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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

IV

A MOAGEM

 

b) - Nos lagares hidráulicos     

No lagar de varas da Mata, P. 297, que vimos já possuir a particularidade invulgar de apresentar o moinho entre as duas varas (vejam-se as figuras 18 e 19), as sacas de azeitona são acumuladas numa sala acrescentada posteriormente ao edifício, sobre o chamado assentador.

 

 
  Figura 60: O mestre (à esquerda) e o ajudante (à direita) despejam a azeitona no moinho através do chamado botadoiro (Mata, P. 297, Vila Nova do Ceira, Góis, dist. Coimbra).  

Quando chega a altura de laborar, quer o mestre, quer o ajudante,  pegam em três a cinco sacas  e despejam-nas na base, através do botadoiro (ver a figura 60), conduta de madeira que comunica directamente com o moinho.

Sistema idêntico encontramo-lo no distrito de Bragança, no lagar da Ponte da Arranca, P. 100. Também aqui existe uma conduta de madeira, a que dão o nome de tremóia, que liga o moinho à casa das tulhas, e através da qual vazam as sacas. A casa das tulhas (H da figura 3), neste lagar, fica num plano mais elevado em relação à outra sala, com a qual comunica por uma porta com três ou quatro degraus.

Voltemos ao lagar da Mata. Depois que a base está cheia de azeitona, o ajudante puxa uma alavanca existente ao canto do lagar e que está ligada à caleira. Esta desliza para junto da parede, começando a água a cair sobre a roda e a encher-lhe os cubos.

Ao princípio, as galgas deslocam-se muito lentamente, com extrema dificuldade, como quem tem de escalar alta montanha. A custo, muito a custo, vencem a resistência oposta pelas azeitonas que, sob a enorme pressão, vão rebentando e fugindo para os lados, como que abrindo alas à passagem dos dois pesados cilindros.

Devido à enorme altura ocupada pela azeitona, as galgas vêem-se obrigadas a subir. Para isso o eixo horizontal está solto, podendo deslocar-se no sentido vertical dentro do espaço compreendido pelas ranhuras, existentes na caixa com que termina o eixo vertical.

À medida que a azeitona vai sendo esmagada pelas duas pedras assimétricas, que apanham toda a base do moinho, a velocidade aumenta. Ao fim de alguns minutos, rodam com certa velocidade, provocando um ruído surdo de pedra sobre pedra, acompanhado pelo esparrinhar sonoro da massa.

De vez em quando, vai o mestre dar uma olhadela pelo interior do moinho, iluminado por pequena candeia de azeite, colocada sobre o bordo, visível na fotografia da figura 19 . Agarra num bocado de massa, apalpa-a e fá-la escorregar por entre os dedos. Assim que verifica estar uniformemente moída e sem nenhum caroço, dá uma ordem ao ajudante. Este obedece prontamente e empurra a alavanca, obrigando-a a sumir-se pela parede.

Ouve-se a água cair sobre as pedras. As galgas perdem velocidade, dão ainda meia dúzia de voltas, imobilizam-se. E segue-se nova fase de trabalho.

O ajudante retira a massa com uma pá, despeja-a numa gamela, bacia redonda de lata, e leva-a ao mestre, que a despeja na bocarra aberta das seiras. E começa aqui a fase do enseiramento.

O que se passa neste lagar, passa-se praticamente em quase todos os outros movidos por água, com pequenas alterações.

No lagar do Remungão, a azeitona ficava amontoada num recipiente térreo, protegido por tábuas, colocado ao lado do moinho, enterrado no chão e forrado de aduelas. À medida que ia sendo moída, era deitada pelo ajudante no interior do moinho. Agora que o reconstruíram, tudo se modificou. De lagar hidráulico e de vara passou à categoria de moderno, não lhe faltando um bom moinho de ferro, uma termo-batedeira de tipo horizontal e duas poderosas prensas hidráulicas, acabadas de montar. A renovação foi de tal ordem que, nos primeiros dias, o velhote, a quem pertence o lagar, andava louco de alegria. Em pouco mais de uma semana havia extraído mais azeite do que durante uma série de anos pelo anterior sistema, com grande pesar dos donos de outros lagares dos arredores.

No lagar de Anterronde, P. 120, de que já temos falado por mais de uma vez, a azeitona é trazida para a azenha à medida que vai sendo feita.

Antes de a deitarem no baso do moinho, os ajudantes medem-na aos alqueires, numa medida de madeira com um formato parecido com as gamelas da massa. Ao contrário dos cereais, que são medidos com a ajuda da rasoira, a azeitona é deitada de cagulo, isto é, deitada até trasbordar.

O termo cagulo não é mais do que uma variante de cogulo, proveniente do latim CUCULLU–. Muito próximo do étimo latino está a forma recolhida em Chaves. Aqui ouvimos dizer coculo, em vez da forma cogulo, esta última resultante de uma evolução normal do latim para o português. Em vez da oclusiva surda inter-vocálica se ter sonorizado, como seria de esperar, conservou-se no vocábulo ouvido nesta região. De CUCULLU– a cagulo a evolução é fácil:  

LAT. CUCULLU –  >  cogulo  >  cagulo

No lagar de Vilhagre, P. 211, no distrito da Guarda, os ajudantes retiram a azeitona das tulhas ou despejam-na das sacas para umas gamelas de lata (veja-se a figura 61), nas quais a transportam para o moinho. Uma vez cheio, põem a roda de peso ou o motor a trabalhar – embora misto, ultimamente o lagar tem trabalhado exclusivamente por meio de motor diesel –, começando as duas galgas, muito irregulares  e  de formato  a  tender já  para o tronco-cónico, tal o seu desgaste, a esmagar a azeitona, até que esteja reduzida a massa, ao fim de duas horas.

 

 
  Figura 61: Gamelas de lata com que se transporta a azeitona para o pio (Vilhagre, P. 211, conc. Celorico da Beira, dist. Guarda).  

Em lagares mais modernos, como é o caso do da Ponte Nova, P. 209, no mesmo distrito, a azeitona é retirada das tulhas à pá e despejada num funil metálico, de feitio quadrangular, existente na mesma sala, ao lado da de moagem(15). O trabalho é feito por um catraio dos seus catorze anos. Despejada no funil, o chamado lavadouro (sic), a azeitona cai numa correia que a eleva até ao funil do moinho, que a espalha sobre o rasto das galgas, ficando esmagada.

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(15) – Este lagar apresenta duas salas para as tulhas, uma num primeiro andar, a outra no piso inferior, ao mesmo nível de toda a maquinaria.

 

 

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