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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

VII

ENSEIRAMENTO E PRENSAGEM

 

Apresentados os nomes pelos quais é conhecido o alguerbe ou sertã e indicados os diversos sentidos registados para essas palavras, importa agora saber como se procede para fazer o enseiramento.

 

 
  Figura 102: A massa é deitada nas seiras empilhadas no alguerbe (Mata, P. 297, freg. Vila Nova do Ceira, conc. Góis, dist. Coimbra).  

Colocada a primeira seira no alguerbe e despejada a massa no seu interior, o mestre espalha-a uniformemente com as mãos, de maneira a preencher toda a superfície do recipiente de fibra. Para designar o trabalho de despejar a massa no interior das seiras, que vemos documentado na figura 102, foi por nós registada a expressão brocar a massa. Ao conjunto de massa enseirada é dado o nome de madura, no distrito da Guarda, concelho de Pinhel(27).

Cheia a primeira seira, é colocada segunda e terceira, formando o conjunto o chamado enseiramento(28), moinho(29) ou prensada. O número de seiras, habitualmente de três, varia de lagar para lagar, podendo oscilar entre duas e sete.

Concluído o enchimento da seira cimeira (Coimbra, P. 255), usa-se em alguns lagares – embora raramente – tapar a boca da seira com outra vazia e já gasta pelo tempo. O mais normal, todavia, consiste em colocar sobre o conjunto ou pilha de seiras apenas uma prancha circular de madeira, com diâmetro um pouco maior que o das seiras, conhecida pelas designações de adufa, porta e trincho.

O primeiro termo, apresentado em 1933 por Guilherme Felgueiras(30) e por ele definido como «peça de madeira, movediça, usada nas prensas espremedoras dos lagares de vinho e de azeite, sobre a qual assentam os malhais», foi por nós registado especialmente na área de Coimbra, P. 253, 255, 256, 258, 261, 262, 286, 297, 300, 302, surgindo-nos ainda isoladamente nos distritos de Castelo Branco, concelho da Covilhã, Guarda e Vila Real, P. 78.

O segundo termo, recolhido em Izeda por Guilherme Felgueiras(31) e por ele apresentado na mesma revista com o sentido de «adufa, que assenta directamente sobre as seiras, nos lagares de azeite e sobre a qual se colocam os malhais e a trave da prensa», foi por nós registado numa ampla área, que abrange os distritos de Aveiro, P. 116, 117, 120, Braga, P. 28, 29, 31, 32, Guarda, P. 206, 207, Porto, P. 51, 52, 54a, 56, 57, e Vila Real, P. 76a.

O vocábulo trincho foi por nós registado apenas no distrito de Aveiro, P. 118.

Maria Margarida Furtado Martins(32) apresenta ainda o vocábulo tampa para designar a «peça de madeira com que se tapam as seiras na ocasião em que a massa da azeitona é espremida».

A função essencial da adufa ou porta é a de distribuir uniformemente por toda a superfície das seiras a pressão exercida pela vara.

 

 
  Figura 103: Por sobre a pilha de seiras é colocada uma adufa e alguns malhais (Mata, P. 297, freg. Vila Nova do Ceira, conc. Góis, dist. Coimbra).  

Para dar maior altura à coluna de seiras, são colocados sobre a adufa grossas rodelas, vigas ou barrotes curtos de madeira, documentados na figura 103, conhecidos habitualmente pela designação de malhais(33) ou ainda, embora mais raramente, por tabuões (Aveiro, P. 118) ou tacos (Aveiro, P. 120).

De maneira idêntica ao que se passa entre nós, em Espanha a massa é retirada do moinho com pás de madeira ou de ferro para dentro de cubos de metal, que são vertidos sobre as seiras. Estas, em número de catorze, são empilhadas com a boca para cima, constituindo o conjunto a chamada carga ou pie da prensa. A boca da última seira é coberta com outra vazia, sobre a qual assenta uma pesada tábua circular – a chamada compuerta –, que distribui uniformemente a pressão da vara(34).

