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Origens da língua portuguesa: antecedentes históricos; povos da
Península Ibérica anteriores à romanização; noção de substrato;
a romanização; a noção de România e as línguas românicas; os
Bárbaros; a invasão árabe e a reconquista cristã; os
superstratos; os conceitos de latim erudito, latim vulgar e
latim cristão; do latim ao português.
Do século XII à actualidade: as diferentes periodizações na
evolução do português; a via erudita e a via popular; o período
galaico-português; Lisboa, centro difusor da língua padrão; os
cancioneiros; os primeiros textos em português: um testamento;
Cantiga da Garvaia; Cantiga de D. Sancho I; duas cantigas de D.
Dinis; uma cantiga de Afonso X; o período pré-clássico:
principais datas referentes à expansão portuguesa; alguns textos
desta fase; o período clássico: enriquecimento lexical do
português; alguns textos e nomes; os gramáticos; o período
moderno: breve panorama. |
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Neste
capítulo iremos ver a formação e desenvolvimento da língua portuguesa,
efectuando um percurso desde as suas origens mais remotas até à época
moderna. No entanto, numa primeira parte, tal como se indica no sumário
acima transcrito, veremos as origens da língua; numa segunda parte,
ocupar-nos-emos do português desde o século XII até aos nossos dias.
Para o conhecimento da formação e origem de uma língua,
seja ela o português ou outra, é importante procurarmos obter respostas
para questões tais como: ─ Onde nasceu? ─ Quais os seus antecedentes
históricos? ─ Como evoluiu? ─ Onde é falada? ─ Circunscreve-se a uma
área restrita ou, pelo contrário, terá ocupado outras regiões? ─ Será
homogénea em todo o território ou territórios onde é falada? Caso
contrário, que variações apresenta?
Claro está que a resposta para estas questões não a
poderemos dar apenas neste capítulo. Da área actualmente abrangida pela
língua portuguesa e variantes dialectais ocupar-nos-emos no capítulo
seguinte. Agora, começaremos por falar das suas origens e evolução.
DAS ORIGENS AO SÉCULO XII
O
português teve as suas origens na Península Ibérica. E, embora tendo
como principal base o estrato romano, a língua do Império ─ o Latim
─, entrou na sua formação toda uma série de factores de natureza
sociológica, tais como o ambiente social, o contacto com outras
comunidades linguísticas, a existência de línguas anteriores à dominação
romana, etc. Tal como nos diz Serafim da Silva Neto[1],
a «história de uma língua não é um esquema rigorosamente
preestabelecido (...), não se pode partir do latim e chegar directamente
aos dias de hoje». Daqui se compreende que, para conhecermos as
origens do português, teremos de conhecer um pouco da história da
Península Ibérica, antes e depois do domínio romano. Evidente se torna
também que nestas páginas não poderemos estudar de modo exaustivo a sua
história. Quem o desejar fazer, tem à sua disposição não apenas a obra
já indicada, mas sobretudo diversos trabalhos históricos.
Para nós, basta-nos ter uma ideia, de modo mais acessível,
da história da nossa língua. E uma vez que esta anda associada à
história de um povo, iremos ver um pouco o que se passou na Península
Ibérica, tomando como base a História de Portugal de Fortunato de
Almeida[2].
Os historiadores dividem a história em três tempos:
tempos pré-históricos, tempos proto-históricos e tempos
históricos. Os primeiros só são conhecidos através dos monumentos
arqueológicos, entre os quais temos os túmulos, os concheiros ou
retalhos de cozinha, também conhecidos pelo nome dinamarquês de
kokenmødinger. Os tempos proto-históricos são já conhecidos
através de alguns documentos que, no entanto, e como bem nos lembra
Alexandre Herculano, não são de absoluta confiança[3].
Segundo Fortunato de Almeida, por tempos proto-históricos entende-se
o período de tempo compreendido entre as idades pré-histórica e
histórica, sendo difícil delimitar cronologicamente estes períodos. No
entanto, costumam os historiadores fixar os começos da época histórica e
consequente termo da época anterior nos fins do século III a. C., com a
vinda dos romanos para a península.
Antes da vinda dos romanos, passaram pela Península
Ibérica diversos povos, que deixaram alguns vestígios na língua
dominadora. É precisamente todo o conjunto de povos anteriores ao romano
que hoje englobamos na designação de substrato. E de entre todos
esses povos, aponta-se como o mais antigo os IBEROS, cuja
proveniência se desconhece. O termo ibero, derivado do nome do rio hoje
chamado Ebro, aplicou-se inicialmente apenas à região banhada por esse
rio, passando depois a designar um conjunto de povos ocidentais cuja
língua se estendia ao longo do Mediterrâneo até ao sul da França.
Além dos Iberos, passaram também pela península os
Fenícios, os Lígures, os Gregos, os Celtas e os
Cartagineses[4].
Estes últimos vieram para a península após a primeira guerra púnica.
Antes já cá existiam estabelecimentos cartagineses. No entanto, é agora
que os cartagineses, para compensarem a perda da Sicília, resolvem
começar a subjugar os povos da península. Esse objectivo foi em breve
alcançado por Amílcar Barca e consolidado por seus descendentes Asdrúbal
e, por morte deste, Aníbal, filho de Amílcar.
Quando Roma, em 218 a. C., decide empreender a conquista
da Península Ibérica, dominavam os cartagineses não só toda a Lusitânia,
mas todo o litoral do Mediterrâneo e a Bética. Antes da chegada dos
romanos a faixa ocidental da Península Ibérica estava dividida, de Sul
para Norte, em três zonas, compreendendo, respectivamente, a região do
Algarve, designada pelos autores gregos de Cyneticum, a região
entre Tejo e Guadiana (Tagus e Anas), e a região entre Tejo e Douro,
subdividida ainda numa zona a partir do Douro até ao extremo norte[5].
A conquista romana da Península Ibérica tem para nós
grande importância, pois foram os romanos que maior influência
exerceram entre nós. Iniciada no ano de 218 a. C., a luta pela conquista
prolongou-se por cerca de duzentos anos, o que mostra bem a resistência
dos povos da península aos invasores.
Como afirma Giuseppe CARDINALI[6],
«vinte anos haviam sido suficientes para a conquista romana da
Sicília Cartaginesa; menos disso fora preciso para apagar
definitivamente Cartago do número das grandes potências; poucos anos
bastaram para a destruição da Macedónia (...) para conseguir a conquista
pacífica da grande península mediterrânica ocidental, Roma gastou cerca
de dois séculos: desde 218 a 19 a. C.».
