ESCALDAR O AZEITE E SANGRAR AS TAREFAS
Antes de apresentarmos alguns excertos de entrevistas respeitantes às
operações de
escaldar o azeite
e sangrar as tarefas, teremos de referir os aspectos linguísticos
relacionados com estas duas actividades. Apresentaremos depois um
excerto de um texto, escrito em Agosto de 1969, a que demos o título
Por terras de Portugal. Artigo inédito, nele se efectua uma viagem
ao tempo em que o lagar de Souselas ainda laborava, assistindo-se, entre
outras operações, à actividade que consistia em escaldar o azeite e
sangrar as tarefas. Finalmente, apresentaremos alguns excertos de
diálogos registados em alguns lagares, que completam as informações
sobre esta matéria e nos permitem rever actividades a que assistimos e
que hoje se encontram praticamente extintas.
A)
–
O VOCABULÁRIO
Vimos no capítulo VII que, após a primeira prensagem a seco, a prensa
de vara era subida e a massa das seiras revolvida e misturada com água a
ferver, operação conhecida por diversos nomes e expressões, variáveis de
região para região. Não só a massa é escaldada nas seiras, como também o
azeite nas tarefas, para facilitar a operação de decantação. Para esta
operação, que consiste em juntar água a ferver ao azeite existente nas
tarefas, encontrámos diversas expressões e vocábulos, alguns utilizados
também para a operação anteriormente referida, como:
|
caldar o azeite - 1
caldeamento - 1
caldear - 6 |
escaldar - 6
escaldeamento - 1
escaldar o azeite - 3 |
Caldar o azeite,
caldear,
escaldar e escaldar o azeite(32) são as formas
verbais correspondentes à operação de adicionar água a ferver ao azeite
das tarefas. Sendo as mesmas para a operação efectuada durante o
enseiramento e prensagem, os interlocutores distinguem uma actividade da
outra referindo o elemento que vai receber a água a ferver, donde as
expressões transcritas. As mesmas formas verbais foram registadas
noutras épocas por diversos autores. Guilherme Felgueiras(33)
regista o vocábulo caldear, que define como «velha prática de
oleicultura, geralmente reprovada, consistindo em lançar água fervente
no azeite e águas recolhidas na tarefa, saindo deste recipiente o
pilão, o óleo que sobrenada, e, vazando-se o inferno, as águas-ruças».
Caldeamento
e
escaldeamento
são nomes da mesma família para designar a operação de escaldar não só a
massa das seiras, como se viu no cap. VII, mas também o azeite nas
tarefas, para facilitar a decantação e depuração do azeite.
Quando, nas páginas anteriores, apresentámos os diferentes tipos de
tarefas, referimos diversos vocábulos relacionados com as impurezas que
vêm com o azeite, tais como
|
balsa - 2
cabeças - 7
cabeços - 1
cabeiças - 1 |
cortiça - 1
laço - 1
laçareira - 1 |
Todos os termos acima listados estão semanticamente relacionados, na
medida em que apresentam praticamente o mesmo sentido, embora com
ligeiras diferenças.
Balsa,
termo que apenas registámos no distrito de Coimbra, P. 261, e Ponte da
Mata (freg. Sazes, conc. Penacova), designa, segundo se depreende da
explicação dada pelos informadores, a película que separa a água do
azeite, constituída por impurezas ou resultante, segundo cremos, das
diferentes densidades dos líquidos, zona onde o mestre sente uma
diferença no deslizar da vareta, o que lhe permite determinar a altura a
que se encontra o azeite, o qual deve andar sempre acima do
colo
das tarefas.
Cabeças,
cabeços
e cabeiças, embora registados em diferentes localidades(34),
são variantes fonéticas da mesma palavra e apresentam os sentidos de
'borras do azeite', 'impurezas do azeite'. Em todos os locais os
vocábulos foram sempre empregues na sua forma do plural. Além dos
sentidos já indicados, encontrámos também os de 'azeite misturado com
aziaga' e 'último azeite que se colhe nas tarefas e que já traz água'.
Informação mais completa foi fornecida por um informador da Quinta da
Costa, P. 238, (conc. Oliveira do Hospital, dist. Coimbra). Diz-nos ele,
ao falar das actividades do lagar:
«Temos
aquela nata que sobrenada nas tarefas, em que a decantação era bastante
lenta, porque não havia a operação de centrifugação. As cabeças eram
aproveitadas e espremidas com as mãos, tirando-se delas algum azeite.
