática 
            da língua portuguesa, Edições 70, 1988, 702 pp. 
            
        [23] – 
            Para um conhecimento mais aprofundado da lírica medieval, 
        aconselham-se, entre outras, as seguintes obras: 
            
            
            CORRÊA DE OLIVEIRA e SAAVEDRA MACHADO, Textos portugueses 
            medievais, 2ª edição, Coimbra, Atlântida Editora, 1961. 
            
            
            JOSÉ JOAQUIM NUNES, Crestomatia arcaica, 5º edição, Lisboa, 
            Livraria Clássica Editora, 1959, CXXII+624 pp. 
            
        [24] – 
            Comentários às palavras por nós destacadas no documento: 
            
            
            offeyro: 
            do latim offerio, de offerire, por oferre, que 
            significa oferecer;  moensteyro: do latim *monisteriu- 
            'mosteiro'; Vayram: do latim Valeriani;  eygeygga: 
            do latim ecclesia- 'igreja'; hu: ao lado de outras 
            formas como u  e us, é o artigo definido masculino do 
            singular o (do latim illu-); fecta: do latim 
            factus, a, um 'feita'; Petri: apelido patronímico, forma 
            do genitivo do latim Petrus. 
            
            
        [25] – SILVIO PELLEGRINI, Studi su trove e trovatori della prima 
            lirica ispano-portoghese, Turim, 1937, pp. 59-71. 
            
        [26] – 
            A cantiga atribuída a D. Sancho I tem tido várias 
        leituras, das quais transcrevemos algumas: 
            
            
            1 - Segundo Silvio Pellegrini, na obra citada, apresenta a seguinte 
            forma: 
            
            
              Ay ei coitada como viuo 
            
            
              Em gram cuydado por meu amigo 
            
            
              que ey alongado chuyto me tarda 
            
            
              O meu amigo na guarda 
            
            
              
            
            
              Ay eu coitada como viuo  
            
            
              Em gm deselo por meu amigo 
            
            
              Que tarda e non ueio muyto me tarda 
            
            
              o meu amigo na guarda 
              
            
            
            2 - Segundo Oskar Nobiling, em Archiv für das Studium der neueren 
            Sprachen und Literaturen, CXXI, p. 999: 
              
            
            
              Ai eu coitada! 
            
            
              Como vivo em gram cuidado 
            
            
              por meu amigo 
            
            
              que ei alongado! 
            
            
              Muito me tarda 
            
            
              O meu amigo na Guarda! 
            
            
              
            
            
              Ai eu coitada! 
            
            
              Como vivo em gram desejo 
            
            
              por meu amigo 
            
            
              que tarda e non vejo! 
            
            
              Muito me tarda 
            
            
              o meu amigo na Guarda! 
              
            
            
            3 - Segundo Leite de Vasconcelos, em Textos arcaicos, 3ª ed., 
            pp. 17-18, encontramos a seguinte forma: 
            
            
              Ay eu coitada, como vivo en gran cuidado 
            
            
              por meu amigo que ei alongado! 
            
            
              Muito me tarda 
            
            
              o meu amigo na Guarda! 
            
            
              
            
            
              Ay eu coitada, como vivo en gran desejo 
            
            
              por meu amigo que tarda e não vejo 
            
            
              Muito me tarda 
            
            
              o meu amigo na Guarda! 
              
            
            
            4 - Na edição da REVISTA DE PORTUGAL, cuja transcrição é idêntica à 
            de Teófilo Braga, na sua História da Literatura Portuguesa, Idade 
            Média, p. 188, encontramos o seguinte: 
            
            
             Ay! eu coitada 
            
            
              como viuo 
            
            
              En gram cuydado 
            
            
              por meu amigo 
            
            
              Que ey alongado! 
            
            
              Muyto me tarda 
            
            
              o meu amigo 
            
            
              na guarda! 
            
            
                
            
            
             Ay! eu coitada 
            
            
              como viuo 
            
            
              En gram deseio 
            
            
              por meu amigo 
            
            
              Que tarda e non veio! 
            
            
              Muyto me tarda 
            
            
              o meu amigo 
            
            
              na guarda! 
            
