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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

III

O moinho

 

b) - SISTEMAS DE TRANSMISSÃO E MOINHOS: Antes de estudarmos estes dois assuntos, de grande interesse etnográfico e técnico, convém desde já chamar a atenção para dois sentidos fundamentais que temos vindo a considerar relativamente à palavra moinho: um sentido lato e um sentido restrito.

Por sentido lato, que está inerente à expressão moinhos de roda, por exemplo, entende-se todo o conjunto da aparelhagem para moer a azeitona, desde o sistema de accionamento até ao moinho propriamente dito, passando pelos sistemas de transmissão.

Por sentido restrito, entendemos apenas aquela parte onde a azeitona é deitada, a fim de ser reduzida a pasta. Essa parte é composta, conforme o tipo de moinho, por um recipiente circular chamado pio ou vasa, por uma ou mais galgas, por um pião ou pastor e um eixo vertical simples de ferro ou uma árvore de madeira, a que está fixa uma dobadoira ou uma almanjarra. É neste segundo sentido que empregamos a palavra moinho em relação à alínea que vamos tratar.

De acordo com os elementos recolhidos nos lagares visitados, podemos considerar fundamentalmente dois sistemas de transmissão: por meio de eixos e de rodas dentadas de ferro, como é o caso dos lagares de Anterronde (P. 120), Mata (P. 297), Pereiro (P. 262) e Ponte Nova (P. 209); por meio de eixos e rodas dentadas de madeira, que se subdividem ainda em dois grupos, formados respectivamente por entrosga e dobadoira e por roquetes e pontaria

Esquematizando, temos:

         1º - Eixos e rodas dentadas de ferro: P. 120, 209, 262, 297.

 
1º - Eixos e rodas de madeira:







a) - entrosga e dobadoira:

P. 206, 207, 253, 258, 261, 300 e 303

 

b) - roquetes e pontaria: P. 28

 

Em Anterronde, o primeiro sistema de transmissão – segundo informações colhidas in loco, junto de um informador – compõe-se de duas rodas dentadas de ferro que engrenam uma na outra, tal como se mostra na figura 24. A roda superior B está fixa ao mesmo eixo da roda da água A. A roda inferior C transmite o movimento à roda D por meio da chamada linha de eixo CD. Na roda D engrena a roda E, que faz girar o eixo EF que, por sua vez, acciona as galgas G e G' que moem a azeitona.

A roda da água deste lagar fica dentro da própria sala de moagem, apenas protegida por uma parede feita de tábuas com dupla finalidade: impedir que a água, salpicando, molhe todo o recinto em volta, e servir de protecção aos homens que trabalham com o moinho, evitando que algum seja apanhado por descuido pelas engrenagens ou raios da roda. Para a pôr em movimento ou parar, existe uma alavanca de madeira ligada a uma espécie de comporta, que permite ou não que a água caia nos cubos.

No lagar do Pereiro (P. 262) e no da Mata (P. 297) o sistema de transmissão parece ser bastante mais simples, apresentando apenas uma linha de eixo comum à roda da água A e à roda B e um eixo vertical CD, no qual prende o eixo das galgas, como se documenta na figura 25.

Em tempos idos, o moinho do lagar de Pereiro (P. 262) ocupava uma situação própria dos lagares de vara, ou seja, encontrava-se num canto oposto à zona de enseiramento e prensagem, junto do portão de acesso. Era térreo, isto é, enterrado no chão, e forrado de aduelas. Como não era prático, procuraram modernizá-lo. E construíram um novo numa zona compreendida entre as tulhas e as varas.

Figura 26: Aspecto do moinho de Pereiro, P. 262,
                freg. Souselas, conc. e dist. de Coimbra.

Com uma base de pedra, que se distingue perfeitamente, e sobre a qual assentam as galgas, possui o actual moinho mais de um metro de altura e um recipiente de paredes completamente verticais, tal como se documenta nas figuras 25 e 26. As pedras, de eixos assimétricos, apresentam um dispositivo que as pode elevar ou baixar, conforme se pretenda a azeitona total ou parcialmente esmagada. Uma vez reduzida a pasta, baixam a alavanca, que acciona a raspadeira, e a azeitona sai pela abertura visível na fotografia da figura 26, caindo numa gamela de madeira.

Nos lagares de Anterronde e Ponte Nova, os moinhos são relativamente modernos, formados por um vaso metálico em forma de prato e duas galgas de grandes dimensões.