Colocado o último malhal, o mestre ou um dos ajudantes enfia no ouvido ou buraco do fuso a chamada panca, torteiral ou tranca, vara comprida e cilíndrica de madeira, com a qual toca o fuso, obrigando a prensa a descer. E está iniciada a primeira prensagem, que se efectua sempre a frio e segundo as fases já descritas no capítulo anterior, quando tratámos do funcionamento da vara peninsular.

Terminado ao fim de certo tempo a primeira prensagem, a vara volta a ser erguida, a fim de se proceder ao chamado escaldão (Coimbra, P. 284), mais conhecido entre o povo por caldar (Aveiro, P. 162; Coimbra, P. 277, 280b, 283, 284, 286, 289b, 302; Guarda, P. 211; Leiria, P. 341a; Vila Real, P. 75), calda ou caldas (Aveiro, P. 117, 118; Braga, P. 28, 29; Bragança, P. 92; Coimbra, P. 261, 284, 300, 303; Guarda, P. 206; Porto, P. 51, 57; Vila Real, P. 76a), caldeação (Coimbra, P. 303), caldeamento (Coimbra, P. 238, 257; Guarda, P. 216), caldear (Aveiro, P. 120, 158; Braga, P. 34; Bragança, P. 86; Castelo Branco; Coimbra, P. 261, 297; Guarda, P. 207, 209, 211, 216, 227; Leiria P. 355; Porto, P. 52, 54a, 54b, 56, 57, 60; Vila Real, P. 78), dar as caldas (Braga, P. 32; Coimbra, P. 254, 256, 262, 284), escalda (Santarém, P. 334), escaldar (Aveiro, P. 121; Coimbra, P. 255, 294), escaldar a massa (Bragança, P. 86), escaldear (Coimbra, P. 262; Guarda, P. 207) e escalfiar (Aveiro, P. 118).

 

 
 

Figura 104: As caldas (ou escaldão) são dadas com água a ferver, retirada da caldeira com um cocho ou coco (Casal, P. 56, freg. Ansiães, conc. Amarante, dist. Porto).

 

Além dos termos apresentados e por nós recolhidos, quer através de inquéritos directos, quer através dos valiosos elementos do I.L.B., António Ladislau Piçarra(35), relativamente ao concelho de Serpa (distrito de Beja), apresenta-nos com o mesmo sentido os vocábulos desembagaçar, desmoiçar e migar; Maria Margarida Furtado Martins(36) regista ainda os termos descoalhar e remigar, que designam operações que consistem, para sermos mais rigorosos, em 'tornar líquida a massa da azeitona' e 'esboroar ou desfazer a massa'. No fundo, estão relacionados muito de perto com a operação de caldear ou caldar a massa.

Operação já descrita por Dalla Bella(37) e outros autores, o escaldão – para nos servirmos de um termo pertencente mais ao domínio técnico do que ao popular – é normalmente composto por duas caldas seguidas de duas prensagens, aplicando-se o termo calda à primeira operação de caldeamento e rescalda(38) à segunda. Em alguns lagares, embora mais raramente, é ainda efectuada uma terceira prensagem, ou seja, contando com a primeira, uma quarta prensagem. Esta, realizada a seco, é conhecida pelo nome de revolta seca. Sem dúvida extremamente rara, encontrámos a revolta seca apenas no lagar do Remungão, P. 261, no distrito de Coimbra, pouco tempo antes de ele ter sido transformado em fábrica de azeite; segundo nos explicou o dono, era efectuada somente em determinadas circunstâncias, quando se pretendia obter um maior enxugamento da massa.

No lagar de Assafarge, P. 284, no distrito de Coimbra, chamam à segunda calda quebra seca. A expressão é curiosa e dever-se-á provavelmente ao facto de na povoação visitada os homens com quem conversámos empregarem o verbo quebrar no sentido de 'acabar com'. Assim sendo, quebra seca indica-nos a operação que consiste, para empregarmos uma expressão corrente, em acabar com a secura da massa.