(...) Elas surgiam na primeira e única decantação.»
O vocábulo
cortiça
surgiu-nos unicamente no trabalho de D. A. Tavares da Silva(35),
que o define como «conjunto de fragmentos de polpa, amêndoa e algum
azeite que na repisa do bagaço da azeitona com a água sobrenada –
F. Lapa».
Laço
foi por nós registado no distrito de Aveiro, P. 120, quando o informador
nos disse que «o
azeite anda sempre no laço da água, da água quenti».
Cremos tratar-se da película que se forma à superfície do líquido, nas
tarefas ou talhas, produzida pela mistura da água com o azeite ou a zona
de separação resultante de dois líquidos sobrepostos não miscíveis.
O vocábulo
laçareira,
da mesma família do anterior, foi registado no trabalho de M. Margarida
F. Martins(36) como designando «os detritos e impurezas que
se encontram à superfície do azeite».
Para o processo de separação do azeite das águas e impurezas, além dos
vocábulos
decantação
e depuração, empregues ao longo do capítulo, encontrámos a
palavra apartamento (dist. Bragança, P. 86) com o
sentido de
'separação' e apartar, verbo registado por Guilherme Felgueiras(37),
que nos diz tratar-se de «provincianismo trasmontano», designando
a «operação que consiste em fazer a separação do azeite da almofeira
ou água-ruça».
Relacionado com as actividades de separar o azeite das águas e ainda com
a extracção das águas-ruças das tarefas, encontrámos vários vocábulos e
expressões:
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águas abaixo - 1 |
sangra(38) - 4 |
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deitar água abaixo - 1 |
sangradeira - 3 |
|
bareta, baretazinha, |
sangradêra - 1 |
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vara, vareta, varinha - 11 |
sangradoiro - 5 |
|
gibardeira
- 1 |
sangrador - 1 |
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picadeira - 1 |
sangradouro - 4 |
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pica-folha - 1 |
sangramento - 1 |
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picar o azeite - 2 |
sangrar - 25 |
|
rolar o azeite - 1 |
sangria - 2 |
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Esta listagem de 21 vocábulos e expressões corresponde a dois grupos
semânticos: um, aplicado à operação de separação e extracção das
águas-ruças das tarefas; o outro, aos instrumentos utilizados.
Começaremos por analisar os vocábulos relacionados com a primeira
operação.
Águas abaixo
e
deitar água abaixo
são no fundo a mesma expressão. Foram registadas no lagar da Quinta da
Portela, P. 285, dist. Coimbra. Enquanto a segunda designa a actividade,
a primeira corresponde à ordem dada pelo mestre ao ajudante, mediante a
qual este empurra a espicha da tarefa para deixar correr a água
até que o mestre lhe dê ordem de tapar. Quando isto acontece, o ajudante
larga a espicha ou bichaneira, a pressão do líquido
empurra-a para fora e obstrui o orifício de saída.
Sangra,
sangramento,
sangrar e sangria são vocábulos também utilizados para
designar o acto de sangrar as tarefas, isto é, a operação que referimos
no parágrafo anterior. O vocábulo sangra já foi por nós analisado
no cap. II. Sangramento foi registado no lagar de Ervedal, P.
236, dist. Coimbra. Sangria surge em dois relatórios do I.L.B.
referentes a Paradela (conc. Penacova, dist. Coimbra) e Monte Real (conc.
e dist. Leiria). Sangrar é o vocábulo com maior frequência de
utilização e foi por nós registado em vários distritos do País(39)
para designar a 'operação de tirar a sangra ou águas-ruças das
tarefas, ficando apenas o azeite'.
Sangradeira,
sangradêra,
sangradoiro, sangrador e sangradouro são variantes
fonéticas da mesma palavra registadas não só por nós, mas também em
trabalhos anteriores, com ligeiras alterações de sentido, mas todas elas
aplicadas ao local por onde se extraem as águas das tarefas.
Sangradeira, com a variante fonética sangradêra registada num
inquérito do I.L.B. referente a Casal da Serra (conc. Covilhã, dist.