A conquista foi prejudicada por causas múltiplas, de
entre as quais poderemos destacar:
1 - as características geográficas peninsulares;
2 - a fragmentação em inúmeros clãs;
3 - a insuficiência de grande número de capitães
enviados por Roma;
4 - sobretudo, as virtudes da raça lusitana e
ibérica tão citadas pelos autores clássicos, tais como ambição de
independência, espírito guerreiro, coragem, lealdade, fidelidade,
indiferença pela morte, etc.
Ao lado das condições de natureza geográfica, encontramos
as características psicológicas do povo a submeter, que vêm aumentar as
dificuldades da conquista pelo invasor. Apesar dos sucessivos reveses
infligidos de maneira traiçoeira pelos romanos, estes vêem-se
sucessivamente em lutas difíceis com os lusitanos. Nem a morte à traição
do seu chefe Viriato faz com que os lusitanos se deixem abater pelo
temor e pelo desânimo.
Cerca de 86 a. C., Sertório, antigo tribuno militar
romano, que andava fugido em África para escapar à morte, é convidado
por uma embaixada dos lusitanos a comandá-los na luta contra Roma. Acede
e passa à península, onde reorganiza e educa os lusitanos nas artes da
guerra, levando-os a diversas vitórias contra os romanos, que só
cessaram com a morte à traição de Sertório.
A pacificação da península só vai ocorrer após a morte de
César (15 de Março de 44 a. C.) e com a subida ao poder de Augusto, que
se empenha em estabelecer a paz em todo o império. Em 26 a. C., inicia
uma campanha para concluir a conquista, vindo ele próprio à península. A
doença fá-lo entregar o comando dos exércitos a Agripa e outros generais.
E, em breve, toda a península estava conquistada. Para cimentar a paz,
Augusto procurou interessar os povos na civilização romana,
concedendo-lhes benefícios e títulos honoríficos.
A romanização da península, do ponto de vista sócio-cultural,
não ocorre a partir de Augusto. Este processo de assimilação, que é
bastante lento, começara muito antes. Quando Sertório, antigo chefe
romano, é convidado pelos Lusitanos a chefiá-los e vem para a península,
traz consigo usos e costumes dos romanos, transmitindo-lhes a sua
cultura. Quando a pacificação é alcançada, no reinado de Augusto, já os
povos peninsulares tinham tomado contacto com uma civilização superior,
o que facilitou a assimilação dos novos costumes.
Segundo Estrabão, os vencidos adaptaram-se tão bem aos
vencedores que, em pouco tempo, esqueciam a própria língua, passando a
usar o Latim. Esta aceitação do Latim foi devida não à força das armas,
mas a outras circunstâncias. Quando um povo subjuga outro, pode impor a
sua língua, usos e costumes. Mas a aceitação por parte do vencido
depende de vários factores: semelhanças entre a língua do vencedor e do
vencido; tempo de permanência dos vencedores no território ocupado;
condições psicológicas criadas.
De todos os factores, as condições de ordem psicológica
são as mais importantes. O grau de adesão ou de recusa do vencido
depende da simpatia ou antipatia geradas e do grau de deslumbramento ou
desencanto sentidos face ao vencedor, entre outros factores. Vejamos
alguns casos concretos e actuais, que nos ajudam a compreender esta
situação.
Quando os portugueses, por exemplo, emigram para um país
estrangeiro, cujo grau de civilização é maior que o nosso, como acontece
com o caso dos Estados Unidos, facilmente se deixam deslumbrar com o
esplendor e grau de civilização aí encontrados, a ponto de, ao fim de
algum tempo, assimilarem não só a língua mas procurarem adquirir a
nacionalidade do país de acolhimento. Situação contrária ocorre quando
os portugueses emigram para o Brasil. Aqui, as civilizações e a língua
são idênticas, fazendo com que o português não sinta a menor necessidade
de adquirir a nova nacionalidade.
Os romanos, apesar de todos os seus excessos, traziam
consigo um grande prestígio e uma elevada cultura, que ainda hoje
podemos apreciar através dos monumentos que chegaram até nós e,
sobretudo, através das numerosas obras literárias, que bem nos mostram o
que era Roma. Ainda hoje as leis são baseadas no chamado Direito Romano.
Mas a romanização não se processou a partir do momento em
que a península foi subjugada. Muito antes disso já os romanos aqui
tinham estabelecido colónias, tendo em vista a latinização por via
pacífica, como foi o caso de Itálica (fundada por Cipião, o
Africano, em 207 a. C., na margem esquerda do Guadalquivir), de
Valentia e de Metellinum, na Lusitânia (em 71 a. C., depois
chamada Corduba).
Figura 27: Principais
áreas da epigrafia indígena pré-romana da Península Ibérica, segundo
J. Caro Baroja. |
No tempo de César e de Octaviano, foram também criadas
diversas colónias, com colonos com direito latino e direito romano, com
veteranos e civis, para se sobreporem às antigas comunas indígenas[7].
A pouco e pouco, os povos iam tomando contacto com uma civilização
superior e criando uma apetência psicológica para formas de vida
mais evoluídas. |
É bastante elucidativo o excerto que passamos a
transcrever, extraído da História de Portugal, de Alexandre
Herculano[8]:
«Ajudada pela superioridade da ciência militar, a
superioridade da civilização romana devia ter acção imensa nessas
sociedades imperfeitíssimas dos indígenas, aos quais faltava o vínculo
da unidade nacional e que, misturados com as raças fenícia, grega e
cartaginesa, tinham tomado costumes, vocábulos e ideias de cada um
destes povos, sem que esses elementos adventícios tivessem tempo
suficiente para se incorporarem perfeitamente no elemento céltico e
formarem com ele um todo compacto e homogéneo capaz de resistir à
influência civilizadora de Roma. Esta não empregava só as armas para
assegurar a sujeição dos países que subjugava; introduzia neles as suas
colónias, as suas leis, os seus costumes: trocava com eles até os deuses,
recebendo os estranhos nos próprios, mas exigindo reciprocidade
religiosa; dava a provar a esses homens rudes o luxo e os prazeres de
que era mestra; recebia-lhes os produtos da sua agricultura e indústria,
e interessava-os assim por muitos modos na existência e prosperidade da
grande república. As consequências deste sistema em países de raças mais
antigas e simples, como nas Gálias, foram uma assimilação quase completa:
o que seria, pois, na Península, onde ele devia actuar com tanto mais
força, quanto é certo que a mescla das gentes, a variedade de origens
nos usos, o encontrado e confuso das leis e tradições religiosas
tornavam mais fáceis as consequências naturais daquele sistema?»
