Acesso à hierarquia superior.

Henrique J. C. de Oliveira, Gramática da Comunicação, Col. Textos ISCIA, Aveiro, FEDRAVE, Vol. I, 1993, 311 pp., Vol. II, 1995, 328 pp.


V

Formação e desenvolvimento
da língua portuguesa
Das origens à actualidade

 

Origens da língua portuguesa: antecedentes históricos; povos da  Península Ibérica anteriores à romanização; noção de substrato; a romanização; a noção de România e as línguas românicas; os Bárbaros; a invasão árabe e a reconquista cristã; os superstratos; os conceitos de latim erudito, latim vulgar e latim cristão; do latim ao português.

Do século XII à actualidade: as diferentes periodizações na evolução do português; a via erudita e a via popular; o período galaico-português; Lisboa, centro difusor da língua padrão; os cancioneiros; os primeiros textos em português: um testamento; Cantiga da Garvaia; Cantiga de D. Sancho I; duas cantigas de D. Dinis; uma cantiga de Afonso X; o período pré-clássico: principais datas referentes à expansão portuguesa; alguns textos desta fase; o período clássico: enriquecimento lexical do português; alguns textos e nomes; os gramáticos; o período moderno: breve panorama.

 

Neste capítulo iremos ver a formação e desenvolvimento da língua portuguesa, efectuando um percurso desde as suas origens mais remotas até à época moderna. No entanto, numa primeira parte, tal como se indica no sumário acima transcrito, veremos as origens da língua; numa segunda parte, ocupar-nos-emos do português desde o século XII até aos nossos dias.

Para o conhecimento da formação e origem de uma língua, seja ela o português ou outra, é importante procurarmos obter respostas para questões tais como:  ─ Onde nasceu? ─ Quais os seus antecedentes históricos? ─ Como evoluiu? ─ Onde é falada? ─ Circunscreve-se a uma área restrita ou, pelo contrário, terá ocupado outras regiões?  ─ Será homogénea em todo o território ou territórios onde é falada? Caso contrário, que variações apresenta?

Claro está que a resposta para estas questões não a poderemos dar apenas neste capítulo. Da área actualmente abrangida pela língua portuguesa e variantes dialectais ocupar-nos-emos no capítulo seguinte.  Agora, começaremos por falar das suas origens e evolução.

 

DAS ORIGENS AO SÉCULO XII 

O português teve as suas origens  na Península Ibérica. E, embora tendo como principal base o estrato romano, a língua do Império ─ o Latim ─, entrou na sua formação toda uma série de factores de natureza sociológica, tais como o ambiente social, o contacto com outras comunidades linguísticas, a existência de línguas anteriores à dominação romana, etc. Tal como nos diz Serafim da Silva Neto[1], a «história de uma língua não é um esquema rigorosamente preestabelecido (...), não se pode partir do latim e chegar directamente aos dias de hoje». Daqui se compreende que, para conhecermos as origens do português, teremos de conhecer um pouco da história da Península Ibérica, antes e depois do domínio romano. Evidente se torna também que nestas páginas não poderemos estudar de modo exaustivo a sua história. Quem o desejar fazer, tem à sua disposição não apenas a obra já indicada, mas sobretudo diversos trabalhos históricos.

Para nós, basta-nos ter uma ideia, de modo mais acessível, da história da nossa língua. E uma vez que esta anda associada à história de um povo, iremos ver um pouco o que se passou na Península Ibérica, tomando como base a História de Portugal de Fortunato de Almeida[2].

Os historiadores dividem a história em três tempos: tempos pré-históricos, tempos proto-históricos e tempos históricos. Os primeiros só são conhecidos através dos monumentos arqueológicos, entre os quais temos os túmulos, os concheiros ou retalhos de cozinha, também conhecidos pelo nome dinamarquês de kokenmødinger. Os tempos proto-históricos são já conhecidos através de alguns documentos que, no entanto, e como bem nos lembra Alexandre Herculano, não são de absoluta confiança[3]. Segundo Fortunato de Almeida, por tempos proto-históricos entende-se o período de tempo compreendido entre as idades pré-histórica e histórica, sendo difícil delimitar cronologicamente estes períodos. No entanto, costumam os historiadores fixar os começos da época histórica e consequente termo da época anterior nos fins do século III a. C., com a vinda dos romanos para a península.

Antes da vinda dos romanos, passaram pela Península Ibérica diversos povos, que deixaram alguns vestígios na língua dominadora. É precisamente todo o conjunto de povos anteriores ao romano que hoje englobamos na designação de substrato. E de entre todos esses povos, aponta-se como o mais antigo os IBEROS, cuja proveniência se desconhece. O termo ibero, derivado do nome do rio hoje chamado Ebro, aplicou-se inicialmente apenas à região banhada por esse rio, passando depois a designar um conjunto de povos ocidentais cuja língua se estendia ao longo do Mediterrâneo até ao sul da França.

Além dos Iberos, passaram também pela península os Fenícios, os Lígures, os Gregos, os Celtas e os Cartagineses[4]. Estes últimos vieram para a península após a primeira guerra púnica. Antes já cá existiam estabelecimentos cartagineses. No entanto, é agora que os cartagineses, para compensarem a perda da Sicília, resolvem começar a subjugar os povos da península. Esse objectivo foi em breve alcançado por Amílcar Barca e consolidado por seus descendentes Asdrúbal e, por morte deste, Aníbal, filho de Amílcar.

Quando Roma, em 218 a. C., decide empreender a conquista da Península Ibérica, dominavam os cartagineses não só toda a Lusitânia, mas todo o litoral do Mediterrâneo e a Bética. Antes da chegada dos romanos a faixa ocidental da Península Ibérica estava dividida, de Sul para Norte, em três zonas, compreendendo, respectivamente, a região do Algarve, designada pelos autores gregos de Cyneticum, a região entre Tejo e Guadiana (Tagus e Anas), e a região entre Tejo e Douro, subdividida ainda numa zona a partir do Douro até ao extremo norte[5].

A conquista romana da Península Ibérica tem para nós grande importância, pois foram os romanos que  maior influência exerceram entre nós. Iniciada no ano de 218 a. C., a luta pela conquista prolongou-se por cerca de duzentos anos, o que mostra bem a resistência dos povos da península aos invasores.