O moinho da Mata, de que apresentámos já um aspecto na figura 19, é muito mais simples que o de Pereiro. Construído também de pedra, não possui no eixo assimétrico de secção quadrangular, que segura as galgas, qualquer sistema mecânico de expulsão da massa. Esta tem de ser retirada com o auxílio de uma pá.

O segundo sistema de transmissão apresenta dois tipos diferentes, dos quais o primeiro é o mais representado. É este formado por uma roda vertical e uma horizontal, conhecidas respectivamente por entrosga e dobadoira.

 

 
  Figura 27: Reparação de uma entrosga de moinho de trigo, idêntica à dos lagares (Souselas, P. 262, conc. e dist. de Coimbra).  

A entrosga é uma roda vertical de madeira, de dimensões variáveis, presa ao mesmo eixo da roda da água e situada no interior do lagar. Assente sobre uma espécie de almofadas, as chamadas chumaceiras, designação unicamente registada no distrito da Guarda, P. 206, transmite o movimento da roda de fora a uma roda horizontal de madeira, por meio dos chamados dentes, tornos pequenos de madeira, perpendiculares ao plano das rodas. Ao contrário do que seria de esperar, são ainda hoje construídas para substituírem as que o tempo e o trabalho vão deteriorando. Para nosso espanto, tivemos oportunidade de assistir à reparação de uma em Souselas, P. 262, no concelho de Coimbra (ver figura 27). O nome por que é mais vulgarmente conhecida é entrosga (Castelo Branco, P. 310; Coimbra, P. 249, 253, 258, 262, 286; Guarda, P. 206, 207, 226), embora não seja o único; em Ameoso do Senhor, P. 300, no distrito de Coimbra, o informador deu-lhe o nome de rodete.

 

 
  Figura 28: Moinho de dobadoira (roda horizontal) e entrosga (roda vertical) com uma galga, em Ameoso do Senhor, Góis, Coimbra.  

A roda horizontal, conhecida normalmente por dobadoira/dobadoura (Coimbra, P. 249, 255, 258, 261, 262), mas também por peneira (Coimbra, P. 253; Guarda, P. 206, 207, 226), redoiça (Coimbra, P. 300) ou reduça (Coimbra, P. 302) e capela (Castelo Branco, P. 305), está fixa a um eixo vertical de madeira, conhecido pelo nome de árvore (Guarda, P. 206, 207). É a dobadoira que recebe o movimento da roda de fora através da entrosga, comunicando-o, por sua vez, às galgas, presas por um eixo horizontal à árvore do moinho. Na extremidade inferior da árvore existe um veio pequeno de ferro, que assenta numa pedra cuja função é semelhante à dos rubis dos relógios. A parte superior está firme a uma vara ou trave, que passa por cima do moinho, por meio de um encaixe visível na figura 28.

O moinho pode apresentar uma ou duas galgas – raramente três e quatro – e um recipiente de pedra ou de aduelas de madeira acima ou abaixo do nível do solo. A parte superior é geralmente de grande largura, estreitando à medida que se aproxima do fundo. Por isso o pio apresenta, em regra, a forma de um prato fundo, com os lado inclinados em forma de taça.

Observem-se as figuras 28  e  29.  A primeira mostra-nos um moinho com uma vasa ou pio de cimento e apenas uma galga. Neste caso, o pio – recipiente onde é deitada a azeitona – apresenta um bordo de grande largura e uma certa altura em relação ao nível do solo. A dobadoira, presa à árvore por meio de quatro braços, a que o informador chamou os braços da redoiça, é formado por arcos pequenos de madeira, ligados entre si. Para lhe dar maior segurança, duas tábuas oblíquas firmam as extremidades dos braços à parte superior da árvore. Ao fundo, distingue-se parte da entrosga, de pequena dimensão, cujos dentes engrenam nos da dobadoira.

 

 
 

Figura 29: Moinho de dobadoira (roda horizontal) e entrosga (roda vertical) com duas galgas e recipiente de moagem forrado de aduelas da Quinta da Romeira, Celorico da Beira, dist. da Guarda.

 

A figura 29 mostra-nos outro género de moinho. Ao contrário do anterior, apresenta um vaso de paredes quase verticais, forradas de aduelas de madeira, abaixo do nível do chão. Duas enormes galgas estão fixas à árvore, que é accionada por uma dobadoira ou peneira de dentes irregulares. A entrosga, firme pelo eixo à chumaceira, de que se vê parte, apresenta um diâmetro bastante grande. Os raios que a seguram ao eixo da roda de peso são duplos e com a forma de cruz.

