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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

VIII

SISTEMAS DE DECANTAÇÃO

 

ESCALDAR O AZEITE E SANGRAR AS TAREFAS

Antes de apresentarmos alguns excertos de entrevistas respeitantes às operações de escaldar o azeite e sangrar as tarefas, teremos de referir os aspectos linguísticos relacionados com estas duas actividades. Apresentaremos depois um excerto de um texto, escrito em Agosto de 1969, a que demos o título Por terras de Portugal. Artigo inédito, nele se efectua uma viagem ao tempo em que o lagar de Souselas ainda laborava, assistindo-se, entre outras operações, à actividade que consistia em escaldar o azeite e sangrar as tarefas. Finalmente, apresentaremos alguns excertos de diálogos registados em alguns lagares, que completam as informações sobre esta matéria e nos permitem rever actividades a que assistimos e que hoje se encontram praticamente extintas.

 

A) O VOCABULÁRIO

Vimos no capítulo VII que, após a primeira prensa­gem a seco, a prensa de vara era subida e a massa das seiras revolvida e misturada com água a ferver, operação conhecida por diversos nomes e expressões, variáveis de região para região. Não só a massa é escaldada nas seiras, como também o azeite nas tarefas, para facilitar a operação de decantação. Para esta operação, que consiste em juntar água a ferver ao azeite existente nas tarefas, encontrámos diversas expressões e vocábulos, alguns utilizados também para a operação anteriormente referida, como:

 

caldar o azeite - 1

caldeamento - 1

caldear - 6 

escaldar - 6

escaldeamento - 1

escaldar o azeite - 3

Caldar o azeite, caldear, escaldar e escaldar o azeite(32) são as formas verbais correspondentes à operação de adicionar água a ferver ao azeite das tarefas. Sendo as mesmas para a operação efectuada durante o enseiramento e prensagem, os interlocutores distinguem uma actividade da outra referindo o elemento que vai receber a água a ferver, donde as expressões transcritas. As mes­mas formas verbais foram registadas noutras épocas por diversos autores. Guilherme Felgueiras(33) regista o vocábulo caldear, que define como «velha prática de oleicultura, geralmente reprovada, consistindo em lançar água fervente no azeite e águas recolhidas na tarefa, saindo deste recipiente o pilão,  o óleo que sobrenada, e, vazando-se o inferno, as águas-ruças».

Caldeamento e escaldeamento são nomes da mesma família para designar a operação de escaldar não só a massa das seiras, como se viu no cap. VII, mas também o azeite nas tarefas, para facilitar a decantação e depuração do azeite.

Quando, nas páginas anteriores, apresentámos os diferentes tipos de tarefas, referimos diversos vocábulos relacionados com as impurezas que vêm com o azeite, tais como

 

balsa - 2

cabeças - 7

cabeços - 1

cabeiças - 1

cortiça - 1

laço - 1

laçareira - 1

Todos os termos acima listados estão semanticamente relacionados, na medida em que apresentam praticamente o mesmo sentido, embora com ligeiras diferenças.

Balsa, termo que apenas registámos no distrito de Coimbra, P. 261, e Ponte da Mata (freg. Sazes, conc. Penacova), designa, segundo se depreende da explicação dada pelos informadores, a película que separa a água do azeite, constituída por impurezas ou resultante, segundo cremos, das diferentes densidades dos líquidos, zona onde o mestre sente uma diferença no deslizar da vareta, o que lhe permite determinar a altura a que se encontra o azeite, o qual deve andar sempre acima do colo das tarefas.

Cabeças, cabeços e cabeiças, embora registados em diferentes localidades(34), são variantes fonéticas da mesma palavra e apresentam os sentidos de 'borras do azeite', 'impurezas do azeite'. Em todos os locais os vocábulos foram sempre empregues na sua forma do plural. Além dos sentidos já indicados, encontrámos também os de 'azeite misturado com aziaga' e 'último azeite que se colhe nas tarefas e que já traz água'. Informação mais completa foi fornecida por um informador da Quinta da Costa, P. 238, (conc. Oliveira do Hospital, dist. Coimbra). Diz-nos ele, ao falar das actividades do lagar:

«Temos aquela nata que sobrenada nas tarefas, em que a decantação era bastante lenta, porque não havia a operação de centrifugação. As cabeças eram aproveitadas e espremidas com as mãos, tirando-se delas algum azeite. (...) Elas surgiam na primeira e única decantação

O vocábulo cortiça surgiu-nos unicamente no trabalho de D. A. Tavares da Silva(35), que o define como «conjunto de fragmentos de polpa, amêndoa e algum azeite que na repisa do bagaço da azeitona com a água sobrenada F. Lapa».