Como afirma Giuseppe CARDINALI[6], «vinte anos haviam sido suficientes para a conquista romana da Sicília Cartaginesa; menos disso fora preciso para apagar definitivamente Cartago do número das grandes potências; poucos anos bastaram para a destruição da Macedónia (...) para conseguir a conquista pacífica da grande península mediterrânica ocidental, Roma gastou cerca de dois séculos: desde 218 a 19 a. C.».

A conquista foi prejudicada por causas múltiplas, de entre as quais poderemos destacar:

1 - as características geográficas peninsulares;

2 - a fragmentação em inúmeros clãs;

3 - a insuficiência de grande número de capitães enviados por Roma;

4 - sobretudo, as virtudes da raça lusitana e ibérica tão citadas pelos autores clássicos, tais como ambição de independência, espírito guerreiro, coragem, lealdade, fidelidade, indiferença pela morte, etc.

Ao lado das condições de natureza geográfica, encontramos as características psicológicas do povo a submeter, que vêm aumentar as dificuldades da conquista pelo invasor. Apesar dos sucessivos reveses infligidos de maneira traiçoeira pelos romanos, estes vêem-se sucessivamente em lutas difíceis com os lusitanos. Nem a morte à traição do seu chefe  Viriato  faz com que os lusitanos se deixem abater pelo temor e pelo desânimo.

Cerca de 86 a. C., Sertório, antigo tribuno militar romano, que andava fugido em África para escapar à morte, é convidado por uma embaixada dos lusitanos a comandá-los na luta contra Roma. Acede e passa à península,  onde reorganiza e educa os lusitanos nas artes da guerra, levando-os a diversas vitórias contra os romanos, que só cessaram com a morte à traição de Sertório.

A pacificação da península só vai ocorrer após a morte de César (15 de Março de 44 a. C.) e com a subida ao poder de Augusto, que se empenha em estabelecer a paz em todo o império. Em 26 a. C., inicia uma campanha para concluir a conquista, vindo ele próprio à península. A doença fá-lo entregar o comando dos exércitos a Agripa e outros generais.  E, em breve, toda a península estava conquistada. Para cimentar a paz, Augusto procurou interessar os povos na civilização romana, concedendo-lhes benefícios e títulos honoríficos.

A romanização da península, do ponto de vista sócio-cultural, não ocorre a partir de Augusto. Este processo de assimilação, que é bastante lento, começara muito antes. Quando Sertório, antigo chefe romano, é convidado pelos Lusitanos a chefiá-los e vem para a península, traz consigo usos e costumes dos romanos, transmitindo-lhes a sua cultura. Quando a pacificação é alcançada, no reinado de Augusto, já os povos peninsulares tinham tomado contacto com uma civilização superior, o que facilitou a assimilação dos novos costumes.

Segundo Estrabão, os vencidos adaptaram-se tão bem aos vencedores que, em pouco tempo, esqueciam a própria língua, passando a usar o Latim.  Esta aceitação do Latim foi devida não à força das armas, mas a outras circunstâncias. Quando um povo subjuga outro, pode impor a sua língua, usos e costumes. Mas a aceitação por parte do vencido depende de vários factores: semelhanças entre a língua do vencedor e do vencido; tempo de permanência dos vencedores no território ocupado;  condições psicológicas criadas.

De todos os factores, as condições de ordem psicológica são as mais importantes. O grau de adesão ou de recusa do vencido depende da simpatia ou antipatia geradas e do grau de deslumbramento ou desencanto sentidos face ao vencedor, entre outros factores. Vejamos alguns casos concretos e actuais, que nos ajudam a compreender esta situação. 

Quando os portugueses, por exemplo, emigram para um país estrangeiro, cujo grau de civilização é maior que o nosso, como acontece com o caso dos Estados Unidos, facilmente se deixam deslumbrar com o esplendor e grau de civilização aí encontrados, a ponto de, ao fim de algum tempo, assimilarem não só a língua mas procurarem adquirir a nacionalidade do país de acolhimento. Situação contrária ocorre quando os portugueses emigram para o Brasil. Aqui, as civilizações e a língua são idênticas, fazendo com que o português não sinta a menor necessidade de adquirir a nova nacionalidade.

Os romanos, apesar de todos os seus excessos, traziam consigo um grande prestígio e uma elevada cultura, que ainda hoje podemos apreciar através dos monumentos que chegaram até nós e, sobretudo, através das numerosas obras literárias, que bem nos mostram o que era Roma. Ainda hoje as leis são baseadas no chamado Direito Romano.

Mas a romanização não se processou a partir do momento em que a península foi subjugada. Muito antes disso já os romanos aqui tinham estabelecido colónias, tendo em vista a latinização por via pacífica, como foi o caso de Itálica (fundada por Cipião, o Africano, em 207 a. C., na margem esquerda do Guadalquivir), de Valentia e de Metellinum, na Lusitânia (em 71 a. C., depois chamada Corduba).

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Figura 27: Principais áreas da epigrafia indígena pré-romana da Península Ibérica, segundo J. Caro Baroja.

No tempo de César e de Octaviano, foram também criadas diversas colónias, com colonos com direito latino e direito romano, com veteranos e civis, para se sobreporem às antigas comunas indígenas[7]. A pouco e pouco, os povos iam tomando contacto com uma civilização superior e criando uma apetência psicológica para formas de vida mais evoluídas.

É bastante elucidativo o excerto que passamos a transcrever, extraído da História de Portugal, de Alexandre Herculano[8]:

«Ajudada pela superioridade da ciência militar, a superioridade da civilização romana devia ter acção imensa nessas sociedades imperfeitíssimas dos indígenas, aos quais faltava o vínculo da unidade nacional e que, misturados com as raças fenícia, grega e cartaginesa, tinham tomado costumes, vocábulos e ideias de cada um destes povos, sem que esses elementos adventícios tivessem tempo suficiente para se incorporarem perfeitamente no elemento céltico e formarem com ele um todo compacto e homogéneo capaz de resistir à influência civilizadora de Roma. Esta não empregava só as armas para assegurar a sujeição dos países que subjugava; introduzia neles as suas colónias, as suas leis, os seus costumes: trocava com eles até os deuses, recebendo os estranhos nos próprios, mas exigindo reciprocidade religiosa; dava a provar a esses homens rudes o luxo e os prazeres de que era mestra; recebia-lhes os produtos da sua agricultura e indústria, e interessava-os assim por muitos modos na existência e prosperidade da grande república. As consequências deste sistema em países de raças mais antigas e simples, como nas Gálias, foram uma assimilação quase completa: o que seria, pois, na Península, onde ele devia actuar com tanto mais força, quanto é certo que a mescla das gentes, a variedade de origens nos usos, o encontrado e confuso das leis e tradições religiosas tornavam mais fáceis as consequências naturais daquele sistema?»