        [27] – 
            Da Crestomatia Arcaica de José Joaquim Nunes transcrevemos 
            os dados biográficos relativos aos poetas apresentados nestas 
            páginas: 
            
            
            Pai Soares, de Taveiroos
            
            ─ 
            (Taveiroos equivale à forma actual Taveirós) Pertence este trovador 
            à nobre família dos Velhos, a qual mais tarde devia ilustrar 
            ainda outro seu descendente, fr. Gonçalo Velho, o descobridor dos 
            Açores; a sua actividade poética, que se manifestou em cantares de 
            amor e de amigo, deve ser colocada nos primeiros decénios do século 
            XIII, parecendo até que ainda poetou no século XII (pág. 542 da op. 
            cit.). 
            
            
            D. Sancho I
            
            ─ 
            A ser o segundo rei português o autor da cantiga de amigo que no 
            Cancioneiro de Colocci Brancuti tem o nº 348, como prova D. Carolina 
            Michaëlis de Vasconcelos (...), é este um dos primeiros que suspirou 
            versos na sonora língua portuguesa (pág. 546 da op. cit.). 
            
            
            D. Dinis
            
            ─ 
            Ocupa sem dúvida o primeiro lugar entre os trovadores 
            galego-portugueses o príncipe que a história cognominou de 
            rei-lavrador. Do seu zelo pela instrução do povo é testemunho 
            irrefragável a fundação da Universidade, do seu talento e fecunda 
            veia poética falam exuberantemente os seus versos. Embora admirador 
            e sequaz da escola provençal, não desdenhou o género popular, sendo 
            um dos que maior número de composições nos deixaram desta espécie. A 
            julgar pela especial estima que consagrou a seu filho bastardo, D. 
            Afonso Sanchez, é de crer que algumas das suas cantigas de amor 
            sejam dirigidas à mãe deste, Aldonça Rodrigues da Telha, filha dum 
            fidalgo, Rui Gomes da Telha, nomeado numa das Cantigas, a 1.059, do
            Cancioneiro da Vaticana. Enquanto o mais rico dos trovadores 
            figura nos Cancioneiros com 56 poesias apenas, existem deste monarca 
            138, repartidas pelos três géneros  (pág. 532 da op. cit.). 
            
            
            D. Afonso de Leão e Castela
            
            ─ 
            Ocupa D. Afonso X, o sábio, um lugar distinto entre os trovadores do 
            seu tempo que utilizaram a língua galego-portuguesa nos seus cantos, 
            não só pelo que nos legou, mas principalmente pela protecção e 
            acolhimento que na sua corte dispensou a quantos cultivavam a poesia 
            nessa época. Além de cantigas de amor e maldizer em que se 
            exercitou na sua mocidade, deu-se a um género especial, o verso 
            sacro, escrevendo as suas Cantigas de Santa Maria, nas quais 
            canta vários prodígios atribuídos à protecção da Virgem (...) (pp. 
            529-530 da op. cit.). 
            
        [28] – 
            pyno: do latim PINU(M) - pinho, pinheiro; nouas: o 
            mesmo que novas, ou seja, novidades, notícias; hu: do latim 
            UBI, confronte-se com o francês où, significa 'onde, em que'; pos 
            cõmigo: combinou comigo. 
            
        [29] – 
            A composição de D. Dinis apresentada para análise é uma cantiga de 
            amigo de refrão e uma paralelística perfeita com a característica de 
            ser dialogada. Nas quatro primeiras estrofes ou coplas (na época 
            trovadoresca, as estrofes eram designadas pelas expressões cobra,
            cobla ou talho), a rapariga pergunta às flores do 
            verde pinho se têm notícias do seu amado e, nas quatro seguintes, as 
            flores sossegam-na dizendo-lhe que o amigo está bem e que estará com 
            ela antes do prazo marcado. 
            
            
                        Temos por tema o amor ou a preocupação da rapariga pelo amigo ou 
            amado ausente. Quanto ao assunto, verificamos que a época é aquela 
            em «que a flor tem consigo a cor», como diria poeticamente D. Dinis 
            para se referir à Primavera. Possivelmente, o amigo ausente e que 
            lhe jurou regressar andaria no fossado e ela, ansiosa e 
            apaixonada, pede às flores do pinheiro que lhe dêem notícias dele. 
            Elas sossegam-na dizendo-lhe que está vivo e são e que estará com 
            ela antes do prazo expirado. 
            