Quer a calda, quer a rescalda são efectuadas de maneira idêntica e que passamos a descrever.

Depois de a pilha de seiras ter sido apertada durante uma ou duas horas, é levantada a prensa de vara. As seiras são puxadas de azorro (Coimbra, P. 297), isto é, retiradas uma a uma pelo mestre e ajudante, que as colocam ao lado do círculo de enseiramento. Apenas é conservada no lugar a última, a que no lagar da Mata, P. 297, no distrito de Coimbra, dão o nome de fundeira.

As seiras são em seguida partidas (Guarda, P. 211) ou cobradas (Aveiro, P. 118), isto é, dobradas ao meio e muito bem remexidas, para destorroar o bagaço, uma vez que, no fim de cada prensada, a massa fica intijulada(39), isto é, dura como tijolo. Depois de solta, as abas da seira são levantadas com o auxílio de pequenos tornos de madeira com 15 a 20 centímetros de comprimento, que colocam no interior do recipiente em número de três ou quatro. A estes pequenos tornos são dados os nomes de cachorros (Bragança, P. 86; Porto, P. 51, 54a, 57), escantilhões (Aveiro, P. 116), frades (Aveiro, P. 118; Braga, P. 29; Coimbra, P. 256, 258, 261, 262, 297, 300; Guarda, P. 211; Porto, P. 51; Vila Real, P. 75, 76a), franqueletes (Guarda, P. 206), e moços (Guarda, P. 211; Porto, P. 52). Além destes vocábulos, Maria Margarida Furtado Martins(40) apresenta-nos ainda o termo sapo com idêntico sentido.

Aberta a boca da seira com a ajuda dos frades, o ajudante retira da caldeira água a ferver, que despeja no interior das seiras, tal como se documenta na figura 104. Entretanto o mestre, com um frade ou uma colher comprida de madeira, mexe muito bem a massa, até ficar transformada num caldo líquido e homogéneo. É a isto que se chama dar a calda ou caldas, operação idêntica à de rescalda e que é efectuada, como vimos, com o auxílio de dois objectos de grande utilidade.

O primeiro é um recipiente cilíndrico de folha de Flandres, munido de comprido cabo de madeira colocado obliquamente e que o pode ou não atravessar de um lado ao outro. Com dimensões muito variáveis, este objecto é conhecido por àgueiro (Coimbra, P. 294), cabaço (Guarda, P. 206), cace (Beja, conc. de Aljustrel, lugar de Jungeiros), caço (Vila Real, P. 70, 76a), cocho (Braga, P. 22, 23, 28, 29, 31, 32, 34; Castelo Branco, conc. da Covilhã, lugar de S. Jorge da Beira), coco [côco] (Aveiro, P. 116, 118; Porto, P. 51, 52, 54a, 56) copo (Porto, P. 57), garabano, grabano ou gravano (Bragança, P. 86, 92, 100, 103; Guarda, P. 197; Vila Real, P. 75).

Maria Margarida Furtado Martins(41) regista também os vocábulos panela com o sentido de «copo grande que serve para deitar água quente na massa ao ser caldeada» (Alentejo) e trolho, que define como «regador de forma especial, composto de uma vasilha, atravessado por um cabo comprido, usado para deitar água na massa».

O segundo objecto para efectuar o caldeamento da massa é uma colher comprida de madeira, com 60 a 80 centímetros de comprimento e com uma das extremidades espalmadas, fazendo lembrar as vulgares colheres de pau. Além do nome de colher, registado nos distritos de Aveiro, P. 118, 120, Braga, P. 29, Bragança, P. 86, 92, Coimbra, P. 255, 256, 258, 294, e Guarda, P. 211, encontrámos ainda a designação invulgar e única de meixão, no distrito do Porto, P. 54.