Antes dos romanos, o espírito de unidade era praticamente impossível. Além de usos, costumes e religiões diferentes, cada povo tinha a sua própria língua, factor que muito contribuiria para a dificuldade de relação entre os povos e, sobretudo, para a ausência de um espírito de unidade. Desde a fala à escrita, havia divergências bastante acentuadas (veja-se, por exemplo, o mapa das principais áreas da epigrafia indígena pré-romana da Península Ibérica, da autoria de J. Caro Baroja ─ figura 27).  Seria necessária a existência de uma língua comum e, sobretudo, a língua de uma cultura e civilização com elevado prestígio, para permitir a comunicação entre os diferentes povos e o nascimento de um espírito de unidade linguística.  Esse papel viria a caber ao Latim, a língua dos romanos, em breve tornada a língua oficial de todo o Império.:

No tempo de Augusto, a península, que anteriormente estava dividida em apenas duas zonas ─ a Hispânia Citerior, de aquém do Ebro, e Hispânia Ulterior, para além do Ebro  ─,  é dividida em três províncias: a Tarraconense, a Bética e a Lusitânia. A Tarraconense era a mais vasta, ocupando mais de metade da península e estendendo-se desde o Mar Cantábrico, ao norte, até ao Mar Mediterrâneo.

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Figura 28 Divisão da Península Ibérica efectuada por Augusto, em 27 a. C.. No reinado de Vespasiano, as províncias foram divididas em conventos.

A Bética situava-se a sul, estando separada da Lusitânia pelo Guadiana; era banhada pelo Atlântico e pelo Mediterrâneo. A Lusitânia ocupava quase todo o litoral do Atlântico. Era separada da Tarraconense, a norte, pelo rio Douro, e da Bética, a sul, pelo Guadiana (Veja-se o mapa da figura 28, que representa as três divisões da península, bem como algumas cidades no tempo do Império Romano). No tempo de Augusto contava já com cerca de 50 cidades, entre municípios e colónias com direito romano, constituindo um poderoso instrumento de romanização.

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A divisão provincial realizada por Augusto, em 27 a. C., manteve-se praticamente inalterada durante o período alto-imperial. No entanto, entre 16 e 13 a. C., algumas zonas da Bética foram integradas na Tarraconense, aumentando a área desta última.  No reinado de Vespasiano as províncias hispânicas foram divididas em conventus, circunscrições com carácter (fig. 28) judicial e administrativo.

Figura 29: A divisão da Península Ibérica, no reinado de Diocleciano, em 6 províncias. A sexta era a Mauritânia Tingitana, no norte de África, não representada neste mapa.

No tempo do imperador Caracala, talvez em 224, é criada uma nova província: a Hispânia Nova Citerior Antoniana. Posteriormente, no reinado de Diocleciano,  a Hispânia sofre nova divisão administrativa em seis províncias: a Tarraconensis, a Carthaginensis, a Baetica, a Lusitania, a Callaecia e a Mauritânia Tingitana, situada no norte de África e assim chamada devido ao nome da cidade de Tingis, actualmente Tânger. No final do século IV foram acrescentadas as Ilhas Baleares (Veja-se o mapa da figura 29)[9].

A rede viária criada pelos romanos vai cobrindo toda a península, facilitando as comunicações, permitindo não só a deslocação interna, mas sobretudo a ligação com as restantes regiões do império. Praticamente todas as grandes cidades estão ligadas por umas vasta rede de estradas, cujo traçado encontramos referido no Itinerarium Antonini Augusti, redigido nos inícios do século III e que é hoje a fonte clássica mais importante para o estudo das vias do Portugal romano. Além de atender a imperativos políticos e militares, favoreceu o desenvolvimento económico de todo o território.

No princípio do século I começa a verificar-se uma grande corrente emigratória do oriente para o ocidente. A Península Hispânica torna-se, durante o Império, por muitos anos, a terra prometida da colonização itálica. E no final da era pagã, a Bética, a costa da Tarraconense e as planícies da Lusitânia tinham o aspecto de uma região italiana.

Os recursos da península são explorados, tais como o minério, a oliveira e a vinha, e o comércio. Dos minerais, os mais importantes eram o ouro e a prata, além do ferro, cobre, chumbo e estanho. São também explorados os recursos hídricos, com a criação de estações termais na região das fontes minerais. Lembremos, a título de exemplo, o caso de Chaves  (AQUAE FLAVIAE).

O Latim torna-se a língua oficial não só da Península Hispânica, mas de toda a România. Esta aceitação da nova língua, que se vai sobrepor às anteriormente existentes, deve-se não apenas à acção colonizadora dos soldados, comerciantes e funcionários administrativos, mas sobretudo ao aparecimento de uma nova religião ─ Cristianismo. Vão ser os apóstolos da fé, os pregadores, que vão penetrar até às mais remotas regiões, levando com eles a língua latina, que era a língua do Cristianismo.

Convirá referir, a propósito do vocábulo România, que este se emprega para designar, no tempo de Constantino, todas as regiões pertencentes ao Imperium Romanum ou Orbis Romanus, por oposição a Barbaries. Será também conveniente lembrar que, com o édito de Caracala, em 212, é concedido o direito de cidadania a todos os habitantes do Império, pelo que todos podem ser considerados romani. No início, romani eram apenas os habitantes da cidade de Roma. Depois, com a expansão do império romano, romani eram os indivíduos apenas da classe dominante, já que os povos submetidos a Roma conservavam os seus nomes. Com as invasões bárbaras e consequente declínio do império romano, já que, após o édito de Caracala, eram romani todos os habitantes do império, surge o termo România para designar a parte não ocupada pelos bárbaros. Embora o vocábulo România se tenha perdido posteriormente com o sentido primitivo, hoje utilizamo-lo para designar o conjunto de países em que são faladas línguas românicas.  Essas línguas, num total de nove, são o português, o espanhol, o catalão,  o francês, o provençal, o italiano, o romeno, o sardo e o reto-romano.

 

A partir do século IV, o quotidiano dos cidadãos romanos é abalado pelas invasões bárbaras. Os Bárbaros entram definitivamente em território romano, levando-o ao aniquilamento e ao nascimento de uma nova sociedade.