Moinho interessante é o da Quinta do Rol (freguesia de Ançã, concelho de Cantanhede), no distrito de Coimbra.

Com três galgas de eixos assimétricos, estão fixas a um eixo soldado ao vértice de uma secção triangular de ferro, articulado num dos lados, a fim de as pedras poderem deslocar-se no sentido vertical, de acordo com a altura ocupada pela azeitona dentro da vasa. Presa à armação de ferro existe uma raspadeira, que desprende a massa que se agarra às paredes. O fundo é formado por lajes de pedra com a forma de gomos de laranja.

As galgas têm o eixo de ferro em que giram envolvido por uma bucha de madeira de figueira. Segundo a pessoa que tratava da manutenção de todas as peças do lagar, quando ele ainda trabalhava, as buchas têm de ser necessariamente de madeira  desta árvore, porque «doma-se muito bem à pedra», isto é, toma o feitio dela com grande facilidade. O facto de a madeira ser mole, ao contrário do que poderíamos julgar, faz com que não rache nem se desgaste facilmente. A lubrificação é feita naturalmente pelo azeite, durante a redução da azeitona a massa. Para impedir que as galgas saltem dos eixos, existem nas extremidades destes umas ranhuras, nas quais introduzem cavilhas achatadas de ferro chamadas segurelhas. A proteger as pedras do desgaste que poderiam sofrer pela fricção com as chavetas, durante o movimento, colocam de permeio uns discos delgados de ferro, conhecidos pelo nome de pratos.

 

Figuras 30 e 31: Aspecto do moinho do lagar de Pinhel, P. 28, freg. Outeiro, Cabeceiras de Basto, Braga. À direita, o desenho esquemático com os diferentes elementos do sistema de transmissão.

O sistema de roquetes e pontaria, encontrado em Pinhel, P. 28, no concelho de Cabeceiras de Basto, distrito de Braga, apresenta grandes semelhanças com o chamado moinho de rodízio, como veremos quando tratarmos deste outro tipo de moinho. As figuras 31, 32 e 33 esquematizam o sistema que vamos analisar.

Além da roda da água (ver figura 33 B), fixa a um eixo AD apoiado sobre três mancais de bronze ('peças cuja utilidade é servir de apoio ao eixo') e com uma roda menor D semelhante a uma entrosga, apresenta este sistema duas peças cilíndricas de madeira – os chamados roquetes (E e F) –, fixas a um eixo vertical. São elas que transmitem o movimento à roda horizontal G, fixa num eixo vertical de madeira, a que o informador chamou pela, e que faz girar as galgas dentro do pio.

Os roquetes (ver figuras 32, 36 e 37), construídos de madeira, são formados por duas placas circulares paralelas, entre as quais se fixam uns pequenos tornos verticais, a igual distância uns dos outros. O movimento do roquete é transmitido à roda D (figura 31) por meio desses pequenos tornos, entre os quais engrenam os dentes da roda D. Estes constituem a chamada pontaria, termos proveniente do facto de os dentes, ao contrário do que vimos em relação às dobadoiras e entrosgas, ficarem saídos para fora, no mesmo plano e na continuação da roda D. Feitos de madeira, apresentam a forma de uma pequena espátula, presa à roda horizontal por um cabo fino que a atravessa de um lado ao outro. Para que não saiam durante o movimento da roda, são presos por meio de pequenas cavilhas de madeira, enfiadas verticalmente num orifício existente na extremidade que fica voltada para o interior, tal como se pode ver na figura 31 E.

O vaso do moinho onde giram as galgas (ver figura 30) é formado por aduelas de madeira, fixas entre si por meio de um bordo largo, apoiado em seis colunas exteriores de madeira, e por um aro existente no fundo do vaso em toda a periferia. A base sobre a qual giram as duas galgas é formada por placas de pedra, de feitio semelhante ao que descrevemos a propósito do moinho da Quinta do Rol.

As galgas, de grandes dimensões e largura, giram à volta de um eixo horizontal de ferro, por sua vez fixo a um eixo vertical A (figura 31), que as faz movimentar. A servir de rolamentos, colocam nos eixos das galgas buchas de madeira. De cada lado das mós, discos metálicos evitam que as chavetas desgastem as pedras.

 

Figuras 32 e 33: Pormenor do moinho de Pinhel (P. 28, freg. Outeiro, Cabeceiras de Basto, Braga)
                               e esquema com os diferentes elementos constitutivos do sistema motriz, explicados no texto.

 

 

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