            
                        Do ponto de vista formal, temos uma composição isomórfica, 
            constituída por estrofes formadas por um dístico decassilábico com 
            rima toante, excepto na 3ª e 4ª estrofes, e um refrão de cinco 
            sílabas. Possivelmente a composição seria cantada por três vozes, 
            isto é, a primeira parte por uma das moças que dançavam, a segunda 
            parte por outra e o refrão seria cantado por um coro. A cantiga é 
            também uma paralelística perfeita, uma vez que há repetição de 
            versos segundo um esquema perfeito: o segundo verso da primeira 
            estrofe é o primeiro da terceira e o segundo da segunda é o primeiro 
            da quarta, repetindo-se depois o mesmo esquema na segunda metade do 
            texto. Além deste tipo de paralelismo, verificamos existir também 
            paralelismo estrutural e semântico entre os versos. Por exemplo, os 
            primeiros versos das duas primeiras estrofes apresentam não só a 
            mesma estrutura como também a mesma ideia, apenas havendo a troca de
            pyno por ramo. Idêntico facto ocorre com os segundos 
            versos nestas e nas estrofes seguintes. Na segunda metade ocorre 
            também um quiasmo, na medida em que as palavras, por exemplo, vivo e 
            sano, são as mesmas, mas trocando entre si de lugar. 
            
            
                        Ideologicamente a composição é pobre, podendo reduzir-se a sete 
            versos apenas, que passamos a transcrever em linguagem actual: «Ai 
            flores, ai flores do verde pinho, / se sabedes novas do meu amigo, / 
            aquele que mentiu relativamente ao que combinou comigo,  / Ai Deus, 
            e onde está? // Vós me perguntais pelo vosso amigo / e eu bem vos 
            digo que está são e vivo / e estará convosco antes do prazo expirado». 
            
            
                        Se ideologicamente a composição é relativamente pobre, as 
            repetições frequentes, próprias do paralelismo, e a sua 
            interpretação por mais de uma voz deveriam conferir-lhe uma certa 
            plasticidade, musicalidade e ritmo. Pena é que, à excepção de cinco 
            cantigas de Martim Codax, se tenham perdido os registos musicais. 
            
        [30] – 
            Para os textos transcritos na sugestão de trabalho 
        optámos, de entre as várias transcrições disponíveis em obras sobre a 
        lírica medieval, pelas versões presentes na colectânea Textos 
            Portugueses Medievais de Corrêa de Oliveira e Saavedra Machado, 
            anteriormente citada. 
            
        [31] – 
            À medida que for lendo o texto, preste atenção ao vocabulário que a 
            seguir lhe é explicado. Deste modo poderá ficar com uma ideia mais 
            rigorosa do sentido do texto: 
            
            
            querrey: 
            forma da primeira pessoa do singular do futuro do indicativo do 
            verbo querer, do latim QUAERERE, que significa 'buscar, procurar'. 
            
            
            i: 
            advérbio de lugar aí, do latim IBI (latim IBI >ii > i), que 
            nos faz lembrar o pronome adverbial y da língua francesa. 
            
            
            loar: 
            infinito do verbo louvar, do latim lodare, em vez da 
            forma erudita LAUDARE (latim  LAUDARE > lodare > loar). Eis o 
            sentido do verso onde se encontram esta e as duas palavras 
            anteriores em português actual: «e procurarei aqui (ou aí) louvar a 
            minha senhora». Como já foi anteriormente referido, as palavras 
            terminadas em -OR eram nesta época uniformes, o que equivale a dizer 
            que mantinham a mesma forma para o masculino e o feminino. 
            
            
            prez: 
            palavra proveniente do provençal pretz (do latim PRETIU-, que 
            deu a actual forma portuguesa 'preço'), que designa o conjunto de 
            dotes ou qualidades que tornavam a senhora digna de ser amada, 
            podendo ser traduzida por 'mérito, dignidade'. 
            
            
            fal: 
            terceira pessoa do singular do presente do indicativo de falir, 
            do verbo latino FALLERE (lat. fallit > fal). Neste caso, poderemos 
            fazê-la equivaler a faltar: «a quem mérito nem formosura não faltam». 
            
            
            en 
            ou ë: forma proveniente de ende, do latim INDE, que 
            terá dado a forma actual do pronome adverbial francês en e 
            que encontramos também no português da época galaico-portuguesa com 
            o valor de 'disso, acerca disso, daí'. 
            