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Figura 30: Percursos seguidos por Alanos, Vândalos e Suevos e por Visigodos. (Ver Nota 10)

No Outono de 409, a Península Ibérica é invadida por povos oriundos do interior da Europa: Suevos, Alanos e Vândalos (Vide figura 30)[10]. Durante dois anos, o território peninsular é vítima de matança, de saques e de destruições.

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Em 411, os invasores concordam em repartir-se pelo território da península, ocupando os Vândalos Asdingos e os Suevos a Galécia, os Alanos a Cartaginense e a Lusitânia e os Vândalos Silingos a Bética. A paz dura pouco tempo, sendo em breve abalada com a guerra entre os Alanos, de um  lado, e os Suevos e Vândalos Asdingos, do outro.

Figura 31: A Península Ibérica, após a chegada dos povos bárbaros, no ano de 476, ao ser deposto Rómulo Augusto, último imperador romano do Ocidente.

Em 416, entram na península os Visigodos, comandados por Vália, que esmagam os povos beligerantes. Apesar da entrada dos visigodos, a península continua a ser palco de lutas entre os diferentes povos que a habitam. Quando, em 476, é deposto Rómulo Augusto, o último imperador romano do Ocidente, a península está ocupada essencialmente pelos Suevos, que ocupam a Galécia e uma parte norte da Lusitânia, pelo que restou dos Alanos e dos Vândalos, que ocupam a parte restante da Lusitânia e a Bética, e sobretudo, pelos Visigodos, que ocupam todo o resto do território, tal como nos mostra o mapa da figura 31.

Pouco mais de um século depois, Leovigildo (568?-586) unifica a Hispânia Visigoda, ocupando progressivamente quase toda a península. Quando morre, seu filho, Recaredo, herda um reino vasto e unificado e, sobretudo, bastante romanizado e convertido ao catolicismo. Recaredo converte-se em 587 ao catolicismo e efectua a sua proclamação pública em 8 de Maio de 589, durante a realização do III Concílio de Toledo. Esta conversão proclamada publicamente foi seguida pela maioria dos notáveis godos e por muitos prelados arianos, facilitando o processo de fusão entre Visigodos e Hispano-Romanos. E, durante quase dois séculos, o domínio godo da península manteve-se mais ou menos estável, até 711, ano da chamada invasão árabe.

A acção da obra de Alexandre Herculano, Eurico, o Presbítero,  situa-se no final do período godo e começo da ocupação árabe da península.  Eurico é o jovem presbítero de Carteia que procura no sacerdócio o esquecimento do seu amor por Hermengarda. É Eurico o célebre cavaleiro negro que vai surgir no meio dos exércitos que se degladiam ─ cristãos e árabes ─, na parte mais acesa da batalha, para combater a invasão infiel e impedir o fim do império godo.

Corria o ano de 711. Sob a chefia de Tárik, milhares de berberes atravessam o estreito de Gibraltar e iniciam a invasão da península. Este vasto exército é composto pelos mais variados povos do mundo árabe:  sírios,  iemenitas,  egípcios e berberes.

«Era já tempo. A torrente dos inimigos descera, enfim, do Calpe ou Jábal Tárik, cujo nome de muitos séculos o capitão árabe tinha apagado, para escrever o próprio nome no colar servil das muralhas que lhe lançara. O estandarte do profeta de Meca já flutuava nos campos da Bética, e a sua passagem era assinalada com ruínas, sangue e incêndios. Por onde quer que os muçulmanos tinham atravessado ficavam assentados o silêncio do sepulcro e a assolação do aniquilamento. Tárik era o anjo exterminador mandado por Deus às Espanhas, e a sua espada o raio despedido do céu para fulminar o Império dos Godos.

Saindo do seu ninho de águia, construído no promontório do Estreito, os invasores internavam-se no coração da província. Depois de haverem transposto as montanhas que se alteiam desde as ribas setentrionais do Bélon até Lastigi, onde as serranias se enlaçam com as alturas de Nescânia, tinham-se assenhoreado sem resistência  da cidade episcopal de Asido e, descendo dali até Lastigi, onde as serranias se enlaçam com as alturas de Nescânia, tinham-se assenhoreado sem resistência da cidade episcopal de Asido e, descendo dali para os vales que serpeiam de Gades a Segôncia, haviam assentado campo nas margens do Chrysus. Tárik esperava lá o recontro dos godos. Desde que partira do Calpe, todos os dias, quase todas as horas, se viam chegar à hoste do Islame cristãos vindos do lado de Híspalis, conduzidos pelo caudilhos dos almogaures ou corredores africanos. Apenas estes homens desconhecidos eram levados ante o capitão árabe, ele enviava um dos seus cavaleiros ao lugar onde tremulava o pendão de Juliano, e o conde de Septum não tardava a vir ajuntar-se com Tárik.  (...) [capº. IX]

O Sol ia já alto quando o grito de "Allah hu Acbar!" soou no centro dos esquadrões do Islame. Era a voz sonora e retumbante de Tárik...

─ Cristo e avante! ─ bradaram os godos: e os esquadrões de Roderico precipitaram-se ao encontro dos muçulmanos...[11].

Os exércitos cristãos, chefiados por Rodrigo, eleito em 710, tentaram opor-se ao invasor. Mas a traição de chefes cristãos, que se colocaram ao lado dos invasores, fez com que a batalha de Guadalete fosse o fim da Hispânia Visigoda. Segundo as crónicas árabes, o rei cristão, Rodrigo, terá morrido em combate. A tradição cristã apresenta-o como tendo sobrevivido e conseguido refugiar-se nas serranias da Lusitânia. Seja como for, a verdade é que os exércitos de Tárik foram avançando para Norte, tomando, uma após outra, todas as cidades cristãs. Ao fim de pouco tempo, toda a península estava ocupada pelos infieis, à excepção de alguns redutos cristãos no norte.

A ocupação da península foi bastante rápida, devido não só à força invasora, mas também, possivelmente, ao apoio de hispânicos e judeus, elementos do povo que se opunham à nobreza goda e à Igreja, senhores da terra e da população rural.

 

A todo o território peninsular ocupado pelos árabes foi por estes dado o nome de Al-Andalus (Veja-se o mapa da figura 32).

Durante o período da ocupação árabe, os cristãos que permaneceram no território de Al-Andalus podiam manter os seus usos e costumes, bem como praticar o culto e conservar os seus templos. A estes cristãos "arabizados" dá-se o nome de moçárabes. Viviam em comunidades separadas e conservavam a sua língua, um dialecto românico, designado por Oliveira Marques de  «lusitano-moçárabe».