Antes dos romanos, o espírito de unidade era praticamente
impossível. Além de usos, costumes e religiões diferentes, cada povo
tinha a sua própria língua, factor que muito contribuiria para a
dificuldade de relação entre os povos e, sobretudo, para a ausência de
um espírito de unidade. Desde a fala à escrita, havia divergências
bastante acentuadas (veja-se, por exemplo, o mapa das principais áreas
da epigrafia indígena pré-romana da Península Ibérica, da autoria de J.
Caro Baroja ─ figura 27). Seria necessária a existência de uma língua
comum e, sobretudo, a língua de uma cultura e civilização com elevado
prestígio, para permitir a comunicação entre os diferentes povos e o
nascimento de um espírito de unidade linguística. Esse papel viria a
caber ao Latim, a língua dos romanos, em breve tornada a língua oficial
de todo o Império.:
No tempo de Augusto, a península, que anteriormente
estava dividida em apenas duas zonas ─ a Hispânia Citerior, de
aquém do Ebro, e Hispânia Ulterior, para além do Ebro ─, é
dividida em três províncias: a Tarraconense, a Bética e a
Lusitânia. A Tarraconense era a mais vasta, ocupando mais de
metade da península e estendendo-se desde o Mar Cantábrico, ao
norte, até ao Mar Mediterrâneo. |
Figura 28 Divisão da
Península Ibérica efectuada por Augusto, em 27 a. C.. No reinado de Vespasiano, as províncias foram divididas em conventos. |
A Bética situava-se a sul, estando separada da
Lusitânia pelo Guadiana; era banhada pelo Atlântico e pelo Mediterrâneo.
A Lusitânia ocupava quase todo o litoral do Atlântico. Era separada da
Tarraconense, a norte, pelo rio Douro, e da Bética, a sul, pelo Guadiana
(Veja-se o mapa da figura 28, que representa as três divisões da
península, bem como algumas cidades no tempo do Império Romano). No
tempo de Augusto contava já com cerca de 50 cidades, entre municípios e
colónias com direito romano, constituindo um poderoso instrumento de
romanização.
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A divisão provincial realizada por Augusto, em 27 a. C.,
manteve-se praticamente inalterada durante o período alto-imperial. No
entanto, entre 16 e 13 a. C., algumas zonas da Bética foram integradas
na Tarraconense, aumentando a área desta última. No reinado de
Vespasiano as províncias hispânicas foram divididas em conventus,
circunscrições com carácter (fig. 28) judicial e administrativo. |
Figura 29: A divisão
da Península Ibérica, no reinado de Diocleciano, em 6 províncias. A
sexta era a Mauritânia Tingitana, no norte de África, não
representada neste mapa. |
No tempo do imperador Caracala, talvez em 224, é criada
uma nova província: a Hispânia Nova Citerior Antoniana.
Posteriormente, no reinado de Diocleciano, a Hispânia sofre nova
divisão administrativa em seis províncias: a Tarraconensis, a
Carthaginensis, a Baetica, a Lusitania, a Callaecia
e a Mauritânia Tingitana, situada no norte de África e assim
chamada devido ao nome da cidade de Tingis, actualmente Tânger. No final
do século IV foram acrescentadas as Ilhas Baleares (Veja-se o
mapa da figura 29)[9].
A rede viária criada pelos romanos vai cobrindo toda a
península, facilitando as comunicações, permitindo não só a deslocação
interna, mas sobretudo a ligação com as restantes regiões do império.
Praticamente todas as grandes cidades estão ligadas por umas vasta rede
de estradas, cujo traçado encontramos referido no Itinerarium
Antonini Augusti, redigido nos inícios do século III e que é hoje a
fonte clássica mais importante para o estudo das vias do Portugal romano.
Além de atender a imperativos políticos e militares, favoreceu o
desenvolvimento económico de todo o território.
No princípio do século I começa a verificar-se uma grande
corrente emigratória do oriente para o ocidente. A Península Hispânica
torna-se, durante o Império, por muitos anos, a terra prometida da
colonização itálica. E no final da era pagã, a Bética, a costa da
Tarraconense e as planícies da Lusitânia tinham o aspecto de uma região
italiana.
Os recursos da península são explorados, tais como o
minério, a oliveira e a vinha, e o comércio. Dos minerais, os mais
importantes eram o ouro e a prata, além do ferro, cobre, chumbo e
estanho. São também explorados os recursos hídricos, com a criação de
estações termais na região das fontes minerais. Lembremos, a título de
exemplo, o caso de Chaves (AQUAE FLAVIAE).
O Latim torna-se a língua oficial não só da
Península Hispânica, mas de toda a România.
Esta aceitação da nova língua, que se vai sobrepor às anteriormente
existentes, deve-se não apenas à acção colonizadora dos soldados,
comerciantes e funcionários administrativos, mas sobretudo ao
aparecimento de uma nova religião ─ Cristianismo. Vão ser os apóstolos
da fé, os pregadores, que vão penetrar até às mais remotas regiões,
levando com eles a língua latina, que era a língua do Cristianismo.
Convirá referir, a propósito do vocábulo România,
que este se emprega para designar, no tempo de Constantino, todas as
regiões pertencentes ao Imperium Romanum ou Orbis Romanus,
por oposição a Barbaries. Será também conveniente lembrar que,
com o édito de Caracala, em 212, é concedido o direito de cidadania a
todos os habitantes do Império, pelo que todos podem ser considerados
romani. No início, romani eram apenas os habitantes da cidade
de Roma. Depois, com a expansão do império romano, romani eram os
indivíduos apenas da classe dominante, já que os povos submetidos a Roma
conservavam os seus nomes. Com as invasões bárbaras e consequente
declínio do império romano, já que, após o édito de Caracala, eram
romani todos os habitantes do império, surge o termo România
para designar a parte não ocupada pelos bárbaros. Embora o vocábulo
România se tenha perdido posteriormente com o sentido primitivo, hoje
utilizamo-lo para designar o conjunto de países em que são faladas
línguas românicas. Essas línguas, num total de nove, são o
português, o espanhol, o catalão, o francês, o
provençal, o italiano, o romeno, o sardo e o
reto-romano.
A partir do século IV, o quotidiano dos cidadãos romanos
é abalado pelas invasões bárbaras. Os Bárbaros entram
definitivamente em território romano, levando-o ao aniquilamento e
ao nascimento de uma nova sociedade. |
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Figura 30: Percursos
seguidos por Alanos, Vândalos e Suevos e por Visigodos. (Ver
Nota
10) |
No Outono de 409, a Península Ibérica é invadida por
povos oriundos do interior da Europa: Suevos, Alanos e
Vândalos (Vide figura 30)[10].