            
            conprida: 
            forma proveniente do verbo comprir (do latim COMPLERE); 
            significa 'perfeita, completa'. No caso do verso em que se encontra, 
            «conprida de ben» significará 'cheia de bem'. 
            
            
            ca: 
            palavra que facilmente entenderemos se nos lembrarmos do francês 
            car. É a conjunção subordinativa causal, proveniente do latim 
            QUIA e significa 'porque'. 
            
            
            comunal: 
            palavra proveniente do «baixo latim» COMMUNALE-, está relacionada  
            com os vocábulos comum, comunidade, comunicar, 
            o que significa que a senhora era muito sociável, tratável, com boas 
            maneiras ou até mesmo lhana. Como diz o próprio poeta, é ela 
            «mui comunal, aly hu deve», que é como quem diz 'sabia comportar-se 
            condignamente em sociedade'. 
            
            
            hu: 
            palavra que faz evocar a forma francesa où, é uma palavra 
            proveniente do latim UBI, que significa 'onde, quando'. 
            
            
            sen: 
            tem a ver com senso, podendo significar 'juízo, pensar, opinião'. 
            
            
            des y: 
            significa 'além disso'. 
            
            
            tra lo: 
            significa 'além do'. 
            
            
            al: 
            provém do latim vulgar ale, por sua vez de ALID, ALIUD, 
            significando 'outro, outra, outra coisa, outra pessoa, alguma coisa'. 
              
            
        [32] – 
            Quando apresentámos algumas das características do 
        português do período trovadoresco ou galaico-português, referimos a 
        grande influência das línguas francesa e provençal na península, com 
        importação de grande número de vocábulos. Tal como hoje, já por esta 
        altura se notava uma grande influência da cultura francesa em Portugal, 
        o que não será de admirar se nos lembrarmos da ascendência francesa dos 
        nossos primeiros governantes. A composição transcrita de D. Dinis é uma 
        prova irrefutável dessa influência. Apesar de noutra composição este 
        grande poeta criticar os poetas provençais pela sua grande falta de 
        sinceridade amorosa, ao trovarem por suas damas apenas na primavera, ele 
        próprio quer agora compor uma cantiga de amor à maneira provençal. 
            
            
                        Esta cantiga caracteriza-se pelo seu isomorfismo e isometria. 
            Trata-se de uma cantiga de mestria, isto é, de uma cantiga 
            sem refrão, com três coplas isomórficas e isométricas, constituídas 
            cada uma por sete versos decassilábicos agudos. 
            
            
                        
            Na composição o poeta exprime o desejo de fazer uma cantiga de amor 
            à maneira provençal, a fim de nela louvar muito a sua senhora, a 
            quem Deus concedeu tantos dotes físicos e morais que não há no mundo 
            outra que se lhe assemelhe. 
            
            
                        No retrato traçado predominam essencialmente os dotes 
            psicológicos. Exceptuando a «fremusura» e «beldade», termos 
            praticamente sinónimos, tudo o mais se refere às qualidades morais, 
            psicológicas e sociais da dama, expressas através das palavras ou 
            expressões que destacamos do texto: 
            
            
            prez; bondade; comprida de bem; sabedora de todo o bem; de muito 
            grande valor; muito comunal ali onde deve (o que poderá ser 
            entendido de duas maneiras: ou que é muito sociável, com boas 
            maneiras, quando é ocasião para isso, ou que tem estas qualidades na 
            medida certa, nem a mais nem a menos); tem bom senso; é exemplar 
            único, sem igual; e além de tudo isto nunca Deus lhe pôs mal, mas 
            sim louvor, falar muito bem e rir melhor que outra mulher; fê-la 
            muito leal a ponto de ser impossível falar de maneira completa  
            acerca dela. Por muito bem que se diga dela, ainda há-de ficar muito 
            por dizer. 
            
            
                        Além da grande enumeração de qualidades, com recurso quer ao assíndeto, quer ao polissíndeto e aos advérbios, encontramos as 
            estrofes ligadas entre si por meio de conjunção, neste caso da 
            conjunção subordinativa ca, processo que na época 
            trovadoresca tinha a designação de atafinda. 
            
            
                        O 
            esquema rimático da composição pode ser reduzido à fórmula 3 (a b b 
            a c c a), havendo por isso rima emparelhada e interpolada. Quanto à 
            qualidade, a rima é consoante. Quanto à acentuação, os versos são 
            todos agudos. 
            