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Figura 32: Aspecto da Península Ibérica por volta do século X.

Os moçárabes eram obrigados ao pagamento de tributos, não podiam exercer cargos públicos, casar com mulheres árabes e nem sepultar os seus mortos com ostentação. Viviam em bairros separados, fora das muralhas das cidades. Ao contrário do que tem sido afirmado, o Islão não destruiu as bases do cristianismo da península, coexistindo as diferentes religiões.

As grandes cidades do mundo árabe peninsular foram aquelas que, em épocas anteriores, já se distinguiam pela sua grandeza e importância, destacando-se entre outras Córdova, Sevilha, Málaga, Mértola, Beja, Setúbal, Alcácer do Sal, Évora e Elvas.

Após a fase da conquista, o mundo árabe peninsular conheceu um período de turbulência, a partir dos meados do século VIII, devido essencialmente à grande diversidade de povos que compunham as hordas muçulmanas. Deste facto resultaram consequências diversas, tais como períodos de fome devido ao abandono dos campos de trabalho, retorno de grande número de berberes ao norte de África, enfraquecimento do poder muçulmano nas regiões do norte, com consequentes acções de reconquista cristã, sobretudo no noroeste, onde ocorreram incursões até ao rio Douro.

O mundo árabe peninsular caracteriza-se, portanto, pela sua grande falta de unidade, por toda uma série de lutas internas que o levam ao fraccionamento e consequente desmembramento, permitindo que os povos cristãos, refugiados no norte, possam iniciar progressiva e lentamente a reconquista em direcção ao sul.

A reconquista cristã da Península Ibérica demorou vários séculos.  Após a derrota dos exércitos de Rodrigo, em 711, na batalha de Crisus ou Guadalete, que marca o fim do período godo e o domínio árabe da península durante oito séculos, os cristãos, sob o comando de Pelágio, fixam-se em Cangas de Onis e fundam um pequeno estado, entre 718 e 737.  Com a invasão da região da Galiza pelos árabes, Pelágio refugia-se nas montanhas, onde também se encontrava Fávila, que alguns autores dizem ser seu filho.  Fávila reinou de 737 a 739. Quando Afonso I (739-757), o Católico, genro de Pelágio (ou Pelaio), sobe ao poder, em 739, inicia uma série de acções guerreiras, alargando as fronteiras da reconquista até ao rio Douro. As terras da Galiza e do futuro Condado Portucalense ficam-lhe sujeitas. Entretanto, são também resgatadas Astorga e Leão.

No reinado de Afonso III (866-909), este é obrigado a abdicar devido à revolta de seus filhos, Garcia, Ordonho e Fruela, que partilham entre si o reino. Garcia fica com Leão, Ordonho com a Galiza e a Terra Portucalense, e Fruela com as Astúrias. Entretanto, com o volver dos tempos, surgem outros estados cristãos: Navarra (905?), Castela (1033) e Aragão (1035). Estão formados os principais estados cristãos que irão permitir a reconquista da península.

A região correspondente a Portugal começou a sua expansão com D. Afonso Henriques e só no reinado de D. Afonso III alcançou a área actual, com a conquista do Algarve, em 1249, e expulsão definitiva dos árabes dessa região. No entanto, os árabes continuaram ainda no extremo sul da península por muitos mais anos, criando problemas ao reino de Castela.  Recordemos, por exemplo, a Batalha do Salado, em que o exército de Castela só conseguiu suster o avanço para norte dos exércitos árabes graças à intervenção do exército português, comandado por D. Afonso IV.  Recorde-se, se não quisermos recorrer a uma obra de carácter histórico, o célebre episódio da Formosíssima Maria, no canto III de Os Lusíadas. Esta, casada com Afonso XI de Castela, entra «polos paternais paços sublimados, / lindo o gesto, mas fora de alegria», para pedir ajuda a D. Afonso IV, seu pai, pois que «quantos povos a terra produziu / de África toda, gente fera e estranha, / o grão rei de Marrocos conduziu / pera vir possuir a nobre Espanha.» E se seu pai não der a solicitada ajuda àquele que lhe deu por marido, vê-la-á «dele e do Reino ser privada; / viúva e triste e posta em vida escura, / sem marido, sem reino e sem ventura».

Só em 1492 os árabes são definitivamente expulsos da península, com a conquista de Granada pelos Reis Católicos.

Da permanência árabe na península os vestígios são menores do que seria de esperar, após uma permanência de cerca de oito séculos. A influência árabe foi sobretudo importante na agricultura (com a introdução de novos produtos agrícolas e técnicas de rega), nas artes decorativas  (azulejo e ferro forjado), nas ciências (Matemática e Medicina) e, sobretudo, no domínio linguístico. Calcula-se entre cerca de 400 a 1000 as palavras portuguesas de origem árabe, não tomando em conta a elevada quantidade de topónimos. São exemplos de vocábulos de origem árabe em português palavras tais como arroz, azeite, azeitona, algodão, alfinete, alcaide, alfândega, alfaiate, açúcar, arrabalde, aldeia, etc.

Temos neste momento uma panorâmica rápida de todos os povos que passaram pela península, desde os mais antigos até às invasões árabes e reconquista  cristã, tendo como ponto intermédio e o mais influente o período da ocupação romana.

A língua portuguesa formou-se tendo como raiz principal a língua latina e toda uma série de outras influências secundárias, constituídas por vestígios das línguas, quer dos povos anteriores aos romanos, quer daqueles que vieram depois, entre os quais os bárbaros e os árabes, englobando na designação bárbaros todos aqueles que não pertenciam ao Império Romano e que contribuíram para a sua extinção.

 

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Figura 33: Povos que ocuparam a Península Ibérica cujas línguas contribuíram em maior ou menor grau, para a formação da língua portuguesa: os substratos e os superstratos.

 

Tomando como estrato principal a língua latina, englobamos nos substratos todo o conjunto de povos anteriores aos romanos, que deixaram alguns vestígios na língua dominadora ─ o LATIM. Todos aqueles povos que vieram após os romanos e cujas línguas, embora não eliminando a dominadora, a vieram enriquecer, consideramo-las como superstratos.