Durante dois anos, o território peninsular é vítima de matança, de
saques e de destruições.
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Em 411, os invasores concordam em repartir-se pelo
território da península, ocupando os Vândalos Asdingos e os Suevos a
Galécia, os Alanos a Cartaginense e a Lusitânia e os Vândalos Silingos a
Bética. A paz dura pouco tempo, sendo em breve abalada com a guerra
entre os Alanos, de um lado, e os Suevos e Vândalos Asdingos, do outro. |
Figura 31: A Península
Ibérica, após a chegada dos povos bárbaros, no ano de 476, ao ser
deposto Rómulo Augusto, último imperador romano do Ocidente. |
Em 416, entram na península os Visigodos,
comandados por Vália, que esmagam os povos beligerantes. Apesar da
entrada dos visigodos, a península continua a ser palco de lutas entre
os diferentes povos que a habitam. Quando, em 476, é deposto Rómulo
Augusto, o último imperador romano do Ocidente, a península está ocupada
essencialmente pelos Suevos, que ocupam a Galécia e uma parte norte da
Lusitânia, pelo que restou dos Alanos e dos Vândalos, que ocupam a parte
restante da Lusitânia e a Bética, e sobretudo, pelos Visigodos, que
ocupam todo o resto do território, tal como nos mostra o mapa da figura
31.
Pouco mais de um século depois, Leovigildo (568?-586)
unifica a Hispânia Visigoda, ocupando progressivamente quase toda a
península. Quando morre, seu filho, Recaredo, herda um reino vasto e
unificado e, sobretudo, bastante romanizado e convertido ao catolicismo.
Recaredo converte-se em 587 ao catolicismo e efectua a sua proclamação
pública em 8 de Maio de 589, durante a realização do III Concílio de
Toledo. Esta conversão proclamada publicamente foi seguida pela maioria
dos notáveis godos e por muitos prelados arianos, facilitando o processo
de fusão entre Visigodos e Hispano-Romanos. E, durante quase dois
séculos, o domínio godo da península manteve-se mais ou menos estável,
até 711, ano da chamada invasão árabe.
A acção da obra de Alexandre Herculano, Eurico, o
Presbítero, situa-se no final do período godo e começo da ocupação
árabe da península. Eurico é o jovem presbítero de Carteia que procura
no sacerdócio o esquecimento do seu amor por Hermengarda. É Eurico o
célebre cavaleiro negro que vai surgir no meio dos exércitos que se
degladiam ─ cristãos e árabes ─, na parte mais acesa da batalha, para
combater a invasão infiel e impedir o fim do império godo.
Corria o ano de 711. Sob a chefia de Tárik, milhares de
berberes atravessam o estreito de Gibraltar e iniciam a invasão da
península. Este vasto exército é composto pelos mais variados povos do
mundo árabe: sírios, iemenitas, egípcios e berberes.
«Era já tempo. A torrente dos inimigos descera, enfim, do
Calpe ou Jábal Tárik, cujo nome de muitos séculos o capitão árabe tinha
apagado, para escrever o próprio nome no colar servil das muralhas que
lhe lançara. O estandarte do profeta de Meca já flutuava nos campos da
Bética, e a sua passagem era assinalada com ruínas, sangue e incêndios.
Por onde quer que os muçulmanos tinham atravessado ficavam assentados o
silêncio do sepulcro e a assolação do aniquilamento. Tárik era o anjo
exterminador mandado por Deus às Espanhas, e a sua espada o raio
despedido do céu para fulminar o Império dos Godos.
Saindo do seu ninho de águia, construído no promontório
do Estreito, os invasores internavam-se no coração da província. Depois
de haverem transposto as montanhas que se alteiam desde as ribas
setentrionais do Bélon até Lastigi, onde as serranias se enlaçam com as
alturas de Nescânia, tinham-se assenhoreado sem resistência da cidade
episcopal de Asido e, descendo dali até Lastigi, onde as serranias se
enlaçam com as alturas de Nescânia, tinham-se assenhoreado sem
resistência da cidade episcopal de Asido e, descendo dali para os vales
que serpeiam de Gades a Segôncia, haviam assentado campo nas margens do
Chrysus. Tárik esperava lá o recontro dos godos. Desde que partira do
Calpe, todos os dias, quase todas as horas, se viam chegar à hoste do
Islame cristãos vindos do lado de Híspalis, conduzidos pelo caudilhos
dos almogaures ou corredores africanos. Apenas estes homens
desconhecidos eram levados ante o capitão árabe, ele enviava um dos seus
cavaleiros ao lugar onde tremulava o pendão de Juliano, e o conde de
Septum não tardava a vir ajuntar-se com Tárik. (...) [capº. IX]
O Sol ia já alto quando o grito de "Allah hu Acbar!" soou
no centro dos esquadrões do Islame. Era a voz sonora e retumbante de
Tárik...
─ Cristo e avante! ─ bradaram os godos: e os esquadrões
de Roderico precipitaram-se ao encontro dos muçulmanos...[11].
Os exércitos cristãos, chefiados por Rodrigo, eleito em
710, tentaram opor-se ao invasor. Mas a traição de chefes cristãos, que
se colocaram ao lado dos invasores, fez com que a batalha de Guadalete
fosse o fim da Hispânia Visigoda. Segundo as crónicas árabes, o rei
cristão, Rodrigo, terá morrido em combate. A tradição cristã apresenta-o
como tendo sobrevivido e conseguido refugiar-se nas serranias da
Lusitânia. Seja como for, a verdade é que os exércitos de Tárik foram
avançando para Norte, tomando, uma após outra, todas as cidades cristãs.
Ao fim de pouco tempo, toda a península estava ocupada pelos infieis, à
excepção de alguns redutos cristãos no norte.
A ocupação da península foi bastante rápida, devido não
só à força invasora, mas também, possivelmente, ao apoio de hispânicos e
judeus, elementos do povo que se opunham à nobreza goda e à Igreja,
senhores da terra e da população rural.
A todo o território peninsular ocupado pelos árabes foi
por estes dado o nome de Al-Andalus (Veja-se o mapa da figura
32).