Castelo Branco), foi registada em 1906 por António Ladislau Piçarra(40),
que nos diz que «(...) do fundo da tarefa nasce um tubo metálico ou
de barro, que sobe ao cimo do mesmo pote e funciona como sifão, pelo
qual se despeja a água-ruça, i. é., a água que escorre da prensa
misturada com o azeite. Esse tubo denomina-se sangradeira e lança
a água-ruça num cano que a conduz para fora do lagar». Maria
Margarida F. Martins(41) apresenta também o vocábulo na
expressão «porta da sangradeira», que define como o «portal que dá
saída à água da levada – Beira Alta», sentido que nunca
encontrámos, quando visitámos diferentes lagares na região por ela
mencionada. Sangradoiro, variante fonética de sangrador,
por nós várias vezes referida nas páginas anteriores, foi registada nos
distritos de Bragança, Coimbra, Guarda e Viseu(42).
Sangrador, vocábulo a partir do qual terão surgido os restantes da
mesma família, apenas foi por nós ouvido no lagar da Quinta da Romeira,
P. 206 (conc. Celorico da Beira, dist. Guarda). Sangradouro, por
nós ouvido em dois lagares, nos distritos de Coimbra e de Vila Real(43),
foi registado por Guilherme Felgueiras(44) como tendo sido
recolhido em Bragança e designando a «goteira por onde, nos antigos
lagares de azeite, escorre da tarefa a almofeira ou água-ruça,
líquido escuro, que é o resíduo do fabrico do azeite». Também Jaime
Lopes Dias(45) apresenta o vocábulo, quando explica que «as
espichas das tarefas são manobradas pelo sangradouro...».
Os vocábulos a seguir analisados e já anteriormente surgidos ao longo
deste capítulo correspondem a instrumentos ou objectos utilizados
durante a
sangria
e separação do azeite.
A
vareta,
bareta, baretazinha ou, como é conhecido em alguns
lagares, varinha(46), são os diminutivos utilizados para
uma pequena vara de marmeleiro ou outra árvore com a qual o
mestre determina, enquanto está a sangrar as tarefas, a altura do
azeite, a fim de poder mandar tapar o orifício de escoamento quando a
coluna de azeite se encontra próxima do colo das tarefas. É importante
referir que a vareta só é utilizada nos sistemas de tarefas
simples, isto é, naquelas em que a decantação se processa numa tarefa
única, na ausência do sistema de sifão que anteriormente apresentámos
relativamente a alguns lagares. Embora nunca tenhamos encontrado nenhum
exemplar, em alguns lagares antigos esta vareta era substituída por um
medidor artesanal da altura do azeite, constituído por uma palha
comprida, geralmente de trigo, com uma azeitona espetada na extremidade
mais grossa. Esta palha tinha um comprimento ligeiramente superior na
vertical ao que ia do colo à superfície da tarefa. Como a azeitona
descia só até à zona em que a água se separa do azeite, permitia ao
mestre determinar a altura da coluna de azeite dentro do recipiente
superior da tarefa, não deixando que ele se aproximasse do colo.
Para o trabalho de determinar a altura do azeite na tarefa encontrámos
em Souselas, P. 262, dist. Coimbra, a expressão
rolar o azeite,
que consistia em cortar o azeite traçando geralmente uma cruz com a
vareta de madeira.
Registámos ainda a expressão
picar o azeite(47)
nos lagares de Ponte do Feixe, P. 34, a que fizemos já referência neste
mesmo capítulo (vd. págs. 306-307) e Fundo de Vila, P. 57. A actividade
de picar o azeite era feita, como referiu o mestre do lagar,
utilizando uma varinha:
«...esta
barinha é p'ra se picar o azeite, q'ando ele qu'está, que calhe
d'estar um bocadito intoldado, a gente dá-le também assim um'as
picadelinhas e ele bai assentando p'ra baixo p'ra sair depois liso
p'r'àli.»
(Fundo de Vila, P. 57, freg. Jasente, conc. Amarante, dist. Porto).
Vimos também, relativamente ao lagar de Ponte do Feixe, P. 34 (dist.
Braga), que o mestre utilizava (vd. págs. 306-307) umas vassourinhas de
picadeira
ou gibardeira para ajudar a separar o azeite, que correspondem,
segundo os dicionários da língua portuguesa, ao vocábulo pica-folha,
ou seja, a um «arbusto de folhas pequenas e pontiagudas usado para
picar o azeite, a fim de o descoalhar, também conhecido por azevinho
e visqueira».
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