Portanto, os vocábulos substrato e superstrato, à semelhança do que se passa no domínio da Geologia, designam as camadas, os estratos linguísticos sub e suprajacentes ao estrato principal, que foi a língua latina, língua dominadora por excelência, que se sobrepôs a todas as demais, a nível de toda a România, dando origem a línguas diferenciadas. A nível do português e reduzindo tudo quanto anteriormente analisámos a um esquema de síntese, obteremos o quadro apresentado na figura 33. Se lhe prestarmos a devida atenção, verificaremos que, no estrato principal, se apresenta como origem do português o LATIM nos seus diferentes níveis. Quer isto dizer que o português, tal como as demais línguas românicas, não deriva do chamado latim clássico, isto é, do latim literário utilizado pelos grandes escritores clássicos, mas sim da língua quotidiana dos tempos imperiais, do latim falado no dia-a-dia pelo povo e designado habitualmente, embora de modo impreciso e impróprio, pela expressão latim vulgar.

Convirá, antes de falarmos nas etapas da evolução do português, fazer uma breve referência ao conceito de latim vulgar. Esta expressão não designa uma fase dialectal, mas sim a língua normalmente falada no mundo latino, na România, pela maioria da classe média nos dois últimos séculos da república e no império, com todos os seus aspectos positivos e negativos.

O conceito de latim vulgar tem sido encarado através dos tempos segundo diferentes perspectivas. Para o americano Grandgent ─ segundo nos informa Serafim da Silva Neto ─ o latim vulgar é o latim falado pelas classes médias da população. Constitui o substrato das línguas românicas. Difere do emprego conscientemente polido da sociedade culta, do falar rural e da linguagem dos mais baixos quarteirões da cidade, apesar de sofrer influências de todos os lados. Segundo o mesmo autor, podemos encontrar diferentes registos de latim: latim culto literário; latim dos bairros pobres e gírias; latim vulgar, da classe média, substrato das actuais línguas românicas; latim dos campos.

Einar Löfstedt define latim vulgar como «aquelas espécies de estilo que estão mais próximas da linguagem do povo ou da linguagem corrente do que do elevado modo de exprimir criado pela tradição técnica literária».

Muitas outras definições poderíamos apresentar acerca do latim vulgar, mostrando-nos quão difícil e discutível é dar uma definição satisfatória deste conceito.

Serafim da Silva Neto, na obra Fontes do latim vulgar (O Appendix Probi)[12], relativamente à língua corrente, admite três matizes: latim familiar (das classes médias); latim vulgar (das camadas mais baixas); gírias (militar; dos gladiadores; dos marinheiros; etc.). E, mais adiante, acrescenta que, hoje em dia, é quase impossível limitar exactamente os diferentes matizes da língua. E, relativamente à expressão latim vulgar, diz-nos tratar-se da linguagem das camadas inferiores, acrescentando que deveremos evitar a designação latim vulgar e substituí-la, de  preferência, por latim corrente.

 

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Figura 34: Quadro com os diferentes registos do Latim, tendo em conta os diferentes conceitos (Ver nota 13)

 


Se consultarmos o artigo de Carlo Battisti, Avviamento allo studio del latino volgare[13], ficaremos a saber que, além do já referido latim erudito, que se caracteriza pelo seu aspecto estático, pouco inovador, sujeito a regras, e do latim vulgar, inovador, dinâmico, mas com os aspectos negativos pelo facto de corromper as regras gramaticais, existem outras formas de latim, como é o caso do chamado latim cristão.

No século III d. C., com o enfraquecimento do vínculo cultural entre Roma e as províncias, cada uma destas começa a vergar autonomamente o latim falado às próprias experiências expressivas, dando origem a diferentes variedades regionais, que estarão na origem das futuras línguas neolatinas, variedades que se vão acentuar a partir do momento em que povos bárbaros do interior da Europa começam a invadir e a desmembrar o Império. Além do latim erudito, utilizado pela classe mais culta, e do latim coloquial  (vulgar), surge toda uma série de registos variáveis com as profissões e com as regiões da România. E, ao lado destas diferentes formas, surge com a expansão do cristianismo uma forma de latim que poderemos designar por latim cristão.

O latim cristão caracteriza-se por um emprego de grecismos e semitismos e pela confluência de filões populares com elementos derivados da tradição retórica. Além destes aspectos, o latim cristão caracteriza-se ainda pela multiplicidade de elementos linguísticos que nele se fundem, com arcaismos, neologismos, vulgarismos, hebraísmos, estruturas sintácticas simplificadas, etc. O latim cristão foi largamente enriquecido com palavras de origem grega, como eucharistia, baptismus, diaconus, presbyter, episcopus, neophytus, etc., com hebraísmos e neologismos, chegando muitas vezes a ir repescar antigas palavras latinas caídas em desuso e introduzindo-lhes novos sentidos.

Significa tudo quanto dissemos que o latim está longe de ser uniforme, de ser homogéneo, variando facilmente de tom e de timbre segundo o fim a que se destina, segundo a região onde é falado e segundo as classes sociais que o utilizam. É por tudo isto que, embora tradicionalmente se diga que as línguas neolatinas, as chamadas línguas românicas, provêm do chamado latim vulgar, nós, no nosso esquema relativo às origens do português (vide figura 33), preferimos dizer que este provém do latim nos seus diferentes níveis, ao qual se vieram juntar os contributos enriquecedores quer dos substratos, quer dos superstratos, ou seja, de todas as línguas de todos os povos que passaram pela Península Ibérica.

Relativamente aos diferentes registos do latim e tomando em conta os diferentes conceitos apresentados, poderemos elaborar o quadro presente na figura 34. Embora discutível e não resolvendo definitivamente o problema, permite-nos uma melhor sistematização.

Perante a grande heterogeneidade do latim, com múltiplos registos de acordo com as situações, as classes sociais dos falantes e as regiões, fácil será concluir que, com o fluir do tempo, estas diferenças mais se acentuaram de região para região, levando a línguas que, embora tendo a mesma raiz, são completamente diferentes entre si.

Durante bastante tempo, antes do aparecimento do trabalho de Ramón Menéndez Pidal, Orígenes del español[14], considerava-se que a România se dividia em duas grandes metades: a Oriental, formada pela Itália e as Balcãs, e a Ocidental, formada pela Gália e a Ibéria. E considerava-se que, dentro da metade Ocidental, era a Península Ibérica a região com características mais conservadoras, distinguindo-se do resto da România. Menéndez Pidal constatou, no entanto, que entre as penínsulas Itálica e Ibérica existe uma evolução paralela e uma relação histórica, infirmando a teoria anterior, o que se explica pelo facto da elevada corrente migratória de colonos itálicos para a antiga província da Tarraconense.