Laço foi por nós registado no distrito de Aveiro, P. 120, quando o informador nos disse que «o azeite anda sempre no laço da água, da água quenti». Cremos tratar-se da película que se forma à superfície do líquido, nas tarefas ou talhas, produzida pela mistura da água com o azeite ou a zona de separação resultante de dois líquidos sobrepostos não miscíveis.

O vocábulo laçareira, da mesma família do anterior, foi registado no trabalho de M. Margarida F. Martins(36) como designando «os detritos e impurezas que se encontram à superfície do azeite».

Para o processo de separação do azeite das águas e impurezas, além dos vocábulos decantação e depuração, empregues ao longo do capítulo, encontrámos a palavra apartamento (dist. Bragança, P. 86) com o sentido de 'separação' e apartar, verbo registado por Guilherme Felgueiras(37), que nos diz tratar-se de «provincianismo trasmontano», designando a «operação que consiste em fazer a separação do azeite da almofeira ou água-ruça».

Relacionado com as actividades de separar o azeite das águas e ainda com a extracção das águas-ruças das tarefas, encontrámos vários vocábulos e expressões:

  águas abaixo - 1 sangra(38) - 4
  deitar água abaixo - 1 sangradeira - 3
  bareta, baretazinha, sangra­dêra - 1
  vara, vareta, varinha - 11 sangradoiro - 5
  gibardeira - 1 sangrador - 1
  picadeira - 1 sangradouro - 4
  pica-folha - 1 sangramento - 1
  picar o azeite - 2 sangrar - 25
  rolar o azeite - 1 sangria - 2
     

Esta listagem de 21 vocábulos e expressões corresponde a dois grupos semânticos: um, aplicado à operação de separação e extracção das águas-ruças das tarefas; o outro, aos instrumentos utilizados. Começaremos por analisar os vocábulos relacionados com a primeira operação.

Águas abaixo e deitar água abaixo são no fundo a mesma expressão. Foram registadas no lagar da Quinta da Portela, P. 285, dist. Coimbra. Enquanto a segunda designa a actividade, a primeira corresponde à ordem dada pelo mestre ao ajudante, mediante a qual este empurra a espicha da tarefa para deixar correr a água até que o mestre lhe dê ordem de tapar. Quando isto acontece, o ajudante larga a espicha ou bichaneira, a pressão do líquido empurra-a para fora e obstrui o orifício de saída.

Sangra, sangramento, sangrar e sangria são vocábulos também utilizados para designar o acto de sangrar as tarefas, isto é, a operação que referimos no parágrafo anterior. O vocábulo sangra já foi por nós analisado no cap. II. Sangramento foi registado no lagar de Ervedal, P. 236, dist. Coimbra. Sangria surge em dois relatórios do I.L.B. referentes a Paradela (conc. Penacova, dist. Coimbra) e Monte Real (conc. e dist. Leiria). Sangrar é o vocábulo com maior frequência de utilização e foi por nós registado em vários distritos do País(39) para designar a 'operação de tirar a sangra ou águas-ruças das tarefas, ficando apenas o azeite'.