Durante o período da ocupação árabe, os cristãos que
permaneceram no território de Al-Andalus podiam manter os seus usos e
costumes, bem como praticar o culto e conservar os seus templos. A estes
cristãos "arabizados" dá-se o nome de moçárabes. Viviam em
comunidades separadas e conservavam a sua língua, um dialecto românico,
designado por Oliveira Marques de «lusitano-moçárabe». |
Figura 32: Aspecto da
Península Ibérica por volta do século X. |
Os moçárabes eram obrigados ao pagamento de tributos, não
podiam exercer cargos públicos, casar com mulheres árabes e nem sepultar
os seus mortos com ostentação. Viviam em bairros separados, fora das
muralhas das cidades. Ao contrário do que tem sido afirmado, o Islão não
destruiu as bases do cristianismo da península, coexistindo as
diferentes religiões.
As grandes cidades do mundo árabe peninsular foram
aquelas que, em épocas anteriores, já se distinguiam pela sua grandeza e
importância, destacando-se entre outras Córdova, Sevilha, Málaga,
Mértola, Beja, Setúbal, Alcácer do Sal, Évora e Elvas.
Após a fase da conquista, o mundo árabe peninsular
conheceu um período de turbulência, a partir dos meados do século VIII,
devido essencialmente à grande diversidade de povos que compunham as
hordas muçulmanas. Deste facto resultaram consequências diversas, tais
como períodos de fome devido ao abandono dos campos de trabalho, retorno
de grande número de berberes ao norte de África, enfraquecimento do
poder muçulmano nas regiões do norte, com consequentes acções de
reconquista cristã, sobretudo no noroeste, onde ocorreram incursões até
ao rio Douro.
O mundo árabe peninsular caracteriza-se, portanto, pela
sua grande falta de unidade, por toda uma série de lutas internas que o
levam ao fraccionamento e consequente desmembramento, permitindo que os
povos cristãos, refugiados no norte, possam iniciar progressiva e
lentamente a reconquista em direcção ao sul.
A reconquista cristã da Península Ibérica demorou vários
séculos. Após a derrota dos exércitos de Rodrigo, em 711, na batalha de
Crisus ou Guadalete, que marca o fim do período godo e o domínio árabe
da península durante oito séculos, os cristãos, sob o comando de Pelágio,
fixam-se em Cangas de Onis e fundam um pequeno estado, entre 718 e 737.
Com a invasão da região da Galiza pelos árabes, Pelágio refugia-se nas
montanhas, onde também se encontrava Fávila, que alguns autores dizem
ser seu filho. Fávila reinou de 737 a 739. Quando Afonso I (739-757), o
Católico, genro de Pelágio (ou Pelaio), sobe ao poder, em 739, inicia
uma série de acções guerreiras, alargando as fronteiras da reconquista
até ao rio Douro. As terras da Galiza e do futuro Condado Portucalense
ficam-lhe sujeitas. Entretanto, são também resgatadas Astorga e Leão.
No reinado de Afonso III (866-909), este é obrigado a
abdicar devido à revolta de seus filhos, Garcia, Ordonho e Fruela, que
partilham entre si o reino. Garcia fica com Leão, Ordonho com a Galiza e
a Terra Portucalense, e Fruela com as Astúrias. Entretanto, com o volver
dos tempos, surgem outros estados cristãos: Navarra (905?), Castela
(1033) e Aragão (1035). Estão formados os principais estados cristãos
que irão permitir a reconquista da península.
A região correspondente a Portugal começou a sua expansão
com D. Afonso Henriques e só no reinado de D. Afonso III alcançou a área
actual, com a conquista do Algarve, em 1249, e expulsão definitiva dos
árabes dessa região. No entanto, os árabes continuaram ainda no extremo
sul da península por muitos mais anos, criando problemas ao reino de
Castela. Recordemos, por exemplo, a Batalha do Salado, em que o
exército de Castela só conseguiu suster o avanço para norte dos
exércitos árabes graças à intervenção do exército português, comandado
por D. Afonso IV. Recorde-se, se não quisermos recorrer a uma obra de
carácter histórico, o célebre episódio da Formosíssima Maria, no canto
III de Os Lusíadas. Esta, casada com Afonso XI de Castela, entra
«polos paternais paços sublimados, / lindo o gesto, mas fora de
alegria», para pedir ajuda a D. Afonso IV, seu pai, pois que «quantos
povos a terra produziu / de África toda, gente fera e estranha, / o grão
rei de Marrocos conduziu / pera vir possuir a nobre Espanha.» E se
seu pai não der a solicitada ajuda àquele que lhe deu por marido,
vê-la-á «dele e do Reino ser privada; / viúva e triste e posta em
vida escura, / sem marido, sem reino e sem ventura».
Só em 1492 os árabes são definitivamente expulsos da
península, com a conquista de Granada pelos Reis Católicos.
Da permanência árabe na península os vestígios
são menores do que seria de esperar, após uma permanência de cerca de
oito séculos. A influência árabe foi sobretudo importante na agricultura
(com a introdução de novos produtos agrícolas e técnicas de rega), nas
artes decorativas (azulejo e ferro forjado), nas ciências (Matemática e
Medicina) e, sobretudo, no domínio linguístico. Calcula-se entre cerca
de 400 a 1000 as palavras portuguesas de origem árabe, não tomando em
conta a elevada quantidade de topónimos. São exemplos de vocábulos de
origem árabe em português palavras tais como arroz, azeite, azeitona,
algodão, alfinete, alcaide, alfândega, alfaiate, açúcar, arrabalde,
aldeia, etc.
Temos neste momento uma panorâmica rápida de todos os
povos que passaram pela península, desde os mais antigos até às invasões
árabes e reconquista cristã, tendo como ponto intermédio e o mais
influente o período da ocupação romana.
A língua portuguesa formou-se tendo como raiz principal a
língua latina e toda uma série de outras influências secundárias,
constituídas por vestígios das línguas, quer dos povos anteriores aos
romanos, quer daqueles que vieram depois, entre os quais os bárbaros e
os árabes, englobando na designação bárbaros todos aqueles que não
pertenciam ao Império Romano e que contribuíram para a sua extinção.
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Figura 33: Povos que
ocuparam a Península Ibérica cujas línguas contribuíram em maior ou
menor grau, para a formação da língua portuguesa: os substratos e os
superstratos. |
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Tomando como estrato principal a língua latina,
englobamos nos substratos todo o conjunto de povos anteriores aos
romanos, que deixaram alguns vestígios na língua dominadora ─ o LATIM.
Todos aqueles povos que vieram após os romanos e cujas línguas, embora
não eliminando a dominadora, a vieram enriquecer, consideramo-las como
superstratos.