No entanto, dentro da Península Ibérica, conforme nos dá conta Harri Meier[15], há duas grandes zonas de evolução, correspondentes à antiga divisão administrativa da península durante o período da romanização.  Quando efectuámos a nossa breve digressão pela história da península, dissemos que esta se dividia, inicialmente, em duas províncias, mais tarde subdivididas no tempo de Augusto: a Hispânia Citerior, para aquém de Gibraltar, correspondente à Tarraconense, e a Hispânia Ulterior, para além do estreito, correspondente à Lusitânia e à Bética. Esta indicação ─ para aquém ou para além de Gibraltar ─ era feita pelos antigos, tomando como ponto de referência a Península Itálica.

Entre a Hispânia Ulterior e a Citerior as diferenças não eram apenas de cunho administrativo, mas também de carácter cultural. Enquanto na Hispânia Ulterior, especialmente no sul, se encontrava uma forte povoação citadina com elevado grau de civilização, a Hispânia Citerior era essencialmente constituída por colónias agrícolas e cidades que eram centros militares. À cultura mais desenvolvida e citadina da Hispânia Ulterior corresponde linguisticamente uma forma mais conservadora no vocabulário, na fonética e na sintaxe, ao passo que a Hispânia Citerior e a região galo-românica apresentam uma maior tendência para evoluírem. Acontece, no entanto, que as regiões do Norte da península, embora administrativamente pertencentes à Hispânia Citerior, participam da onda romanizante da Hispânia Ulterior.

O português actual vai surgir do latim da Hispânia Ulterior, região mais evoluída culturalmente e, consequentemente, mais conservadora, apresentando, segundo Harri Meier, três grandes fases evolutivas, cujas características nos limitamos a apresentar muito resumidamente. Para um conhecimento mais desenvolvido, aconselhamos a leitura do artigo citado.

●  Numa primeira fase, vão-se acentuar as diferenças entre a Hispânia Ulterior e a Citerior, tais como: tendências conservadoras da primeira em oposição às tendências inovadoras da segunda; uso do pretérito perfeito simples, hoje predominante no português, em vez do pretérito perfeito composto; conservação dos grupos consonânticos latinos, como por exemplo MB, em vez da sua simplificação em m (cfr. PLUMBUM > port. chumbo; PALUMBA(M) > port. pomba; esp. paloma); conservação do U final latino, que ainda hoje se conserva em português, ao contrário de outras línguas;  conservação dos ditongos do latim falado au, ai, ei, que se mantêm ainda hoje, enquanto noutras línguas se reduzem a um monotongo.

●  Numa segunda fase, a Hispânia Ulterior e, consequentemente, a língua que está na origem do português, vai sofrer a influência da Galécia, província que abrange, além da actual Galiza, Leão e Astúrias. Vai igualmente sofrer a influência das invasões bárbaras, primeiro, e das invasões árabes, posteriormente. Com a invasão árabe, os cristãos que permanecem  no território ocupado ─ os moçárabes ─, embora conservem a sua língua românica, vão-na enriquecer com novos vocábulos de origem árabe. Nesta segunda fase, um dos fenómenos fonéticos que se verifica na evolução da língua é a passagem dos grupos consonânticos pl e cl a ch (cfr.  CLAVE(M) > chave; PLUMBU(M) > chumbo).

●  A terceira fase da evolução do português ─ se é que já assim se pode chamar à língua falada na faixa ocidental da península ─ corresponde ao período de mútua adaptação linguística após a reconquista cristã do território, quando os dialectos galaico-portugueses dos reconquistadores do norte se sobrepõem aos dialectos locais ao sul do Douro.

 

Temos, deste modo bastante simplificado, as diferentes fases na evolução da língua falada na parte ocidental da península, desde o período da romanização até à época da reconquista cristã da parte norte. Entre o período da romanização e o da reconquista cristã encontramos um factor histórico bastante importante, que foi o da invasão árabe da península, em 711. Entre a fase da invasão árabe e a reconquista, Serafim da Silva Neto, na obra citada, considera que, relativamente à faixa ocidental da península, marcada pelas lutas entre cristãos e árabes, existem essencialmente três fases: na primeira, a defensiva, que ocupa três séculos, entre 720 e 1002, a iniciativa pertence aos mouros; na segunda, a de transição, entre 1002 e 1045, a balança começa a pender favoravelmente aos cristãos; na terceira e última, a da reconquista, entre 1045 e 1250, começa o recuo inexorável dos mouros, até à sua definitiva expulsão três séculos mais tarde.


[1] SERAFIM DA SILVA NETO, História da língua portuguesa, 3ª edição, Rio de Janeiro, 1979, pág. 52.

[2] FORTUNATO DE ALMEIDA, História de Portugal, vol. I, Coimbra, 1922, capºs. III e IV, pp. 28-80.

   Sobre as origens e povos primitivos da Península Ibérica, bem como da romanização e ocupação árabe, veja-se o primeiro volume da História de  Portugal, dirigida por José Hermano Saraiva, 1ª edição, Lisboa, 1983.

[3] ALEXANDRE HERCULANO, História de Portugal, vol. I, p. 48:«Quem lê desprevenidamente os escritores antigos e modernos que aproveitaram as suas afirmativas, frequentemente disparatadas e algumas vezes opostas, para sobre eles edificarem os sistemas mais contraditórios acerca da divisão dos povos da Espanha, só pode tirar uma conclusão sincera: é que em tal matéria pouquíssimos [o destaque é nosso] factos têm o grau de certeza para serem considerados como históricos.»

[4] Elementos complementares sobre os povos pré-românicos:

Fenícios: É impossível indicar a época em que travaram relações comerciais com a Ibéria. Segundo Estrabão, possuíam as melhores terras antes da idade de Homero.  No século XII a. C., fundaram Gadir, hoje Cadiz, a maior colónia que possuíam em Espanha. Além de Cadiz, no litoral do Atlântico e Mediterrâneo, fundaram diversas cidades, de entre as quais podemos destacar Hispalis (Sevilha), Melcarteia (Algeciras), Sexi (Jate) e Abdera (Adra).  Dos fenícios chegaram-nos diversos vestígios em inscrições lapidares, moedas e nomes geográficos. Por exemplo, têm origem fenícia os nomes de Lisboa (Olisipo, Olisippo, Ulisipo, Ullisipo), Espanha (do latim Hispania, por sua vez do fenício Spania < Span).