Sangradeira, sangradêra, sangradoiro, sangrador e sangradouro são variantes fonéticas da mesma palavra registadas não só por nós, mas também em trabalhos anteriores, com ligeiras alterações de sentido, mas todas elas aplicadas ao local por onde se extraem as águas das tarefas. Sangradeira, com a variante fonética sangradêra registada num inquérito do I.L.B. referente a Casal da Serra (conc. Covilhã, dist. Castelo Branco), foi registada em 1906 por António Ladislau Piçarra(40), que nos diz que «(...) do fundo da tarefa nasce um tubo metálico ou de barro, que sobe ao cimo do mesmo pote e funciona como sifão, pelo qual se despeja a água-ruça, i. é., a água que escorre da prensa misturada com o azeite. Esse tubo denomina-se sangradeira e lança a água-ruça num cano que a conduz para fora do lagar». Maria Margarida F. Martins(41) apresenta também o vocábulo na expressão «porta da sangradeira», que define como o «portal que dá saída à água da levada Beira Alta», sentido que nunca encontrámos, quando visitámos diferentes lagares na região por ela mencionada. Sangradoiro, variante fonética de sangrador, por nós várias vezes referida nas páginas anteriores, foi registada nos distritos de Bragança, Coimbra, Guarda e Viseu(42). Sangrador, vocábulo a partir do qual terão surgido os restantes da mesma família, apenas foi por nós ouvido no lagar da Quinta da Romeira, P. 206 (conc. Celorico da Beira, dist. Guarda). Sangradouro, por nós ouvido em dois lagares, nos distritos de Coimbra e de Vila Real(43), foi registado por Guilherme Felgueiras(44) como tendo sido recolhido em Bragança e designando a «goteira por onde, nos antigos lagares de azeite, escorre da tarefa a almofeira ou água-ruça, líquido escuro, que é o resíduo do fabrico do azeite». Também Jaime Lopes Dias(45) apresenta o vocábulo, quando explica que «as espichas das tarefas são manobradas pelo sangradouro...».

Os vocábulos a seguir analisados e já anteriormente surgidos ao longo deste capítulo correspondem a instrumentos ou objectos utilizados durante a sangria e separação do azeite.

A vareta, bareta, baretazinha ou, como é conhecido em alguns lagares, varinha(46), são os diminutivos utilizados para uma pequena vara de marmeleiro ou outra árvore com a qual o mestre determina, enquanto está a sangrar as tarefas, a altura do azeite, a fim de poder mandar tapar o orifício de escoamento quando a coluna de azeite se encontra próxima do colo das tarefas. É importante referir que a vareta só é utilizada nos sistemas de tarefas simples, isto é, naquelas em que a decantação se processa numa tarefa única, na ausência do sistema de sifão que anteriormente apresentámos relativamente a alguns lagares. Embora nunca tenhamos encontrado nenhum exemplar, em alguns lagares antigos esta vareta era substituída por um medidor artesanal da altura do azeite, constituído por uma palha comprida, geralmente de trigo, com uma azeitona espetada na extremidade mais grossa. Esta palha tinha um comprimento ligeiramente superior na vertical ao que ia do colo à superfície da tarefa. Como a azeitona descia só até à zona em que a água se separa do azeite, permitia ao mestre determinar a altura da coluna de azeite dentro do recipiente superior da tarefa, não deixando que ele se aproximasse do colo.

Para o trabalho de determinar a altura do azeite na tarefa encontrámos em Souselas, P. 262, dist. Coimbra, a expressão rolar o azeite, que consistia em cortar o azeite traçando geralmente uma cruz com a vareta de madeira.

Registámos ainda a expressão picar o azeite(47) nos lagares de Ponte do Feixe, P. 34, a que fizemos já referência neste mesmo capítulo (vd. págs. 306-307) e Fundo de Vila, P. 57. A actividade de picar o azeite era feita, como referiu o mestre do lagar, utilizando uma varinha:

«...esta barinha é p'ra se picar o azeite, q'ando ele qu'está, que calhe d'estar um bocadito intoldado, a gente dá-le também assim um'as picadelinhas e ele bai assentando p'ra baixo p'ra sair depois liso p'r'àli.» (Fundo de Vila, P. 57, freg. Jasente, conc. Amarante, dist. Porto).

Vimos também, relativamente ao lagar de Ponte do Feixe, P. 34 (dist. Braga), que o mestre utilizava (vd. págs. 306-307) umas vassourinhas de picadeira ou gibardeira para ajudar a separar o azeite,  que correspondem, segundo  os dicionários da língua portuguesa,  ao vocábulo  pica-folha, ou seja, a um «arbusto de folhas pequenas e pontiagudas usado para picar o azeite, a fim de o descoalhar, também conhecido por azevinho e visqueira».