        [33] – 
            Não leia já o texto transcrito. Se o fizer, prejudicará a 
        sua actividade de reflexão. Passe directamente para 
            as questões que lhe 
        são apresentadas a seguir ao texto. Só depois, quando tal lhe for 
        solicitado, deverá efectuar a leitura do texto. As palavras em letra 
        negrita ou «bold» encontram-se explicadas nas notas ao texto. 
            
        [34] – 
            passarya: também grafado com as formas passarinna,
            passarinha, é uma palavra proveniente do latim PASSER + INU. 
            Hoje masculina e com a forma passarinho, era na época arcaica 
            do género feminino. 
            
            
            porend: 
            esta palavra é proveniente do latim vulgar porinde, por sua 
            vez do latim PROINDE.  Significa 'por isso, por este motivo, por 
            causa disso, portanto'; pode também aparecer registada com as 
            variantes poremde, por em, por en ou por 
            ende. 
            
            
            groriosa: 
            o mesmo que gloriosa, ocorreu a assimilação regressiva 
            completa do fonema L por influência do fonema da sílaba seguinte 
            (lat. GLORIOSUS, A, UM; gloriosa- > groriosa). 
            
            
            orta: 
            o mesmo que horta, apresenta o sentido do actual vocábulo 
            horto, isto é, jardim. 
            
            
            ia: 
            o mesmo que já (do latim JAM), significa 'logo, desde este 
            momento, já'. 
            
            
            crara: 
            o mesmo que clara (do latim CLARUS, A, UM), pode surgir com o 
            valor de adjectivo -claro- ou de advérbio -claramente, 
            manifestamente,evidentemente.  
            
            
            cab: 
            forma apocopada ou elidida de cabo (do latim CAPUT 'cabeça, 
            cume, cimo'), pode significar 'princípio, começo, fim, extremidade, 
            extremo, cume, junto de, ao lado de;  pode surgir em diferentes 
            expressões como «como de cabo» ('como de princípio, de começo') «e 
            cabo» ('ao cabo de, ao fim de'), «de cabo» ('de junto de') ou «por 
            meu cabo» (fórmula de juramento). 
            
            
            che 
            ou ch': forma da segunda pessoa do pronome pessoal, que ainda 
            subsiste no galelo e que corresponde ao actual português te. 
            
            
            sabia: 
            forma do presente do conjuntivo do verbo saber: saiba. 
            
            
            galardon: 
            também registado galardom ou gualardom, é uma palavra 
            proveniente do antigo alemão WIDARLON e significa 'galardão, prémio, 
            recompensa'. 
            
            
            toste: 
            forma do provençal tost, que deu no actual francês tôt, 
            proveniente do latim  TOSTUS, forma do particípio passado de TORRERE, 
            significa 'logo, depressa, cedo'. 
            
            
            se escaeceu seendo: 
            significa que se enlevou, que se esqueceu de tudo quanto o rodeava e 
            que ficou suspenso, alheado de tudo, como em êxtase. 
            
            
            catando: 
            forma do verbo catar (do latim CAPTARE), significa 'olhar, 
            procurar', examinar'. 
            
            
            lais: 
            também registado com as formas lai, lays ou laix, 
            de origem céltica (no irlandês, laid, 'canto, poema; no 
            francês, lai, que deu origem ao inglês lay), designa 
            um poema lírico ou narrativo, cantado pelos jograis ingleses. É 
            bastante conhecido o lais de João de Lobeira, poeta que frequentou a 
            corte portuguesa entre 1258 e 1285. 
            
            
            sal: 
            forma do verbo SALIRE, significa 'sai'. 
            
            
            vergeu: 
            o mesmo que vergel, pomar, jardim. 
            
            
            greu: 
            forma proveniente do latim GRAVIS, que significa 'grave, pesado', (latim 
            GRAVIS > *grevis > greve > greu); significa neste texto 'penoso, 
            desagradável'. 
            
            
            oy mais: 
            aparece também registado oymais (do latim HODIE MAGIS) e 
            significa 'desde hoje, doravante, já'. 
            
            
            querra: 
            forma da terceira pessoa do singular do futuro do indicativo do 
            verbo querer (cfr. fr. voudra); o étimo latino é QUAERERE, 
            que significa 'querer, querer bem, bem querer, amar'. 
            