Portanto, os vocábulos substrato e superstrato,
à semelhança do que se passa no domínio da Geologia, designam as camadas,
os estratos linguísticos sub e suprajacentes ao estrato principal, que
foi a língua latina, língua dominadora por excelência, que se sobrepôs a
todas as demais, a nível de toda a România, dando origem a línguas
diferenciadas. A nível do português e reduzindo tudo quanto
anteriormente analisámos a um esquema de síntese, obteremos o quadro
apresentado na figura 33. Se lhe prestarmos a devida atenção,
verificaremos que, no estrato principal, se apresenta como origem do
português o LATIM nos seus diferentes níveis. Quer isto dizer que
o português, tal como as demais línguas românicas, não deriva do chamado
latim clássico, isto é, do latim literário utilizado pelos grandes
escritores clássicos, mas sim da língua quotidiana dos tempos imperiais,
do latim falado no dia-a-dia pelo povo e designado habitualmente, embora
de modo impreciso e impróprio, pela expressão latim vulgar.
Convirá, antes de falarmos nas etapas da evolução do
português, fazer uma breve referência ao conceito de latim vulgar.
Esta expressão não designa uma fase dialectal, mas sim a língua
normalmente falada no mundo latino, na România, pela maioria da classe
média nos dois últimos séculos da república e no império, com todos os
seus aspectos positivos e negativos.
O conceito de latim vulgar tem sido encarado através dos
tempos segundo diferentes perspectivas. Para o americano Grandgent ─
segundo nos informa Serafim da Silva Neto ─ o latim vulgar é o
latim falado pelas classes médias da população. Constitui o substrato
das línguas românicas. Difere do emprego conscientemente polido da
sociedade culta, do falar rural e da linguagem dos mais baixos
quarteirões da cidade, apesar de sofrer influências de todos os lados.
Segundo o mesmo autor, podemos encontrar diferentes registos de latim:
latim culto literário; latim dos bairros pobres e gírias; latim vulgar,
da classe média, substrato das actuais línguas românicas; latim dos
campos.
Einar Löfstedt define latim vulgar como «aquelas
espécies de estilo que estão mais próximas da linguagem do povo ou da
linguagem corrente do que do elevado modo de exprimir criado pela
tradição técnica literária».
Muitas outras definições poderíamos apresentar acerca do
latim vulgar, mostrando-nos quão difícil e discutível é dar uma
definição satisfatória deste conceito.
Serafim da Silva Neto, na obra
Fontes do latim vulgar (O Appendix Probi)[12],
relativamente à língua corrente, admite três matizes: latim familiar
(das classes médias); latim vulgar (das camadas mais baixas);
gírias (militar; dos gladiadores; dos marinheiros; etc.). E, mais
adiante, acrescenta que, hoje em dia, é quase impossível limitar
exactamente os diferentes matizes da língua. E, relativamente à
expressão latim vulgar, diz-nos tratar-se da linguagem das
camadas inferiores, acrescentando que deveremos evitar a designação
latim vulgar e substituí-la, de preferência, por latim corrente.
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Figura 34: Quadro com
os diferentes registos do Latim, tendo em conta os diferentes
conceitos (Ver nota 13) |
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Se consultarmos o artigo de Carlo Battisti,
Avviamento allo studio del latino volgare[13],
ficaremos a saber que, além do já referido latim erudito, que se
caracteriza pelo seu aspecto estático, pouco inovador, sujeito a regras,
e do latim vulgar, inovador, dinâmico, mas com os aspectos negativos
pelo facto de corromper as regras gramaticais, existem outras formas de
latim, como é o caso do chamado latim cristão.
No século III d. C., com o enfraquecimento do vínculo
cultural entre Roma e as províncias, cada uma destas começa a vergar
autonomamente o latim falado às próprias experiências expressivas, dando
origem a diferentes variedades regionais, que estarão na origem das
futuras línguas neolatinas, variedades que se vão acentuar a partir do
momento em que povos bárbaros do interior da Europa começam a invadir e
a desmembrar o Império. Além do latim erudito, utilizado pela
classe mais culta, e do latim coloquial (vulgar), surge toda uma
série de registos variáveis com as profissões e com as regiões da
România. E, ao lado destas diferentes formas, surge com a expansão do
cristianismo uma forma de latim que poderemos designar por latim cristão.
O latim cristão caracteriza-se por um emprego de
grecismos e semitismos e pela confluência de filões populares com
elementos derivados da tradição retórica. Além destes aspectos, o latim
cristão caracteriza-se ainda pela multiplicidade de elementos
linguísticos que nele se fundem, com arcaismos, neologismos, vulgarismos,
hebraísmos, estruturas sintácticas simplificadas, etc. O latim cristão
foi largamente enriquecido com palavras de origem grega, como
eucharistia, baptismus, diaconus, presbyter,
episcopus, neophytus, etc., com hebraísmos e neologismos,
chegando muitas vezes a ir repescar antigas palavras latinas caídas em
desuso e introduzindo-lhes novos sentidos.
Significa tudo quanto dissemos que o latim está longe de
ser uniforme, de ser homogéneo, variando facilmente de tom e de timbre
segundo o fim a que se destina, segundo a região onde é falado e segundo
as classes sociais que o utilizam. É por tudo isto que, embora
tradicionalmente se diga que as línguas neolatinas, as chamadas línguas
românicas, provêm do chamado latim vulgar, nós, no nosso esquema
relativo às origens do português (vide figura 33), preferimos dizer que
este provém do latim nos seus diferentes níveis, ao qual se vieram
juntar os contributos enriquecedores quer dos substratos, quer dos
superstratos, ou seja, de todas as línguas de todos os povos que
passaram pela Península Ibérica.
Relativamente aos diferentes registos do latim e tomando
em conta os diferentes conceitos apresentados, poderemos elaborar o
quadro presente na figura 34. Embora discutível e não resolvendo
definitivamente o problema, permite-nos uma melhor sistematização.
Perante a grande heterogeneidade do latim, com múltiplos
registos de acordo com as situações, as classes sociais dos falantes e
as regiões, fácil será concluir que, com o fluir do tempo, estas
diferenças mais se acentuaram de região para região, levando a línguas
que, embora tendo a mesma raiz, são completamente diferentes entre si.
Durante bastante tempo, antes do aparecimento do trabalho
de Ramón Menéndez Pidal, Orígenes del español[14],
considerava-se que a România se dividia em duas grandes metades: a
Oriental, formada pela Itália e as Balcãs, e a Ocidental, formada pela
Gália e a Ibéria. E considerava-se que, dentro da metade Ocidental, era
a Península Ibérica a região com características mais conservadoras,
distinguindo-se do resto da România. Menéndez Pidal constatou, no
entanto, que entre as penínsulas Itálica e Ibérica existe uma evolução
paralela e uma relação histórica, infirmando a teoria anterior, o que se
explica pelo facto da elevada corrente migratória de colonos itálicos
para a antiga província da Tarraconense.