_________________________________

(32) – Registámos a expressão caldar o azeite no dist. de Coimbra, P. 288. Caldear foi por nós registado, aplicando-se ao azeite, nos distritos de Aveiro, P. 158, Guarda, P. 211, 227, Porto, P. 57, e Vila Real, P. 76, 78. Escaldar foi registado nos distritos de Aveiro, P. 121, Bragança, P. 90, Coimbra, P. 236, 262, 285, 298. Registámos escaldar o azeite nos distritos de Bragança, P. 103, Coimbra, P. 236, 262.

(33) – GUILHERME FELGUEIRAS, Terminologia agrícola. Linguagem dos campos, in: "Gazeta das Aldeias", Porto, 1933, ano 3º, nº 1764, págs. 24-25.

(34) – Registámos o vocábulo cabeças nos distritos de Bragança, P. 86, e ainda Pombal de Ansiães (conc. Carrazeda de Ansiães-I.L.B.) e Castelo da Vilariça (freg. Castedo, conc. Moncorvo), dist. Coimbra, P. 238, dist. Guarda, P. 206, 209, 212. O vocábulo cabeços foi registado nos distritos do Porto, em Casal (freg. Santa Marinha do Zêzere, conc. Baião-I.L.B.); Vila Real, P. 76, e ainda Valongo de Milhais (conc. Murça); Viseu, em Rebordinho (conc. Vouzela-I.L.B.). Cabeiças foi registado num relatório do I.L.B. referente a Boidobra, conc. Covilhã, dist. Castelo Branco.

(35)D. A. TAVARES DA SILVA, op. cit., pág. 150.

(36) – M. MARGARIDA F. MARTINS, op. cit., pág. 105.

(37)GUILHERME FELGUEIRAS, Terminologia agrícola. Linguagem dos campos, in: "Gazeta das Aldeias", Porto, 1939, nº 1930, pág. 663, 1ª col.

(38) – No sentido de 'água-ruça' registámos 7 vezes este vocábulo. Vd. pág. 36.

(39) – Locais onde foi registado o vocábulo sangrar: dist. Aveiro, P. 117, e ainda Famalicão (freg. Arcos, conc. Anadia-I.L.B.); Bragança, P. 86; Castelo Branco, em Casal da Serra (conc. Covilhã-I.L.B.) e Gavião (conc. Vila Velha do Ródão-I.L.B.); Guarda, P. 207, 211, e ainda Freixo de Numão (conc. Vila Nova de Foz Côa-I.L.B.); Coimbra, P. 236, 255, 256, 257, 262, 284, 285, 286, 294, 300, 302, e ainda Quinta do Rol (conc. Cantanhede), Vila Nova (conc. Coimbra) e Vila do Mato (conc. Tábua); Leiria, em Ferrarias (conc. Alvaiázere-I.L.C.); Porto, P. 51, e Cadeado (conc. Baião).

(40)ANTÓNIO LADISLAU PIÇARRA, op. cit., vol. II, pág. 630.

(41) M. MARGARIDA F. MARTINS, op. cit., pág. 120.

(42) – Locais onde registámos o vocábulo sangradoiro: dist. Bragan­ça, P. 86; Coimbra, P. 277; Guarda, P. 207, e ainda Matança (conc. Fornos de Algodres-I.L.B.); Viseu, em Moreira de Cima (conc. Nelas­I.L.B.).
43 –

(43)Locais onde foi registado o vocábulo sangradouro: dist. Bragança, Chacim (conc. Macedo de Cavaleiros-I.L.B.); Coimbra, P. 302; Guarda, Matança (conc. Fornos de Algodres-I.L.B.); Vila Real, P. 78.

(44) GUILHERME FELGUEIRAS, art. cit., Porto, 1937, nº 1883, pág. 683, 2ª col.

(45)JAIME LOPES DIAS, op. cit., vol. VI, pág. 188 (vd. citação anteriormente feita, pág. 319).

(46)Relação dos locais onde foram registados os vocábulos: vareta – dist. Coimbra, P. 256, 261, 300; bareta – dist. Coimbra, P. 255, 258, 294, 302; vara – dist. Coimbra, Vale de Açor (conc. Miranda do Corvo-I.L.B.); varinha – dist. Coimbra, P, 293, 303; baretazinha – dist. Coimbra, P. 255.

(47) – A expressão picar o azeite foi por nós registada nos distritos de Braga, P. 34, e Porto, P. 57.

 

 

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