            
            ual: 
            imperativo optativo do verbo valer (latim VALERE), significa 'valha-me, 
            acuda-me, socorra-me'. 
            
            
            des i: 
            surge também com as formas desy, des i, desi,
            des hi e provém do latim DE EX HIC e pode significar 'depois, 
            então, desde então, além disso, ainda por cima'. 
            
            
            demandou: 
            do latim DEMANDARE, pode significar 'perguntar, demandar, procurar, 
            buscar, pelejar'; confronte-se com o actual verbo francês 
            demander. 
            
            
            quitey: 
            forma verbal proveniente do francês quitter, do baixo latim 
            jurídico QUITARE, de QUIETUS, forma do supino do verbo QUIESCERE; 
            QUIETUS significa 'quieto, calmo, tranquilo'; a forma quitar 
            significa 'deixar, afastar, separar, livrar de, pôr de lado, 
            desobrigar, pagar'. 
            
            
            seen: 
            também registada com a forma seem, é a terceira pessoa do 
            plural proveniente do latim SEDENT, de SEDERE, que significa 'estar'. 
            
            
            sen: 
            também registado com a grafia ssem, provém do provençal 
            sen que deu no francês actual sens ('sentido, senso'), 
            proveniente por sua vez do latim SENSUS, significa 'juízo, 
            inteligência'; na expressão «de mal sen» significa 'mau juízo, 
            loucura, louco'. 
              
            
        [35] – 
            O texto transcrito, da autoria de Afonso X (vejam-se as 
        notas anteriores, nas quais foram apresentados alguns elementos acerca 
        dos autores), embora considerado como uma cantiga de refrão e de 
        atafinda, é no fundo uma narrativa versificada, com todas as 
        características próprias do género narrativo: narrador e narratário, 
        personagens, referentes espácio-temporais e acção, à qual nem sequer 
            falta o diálogo. Para melhor atestar a nossa opinião, uma 
            maravilhosa «banda desenhada» ilustra a cantiga CIII, cuja cópia 
            está muito aquém da beleza original. 
            
            
                        
            Poder-se-á falar de banda desenhada quando nos encontramos em pleno 
            período galaico-português? Mas que outro nome mais adequado 
            poderemos empregar para uma sequência de seis imagens de formato 
            quadrado, dispostas em três faixas ricamente emolduradas, às quais 
            não falta sequer a respectiva legenda, evocando a moderna banda 
            desenhada surgida por volta de 1920-1930? 
            
            
                        Recordemos, por exemplo, para o caso de Portugal, algumas das 
            primeiras revistas de B. D. aqui publicadas, como é o caso, por 
            exemplo, do ABCzinho, cujo primeiro número surgiu em 15 de 
            Outubro de 1921, ou do jornal infantil Tic-Tac, surgido nos 
            anos 30, e muitos outros. Comparando, por exemplo, a primeira página 
            desta última publicação com a estampa 114 (vejam-se as figuras 36 e 
            37), que ilustra a cantiga transcrita, teremos de admitir que, 
            exceptuando o texto, mais completo na revista, a sequência de seis 
            imagens apresenta maior riqueza de informação e originalidade. Se 
            observarmos a terceira quadrícula, encontraremos uma técnica gráfica 
            utilizada na banda desenhada mais moderna, em que certas figuras 
            ultrapassam os limites da cercadura, parecendo sair do espaço que 
            lhes está destinado. Nesta terceira imagem, a figura de um 
            passarinho, figura importante para o desenrolar da acção, encontra-se 
            no ponto mais alto da imagem, na extremidade da árvore, saindo dos 
            limites da quadrícula e ocupando a linha forte da imagem, formada 
            pela diagonal que une o canto inferior esquerdo ao canto superior 
            direito, permitindo estabelecer espacialmente a relação directa 
            entre o monge, que olha e escuta embevecido, e a avezita. Os 
            elementos envolventes, além de situarem a acção no espaço, permitem 
            uma leitura do tempo. Prestando-se atenção aos pormenores 
            arquitectónicos, especialmente aos relativos ao portal de entrada, 
            veremos que estes se vão alterando, que vão mudando de estilo e 
            enriquecendo-se, assinalando a passagem do tempo e marcando três 
            épocas diferentes.  Igualmente o interior da capela onde o monge 
            reza à Virgem sofre alterações. Atentando-se na janela e na candeia 
            que ilumina o altar, verificaremos que a janela era inicialmente 
            simples, sem elementos decorativos, e que a candeia estava suspensa 
            por uma corda presa na coluna central; na imagem final, a janela 
            passa a apresentar elementos decorativos à volta e a corda que 
            sustém a candeia passa a estar fixa na coluna junto ao portal de 
            entrada. 
            