No entanto, dentro da Península Ibérica, conforme nos dá
conta Harri Meier[15],
há duas grandes zonas de evolução, correspondentes à antiga divisão
administrativa da península durante o período da romanização. Quando
efectuámos a nossa breve digressão pela história da península, dissemos
que esta se dividia, inicialmente, em duas províncias, mais tarde
subdivididas no tempo de Augusto: a Hispânia Citerior, para aquém de
Gibraltar, correspondente à Tarraconense, e a Hispânia Ulterior, para
além do estreito, correspondente à Lusitânia e à Bética. Esta indicação
─ para aquém ou para além de Gibraltar ─ era feita pelos antigos,
tomando como ponto de referência a Península Itálica.
Entre a Hispânia Ulterior e a Citerior as diferenças não
eram apenas de cunho administrativo, mas também de carácter cultural.
Enquanto na Hispânia Ulterior, especialmente no sul, se encontrava uma
forte povoação citadina com elevado grau de civilização, a Hispânia
Citerior era essencialmente constituída por colónias agrícolas e cidades
que eram centros militares. À cultura mais desenvolvida e citadina da
Hispânia Ulterior corresponde linguisticamente uma forma mais
conservadora no vocabulário, na fonética e na sintaxe, ao passo que a
Hispânia Citerior e a região galo-românica apresentam uma maior
tendência para evoluírem. Acontece, no entanto, que as regiões do Norte
da península, embora administrativamente pertencentes à Hispânia
Citerior, participam da onda romanizante da Hispânia Ulterior.
O português actual vai surgir do latim da Hispânia
Ulterior, região mais evoluída culturalmente e, consequentemente, mais
conservadora, apresentando, segundo Harri Meier, três grandes fases
evolutivas, cujas características nos limitamos a apresentar muito
resumidamente. Para um conhecimento mais desenvolvido, aconselhamos a
leitura do artigo citado.
● Numa primeira fase, vão-se acentuar as diferenças
entre a Hispânia Ulterior e a Citerior, tais como: tendências
conservadoras da primeira em oposição às tendências inovadoras da
segunda; uso do pretérito perfeito simples, hoje predominante no
português, em vez do pretérito perfeito composto; conservação dos grupos
consonânticos latinos, como por exemplo MB, em vez da sua
simplificação em m (cfr. PLUMBUM > port. chumbo; PALUMBA(M) >
port. pomba; esp. paloma); conservação do U final latino, que
ainda hoje se conserva em português, ao contrário de outras línguas;
conservação dos ditongos do latim falado au, ai, ei,
que se mantêm ainda hoje, enquanto noutras línguas se reduzem a um
monotongo.
● Numa segunda fase, a Hispânia Ulterior e,
consequentemente, a língua que está na origem do português, vai sofrer a
influência da Galécia, província que abrange, além da actual Galiza,
Leão e Astúrias. Vai igualmente sofrer a influência das invasões
bárbaras, primeiro, e das invasões árabes, posteriormente. Com a invasão
árabe, os cristãos que permanecem no território ocupado ─ os
moçárabes ─, embora conservem a sua língua românica, vão-na
enriquecer com novos vocábulos de origem árabe. Nesta segunda fase, um
dos fenómenos fonéticos que se verifica na evolução da língua é a
passagem dos grupos consonânticos pl e cl a ch
(cfr. CLAVE(M) > chave; PLUMBU(M) > chumbo).
● A terceira fase da evolução do português ─ se é que já
assim se pode chamar à língua falada na faixa ocidental da península ─
corresponde ao período de mútua adaptação linguística após a reconquista
cristã do território, quando os dialectos galaico-portugueses dos reconquistadores do norte se sobrepõem aos dialectos locais ao sul do
Douro.
Temos, deste modo bastante simplificado, as diferentes
fases na evolução da língua falada na parte ocidental da península,
desde o período da romanização até à época da reconquista cristã da
parte norte. Entre o período da romanização e o da reconquista cristã
encontramos um factor histórico bastante importante, que foi o da
invasão árabe da península, em 711. Entre a fase da invasão
árabe e a reconquista, Serafim da Silva Neto, na obra citada,
considera que, relativamente à faixa ocidental da península, marcada
pelas lutas entre cristãos e árabes, existem essencialmente
três fases: na primeira, a defensiva, que ocupa três séculos,
entre 720 e 1002, a iniciativa pertence aos mouros; na segunda, a de
transição, entre 1002 e 1045, a balança começa a pender
favoravelmente aos cristãos; na terceira e última, a da reconquista,
entre 1045 e 1250, começa o recuo inexorável dos mouros, até à sua
definitiva expulsão três séculos mais tarde.
[1] – SERAFIM DA SILVA NETO, História da língua portuguesa, 3ª
edição, Rio de Janeiro, 1979, pág. 52.
[2] – FORTUNATO DE ALMEIDA, História de Portugal, vol. I, Coimbra,
1922, capºs. III e IV, pp. 28-80.
Sobre as origens e povos primitivos da Península Ibérica, bem
como da romanização e ocupação árabe, veja-se o primeiro volume da
História de Portugal, dirigida por José Hermano Saraiva, 1ª
edição, Lisboa, 1983.
[3] – ALEXANDRE HERCULANO, História de Portugal, vol. I, p. 48:«Quem
lê desprevenidamente os escritores antigos e modernos que
aproveitaram as suas afirmativas, frequentemente disparatadas e
algumas vezes opostas, para sobre eles edificarem os sistemas mais
contraditórios acerca da divisão dos povos da Espanha, só pode tirar
uma conclusão sincera: é que em tal matéria pouquíssimos
[o destaque é nosso] factos têm o grau de certeza para serem
considerados como históricos.»
[4] – Elementos complementares sobre os povos pré-românicos:
●
Fenícios: É impossível indicar a época em que travaram
relações comerciais com a Ibéria. Segundo Estrabão, possuíam as
melhores terras antes da idade de Homero. No século XII a. C.,
fundaram Gadir, hoje Cadiz, a maior colónia que possuíam em Espanha.
Além de Cadiz, no litoral do Atlântico e Mediterrâneo, fundaram
diversas cidades, de entre as quais podemos destacar Hispalis (Sevilha),
Melcarteia (Algeciras), Sexi (Jate) e Abdera (Adra). Dos fenícios
chegaram-nos diversos vestígios em inscrições lapidares, moedas e
nomes geográficos. Por exemplo, têm origem fenícia os nomes de
Lisboa (Olisipo, Olisippo, Ulisipo, Ullisipo), Espanha (do latim
Hispania, por sua vez do fenício Spania < Span).