Efectuada a calda da primeira seira, mestre e ajudante vão-lhe colocando por cima as restantes e repetindo as mesmas operações. Caldada a cimeira, isto é, escaldada a seira que fica no cimo da pilha, são novamente colocados adufa e malhais e realizada segunda prensagem.

Concluídas as duas caldas habituais e três apertos, é dado por terminada a extracção do azeite, seguindo-se nova fase no fabrico do azeite.

O bagaço é retirado das seiras e colocado num monte, podendo ainda ser prensado num cincho. Poderá depois servir de combustível para a fornalha ou ser destinado a outros fins, a que não nos referiremos por estarem já fora do âmbito deste capítulo.

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(27) – Veja-se MARIA MARGARIDA FURTADO MARTINS, A oliveira (Estudo linguístico), Coimbra, 1945, parte III, cap. I, pág. 72.

(28)Sobre a distribuição geográfica desta palavra, veja-se o que se diz acerca do enseiramento, neste mesmo capítulo.

(29)Veja-se, no início do capítulo III, a distribuição geográfica dos sentidos da palavra moinho.

(30)GUILHERME FELGUEIRAS, Terminologia agrícola. Linguagem dos campos, in "Gazeta das Aldeias", Porto, 1933, Ano 38, nº 1785, pág. 361, 1ª col.

(31) – GUILHERME FELGUEIRAS, Terminologia agrícola. Linguagem dos campos, in "Gazeta das Aldeias", Porto, 1933, Ano 38, nº 1772, pág. 158, 2ª col.

(32)MARIA MARGARIDA FURTADO MARTINS, op. cit., pág. 121.

(33)Registámos o vocábulo malhal nos seguintes distritos: Aveiro, P. 116; Braga, P. 28; Castelo Branco, conc. da Covilhã; Coimbra, P. 256, 258, 261, 262, 286, 297, 302, 303; Guarda, P. 206, 207, 226; Porto, P. 51, 54a, 56, 57; Santarém, P. 334; Vila Real, P. 78.

(34)Veja-se ALBERT KLEMM, La cultura popular de la província de Ávila, in: "Anales del Instituto de Linguística", 1962, tomo VIII, pág. 136-137.

(35) – ANTÓNIO LADISLAU PIÇARRA, op. cit, pág. 632: «Após diversas compressões, quando as pastas já não vertem azeite, desmonta-se a pilha e numas partes despejam-nas no tendal, ao lado do alguergue, e ali se destorroa a massa com uma enxada; noutras partes a massa é destorroada dentro das próprias seiras. De uma forma ou de outra a pilha é sempre desarmada e tornada a armar, e quando se arma vai um lagareiro remexendo a massa encerrada em cada seira, regando-a com água a ferver. Chama-se a isto caldar a massa. A mesma operação toma ainda em Brinches o nome de desmoiçar, em Serpa desembagaçar, e em Pias migar.
       Depois da pilha estar novamente armada, derramam-se ainda sobre ela algumas panelas de água quente, e seguidamente executa-se a última compressão
(...)».

(36)MARIA MARGARIDA FURTADO MARTINS, op. cit., págs. 103 e 118.

(37)JOÃO ANTÓNIO DALLA BELLA, op. cit. cap. LVIII, pág. 51: «Feita a primeira espremedura, que gasta pouco tempo, se levanta a vara, e sobre as azeitonas meio espremidas se lança por toda a seira água fervendo, com a qual se mistura muito bem aquela massa, e carregando-a de novo com a pesada vara se continua a espremer até estar totalmente levantada da terra a pedra pregada ao parafuso».

(38)Registámos o termo rescalda nos seguintes distritos: Braga, P. 28, 32; Guarda, P. 217; Porto, P. 57; Vila Real, P. 75, 76a.

(39) – Expressão ouvida no distrito de Aveiro, P. 118.

(40) – MARIA MARGARIDA FURTADO MARTINS, op. cit., parte III, cap. I, pág. 75.

(41) – MARIA MARGARIDA FURTADO MARTINS, op. cit., págs. 144 e 123 respectivamente.

 

 

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