            
                        
            Uma observação cuidada da reprodução do original permitirá uma 
            melhor apreciação e confirmação de tudo quanto dissemos. Convirá 
            também frisar que esta estampa não é o único exemplar precursor da 
            moderna banda desenhada. Nos códices medievais encontramos mais dois 
            exemplares de igual jaez, além de iluminuras «panorâmicas» ocupando 
            toda a largura da página, riquíssimas não só pela beleza da imagem e 
            da cor, mas sobretudo pelo seu conteúdo, que nos dá a conhecer pela 
            imagem aspectos da vida na Idade Média, mostrando-nos os tipos 
            sociais – 
            clérigos, cavaleiros, jograis e grandes senhores –, 
            as actividades da época, os instrumentos musicais utilizados, etc. 
            
            
                        O texto transcrito é constituído por estrofes regulares, formadas 
            por três versos agudos bastante longos, de catorze sílabas, e um 
            refrão com dois versos de oito e sete sílabas métricas, segundo o 
            esquema a  a  b  B  B. Trata-se 
            de uma cantiga de carácter narrativo na qual se apresenta um milagre 
            que a Virgem fez a um monge, permitindo-lhe que estivesse em êxtase 
            durante trezentos anos ou mais, porque sempre lhe pedia nas suas 
            orações que lhe mostrasse em vida qual o bem do paraíso. 
            
            
                        
            Apresenta como local de acção o convento e o horto; e como 
            personagens, o monge, a cujo pedido a Virgem acede, uma avezita e os 
            monges do convento. Entre o começo e o fim da narrativa medeia um 
            espaço de tempo equivalente a trezentos anos. Além das personagens, 
            encontramos presentes, logo no começo da narrativa, elementos 
            referentes ao narrador e ao narratário. 
            
            
                        
            Num primeiro momento, constituído pelas quatro primeiras estrofes, o 
            narrador introduz-nos no assunto, começando por nos dizer do que vai 
            falar e por nos apresentar a personagem que, tendo entrado no jardim 
            onde habitualmente ia, faz a sua oração à Virgem, apresentada em 
            discurso directo. O fim da oração e do discurso directo marca o 
            começo do momento seguinte, constituído pelas estrofes 5, 6 e 7, que 
            correspondem ao milagre e à passagem de trezentos anos. As estrofes 
            8 a 13 mostram-nos o momento final, em que o monge regressa ao 
            convento e onde encontra tudo mudado. O mosteiro já não é o mesmo 
            que deixara. Apresenta novas características de que o próprio monge 
            se dá imediatamente conta, ao verificar que o portal de entrada não 
            é o mesmo. Em vez do portal simples por onde saíra, encontra agora 
            um grande portal, que nunca vira e por onde entra.  Uma vez lá 
            dentro, nova surpresa o espera. Os monges, que ele assusta com a sua 
            presença, são desconhecidos. Gera-se uma certa confusão. Os actuais 
            ocupantes tomam-no por louco.  No entanto, passado o primeiro 
            impacto da surpresa e averiguados calmamente os factos pelo actual 
            abade, compreendem que se trata de um grande milagre da Virgem,  
            a quem dão graças pelo dom concedido. E a narrativa acaba com a 
            lição de moral: «tudo quanto Lhe pedirmos com fé nos concede seu 
            Filho por intercessão Dela». 
            
            
                        
            Poderemos, pois, para concluir estas breves linhas de análise, 
            considerar o texto estruturado em três partes distintas, 
            equivalentes a três períodos de tempo distintos:  antes, 
            durante e depois do milagre, obtendo-se a seguinte divisão: 
            
            
               1ª parte – estrofes 1 a 4: Introdução e apresentação do monge; 
            
            
               2ª parte – estrofes 5 a 7: Concretização do milagre; 
            
            
               3ª parte – estrofes 8 a 13: Regresso ao convento trezentos anos 
            depois e agradecimento à Virgem. |