●
Lígures: As referências relativas a estes povos são muito
vagas, sendo discordantes as informações dos autores antigos
relativas a eles. Terão habitado a Península, terão introduzido no
ocidente europeu a agricultura e a metalurgia do bronze e deles terá
ficado o sufixo -ascus, -asca, que subsiste em
alguns nomes geográficos. A sua influência terá sido reduzidíssima
em Portugal.
●
Gregos: Estabeleceram-se na Península Ibérica muito depois
dos Fenícios. Segundo Plínio, duzentos anos antes da guerra de Tróia
já os gregos tinham fundado Sagunto. Segundo Estrabão, habitantes da
ilha de Rhodos fundaram RHODE (Rosas?) na Catalunha. Houve várias
outras colónias gregas na península, das quais a mais importante
terá sido Sagunto. Em Portugal têm sido encontradas inscrições
lapidares gregas. Na necrópole de Alcácer do Sal foram encontrados
vários produtos do comércio grego.
●
Celtas: No século VI ou V a. C. terão vindo da Gália para a
península tribos celtas. A região entre o Tejo e o Guadiana foi
muito povoada por eles. Ao norte do Douro e em parte da Galiza
habitaram os Gróvios, que, segundo o testemunho de Pompónio
Melo, eram descendentes dos celtas. Foi da fusão dos celtas com os
iberos que surgiram os Celtiberos. De origem céltica
subsiste na nossa língua o vocábulo briga (que significa 'altura',
'castelo'), em topónimos como Conímbriga, Lacobriga, Caetobriga,
etc.
[5] – Principais localidades das zonas em que a Península Ibérica se
encontrava dividida por altura de 218 a. C.:
1 - Do Cyneticum (Algarve):
Laccobriga (perto de Lagos), Ossonoba (perto de Faro), Balsa (Tavira),
Baesuris (perto de Castro-Marim) e Myrtilis (Mértola);
2 - Entre Tejo e Guadiana (Tagus e Anas):
Arcobriga, Meribriga, Vipasca (Aljustrel), Ebora, Caetobriga (Setúbal),
Equabona, etc.;
3 - Entre o Tejo e Douro:
Olissipo (Lisboa), Scallabis (Santarém), Eburobrittium (Alcobaça
?), Conímbriga, Aeminium (Coimbra), Veseo (Viseu), Lamaecu (Lamego),
etc.;
4- Do Douro para cima:
Bracara (Braga), Brigantia (Bragança), Tude (Tui), etc.
[6] – GIUSEPPE CARDINALI, Ibéria romana, in: "Estudos italianos
em Portugal", fasc. 4, 1941, pp. 5-21.
[7] – Em 49 a. C., é fundada Cádise. Na Espanha Citerior são elevadas a
colónias Carthago Nova e Celsa.
[8] – ALEXANDRE HERCULANO, História de Portugal, 8ª ed., vol. I,
pp. 57-58.
[9] – Para um estudo mais aprofundado da romanização da Península
Ibérica, aconselha-se a leitura do artigo de RUI CENTENO, A
dominação romana, publicado na História de Portugal
dirigida por José Hermano Saraiva, Edições Alfa, vol. I, pp.
149-212.
[10] – Nota relativa à figura 30: Alanos, Vândalos e Suevos entram no
Império Romano provenientes do Oriente. Em 406, avançam para o
Ocidente e, em 409, entram na Península Ibérica. Em 429, avançam
para o norte de África. Os Visigodos seguem um percurso junto ao
Mediterrâneo. Em 410 entram na Península Itálica e, em 416, na
Península Ibérica.
A seguir se apresentam algumas informações complementares acerca dos
povos bárbaros que invadiram a Península Ibérica a partir de 409:
Alanos, Vândalos e Suevos.
●
Alanos: povo de ascendência iraniana que, no século III,
criara um império ao norte do Cáucaso, entre o Mar Negro e o Mar
Cáspio. O império iraniano foi destruído pelos Hunos por volta de
374. Os grupos de Alanos que conseguiram escapar ao extermínio
vaguearam dispersamente pelo ocidente da Europa, durante todo o
século V. Um contingente alano uniu-se mais tarde aos Vândalos,
provavelmente na região da Hungria.
●
Vândalos: povo germânico originário da Escandinávia. No
século I emigrou para a margem meridional do Báltico. Avançou
posteriormente para sul e dividiu-se em duas tribos
─
Silingos e Asdingos
─,
que viviam separados. Em 400 e 401, empurrados pelos Hunos, Alanos
e Vândalos emigraram juntos para o ocidente. No Outono de 409, os
vândalos entraram na Península Ibérica, tendo saqueado diversas
cidades. Após dois anos de correrias e de saques, entre 409 e 411,
os invasores concordaram em repartir entre si o território
peninsular, ocupando os Vândalos Asdingos e os Suevos a Galécia, os
Alanos a Cartaginense e a Lusitânia e os Vândalos Silingos a Bética.
●
Suevos: povos germânicos estabelecidos a este do Elba. No
século I d. C. tentaram entrar na Gália. Vencidos por César,
estabeleceram-se entre o Reno e o Danúbio. Na altura das grandes
invasões, juntaram-se aos Vândalos e penetraram, em 409, na Hispânia,
tendo ocupado a Galécia em 411.
[11] – ALEXANDRE HERCULANO, Eurico, o Presbítero, capºs. IX e X.
Extraído da edição didáctica da Porto Editora, 1980, pp. 77 e 83.
[12] – SERAFIM DA SILVA NETO, Fontes do latim vulgar: o "Appendix
Probi", 2ª edição, Rio de Janeiro, 1946.
[13] – Empregamos coloquial no sentido de corrente ou oral (por
oposição ao escrito) e não no sentido de Sedgwick que, na sua edição
do Satiricon, propõe três classes de latim: o literário, o
coloquial, falado pela boa sociedade romana; o plebeius, falado
pelas classes mais baixas, subdividido em sermo rusticus, militaris,
etc.
CARLO BATTISTI, Avviamento allo studio del latino volgare,
Bari, (Leonardo da Vinci, Editrice), 1949.
[14] – RAMÓN MENÉNDEZ PIDAL, Orígenes del español. Estado linguístico
de la Península hasta el siglo XI, 3ª ed., Madrid, tomo II,
1943.
[15] – HARRI MEIER, A evolução do português dentro do quadro das
línguas ibero-românicas. Separata da revista BIBLOS, vol.
XVIII, tomo II, 1943. |