 

Lígures: As referências relativas a estes povos são muito vagas, sendo discordantes as informações dos autores antigos relativas a eles. Terão habitado a Península, terão introduzido no ocidente europeu a agricultura e a metalurgia do bronze e deles terá ficado o sufixo  -ascus-asca,  que subsiste em alguns nomes geográficos.  A sua influência terá sido reduzidíssima em Portugal.

 

Gregos: Estabeleceram-se na Península Ibérica muito depois dos Fenícios. Segundo Plínio, duzentos anos antes da guerra de Tróia já os gregos tinham fundado Sagunto. Segundo Estrabão, habitantes da ilha de Rhodos fundaram RHODE (Rosas?) na Catalunha. Houve várias outras colónias gregas na península, das quais a mais importante terá sido Sagunto. Em Portugal têm sido encontradas inscrições lapidares gregas. Na necrópole de Alcácer do Sal foram encontrados vários produtos do comércio grego.

 

Celtas: No século VI ou V a. C. terão vindo da Gália para a península tribos celtas. A região entre o Tejo e o Guadiana foi muito povoada por eles.  Ao norte do Douro e em parte da Galiza habitaram os Gróvios, que, segundo o testemunho de Pompónio Melo, eram descendentes dos celtas. Foi da fusão dos celtas com os iberos que surgiram os Celtiberos.  De origem céltica subsiste na nossa língua o vocábulo briga (que significa 'altura', 'castelo'), em topónimos como Conímbriga, Lacobriga, Caetobriga, etc.

[5] Principais localidades das zonas em que a Península Ibérica se encontrava dividida por altura de 218 a. C.:

1 - Do Cyneticum (Algarve):  Laccobriga (perto de Lagos), Ossonoba (perto de Faro), Balsa (Tavira),  Baesuris (perto de Castro-Marim) e Myrtilis (Mértola);

2 - Entre Tejo e Guadiana (Tagus e Anas): Arcobriga, Meribriga, Vipasca (Aljustrel), Ebora, Caetobriga (Setúbal), Equabona, etc.;

3 - Entre o Tejo e Douro: Olissipo (Lisboa), Scallabis (Santarém), Eburobrittium (Alcobaça ?),  Conímbriga, Aeminium (Coimbra), Veseo (Viseu), Lamaecu (Lamego), etc.;

4- Do Douro para cima: Bracara (Braga), Brigantia (Bragança), Tude (Tui), etc.

 

[6] GIUSEPPE CARDINALI, Ibéria romana, in: "Estudos italianos em Portugal", fasc. 4, 1941, pp. 5-21.

[7] Em 49 a. C., é fundada Cádise. Na Espanha Citerior são elevadas a colónias Carthago Nova e Celsa.

[8] ALEXANDRE HERCULANO, História de Portugal, 8ª ed., vol. I, pp. 57-58.

[9] Para um estudo mais aprofundado da romanização da Península Ibérica, aconselha-se a leitura do artigo de RUI CENTENO, A dominação romana, publicado na História de Portugal dirigida por José Hermano Saraiva, Edições Alfa, vol. I, pp. 149-212.

[10] Nota relativa à figura 30: Alanos, Vândalos e Suevos entram no Império Romano provenientes do Oriente. Em 406, avançam para o Ocidente e, em 409, entram na Península Ibérica. Em 429, avançam para o norte de África. Os Visigodos seguem um percurso junto ao Mediterrâneo. Em 410 entram na Península Itálica e, em 416, na Península Ibérica.

 

A seguir se apresentam algumas informações complementares acerca dos povos bárbaros que invadiram a Península Ibérica a partir de 409: Alanos, Vândalos e Suevos.

 

Alanos: povo de ascendência iraniana que, no século III,  criara um império ao norte do Cáucaso, entre o Mar Negro e o Mar Cáspio. O império iraniano foi destruído pelos Hunos por volta de 374. Os grupos de Alanos que conseguiram escapar ao extermínio vaguearam dispersamente pelo ocidente da Europa, durante todo o século V. Um contingente alano uniu-se mais tarde aos Vândalos, provavelmente na região da Hungria.

 

Vândalos: povo germânico originário da Escandinávia. No século I emigrou para a margem meridional do Báltico. Avançou posteriormente para sul e dividiu-se em duas tribos  Silingos e Asdingos , que viviam separados. Em 400 e 401, empurrados pelos Hunos,  Alanos e Vândalos emigraram juntos para o ocidente. No Outono de 409, os vândalos entraram na Península Ibérica, tendo saqueado diversas cidades. Após dois anos de correrias e de saques, entre 409 e 411, os invasores concordaram em repartir entre si o território peninsular, ocupando os Vândalos Asdingos e os Suevos a Galécia, os Alanos a Cartaginense e a Lusitânia e os Vândalos Silingos a Bética.

 

Suevos: povos germânicos estabelecidos a este do Elba. No século I d. C. tentaram entrar na Gália. Vencidos por César, estabeleceram-se entre o Reno e o Danúbio. Na altura das grandes invasões, juntaram-se aos Vândalos e penetraram, em 409, na Hispânia, tendo ocupado a Galécia em 411.

[11] ALEXANDRE HERCULANO, Eurico, o Presbítero, capºs. IX e X. Extraído da edição didáctica da Porto Editora, 1980, pp. 77 e 83.

[12] SERAFIM DA SILVA NETO, Fontes do latim vulgar: o "Appendix Probi", 2ª edição, Rio de Janeiro, 1946.

[13] Empregamos coloquial no sentido de corrente ou oral (por oposição ao escrito) e não no sentido de Sedgwick que, na sua edição do Satiricon, propõe três classes de latim: o literário, o coloquial, falado pela boa sociedade romana; o plebeius, falado pelas classes mais baixas, subdividido em sermo rusticus, militaris, etc.

 

CARLO BATTISTI, Avviamento allo studio del latino volgare, Bari, (Leonardo da Vinci, Editrice), 1949.

[14] RAMÓN MENÉNDEZ PIDAL, Orígenes del español. Estado linguístico de la Península hasta el siglo XI, 3ª ed., Madrid, tomo II, 1943.

[15] HARRI MEIER, A evolução do português dentro do quadro das línguas  ibero-românicas. Separata da revista BIBLOS, vol. XVIII, tomo II, 1943.

 

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