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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

II

Transporte e conservação da azeitona

 

De todas as terras visitadas, foi sem dúvida Celorico da Beira a que melhores momentos nos proporcionou. O frio que se fazia sentir, apesar dos belíssimos dias de sol daquele mês de Dezembro, não nos impediu de passar alguns dias completos em pleno campo, onde pudemos seguir a par e passo todas as actividades relacionadas com a colheita da azeitona.

Pela tardinha, quando o sol começava a esconder-se por detrás dos montes e o vento do fim do dia iniciava o seu percurso até terras distantes, todo o pessoal interrompia o trabalho. Num vasto descampado, estendiam-se os toldes, uns após os outros. Os sacos de azeitona suja eram despejados num monte. E com as mulheres a segurar nas extremidades do último toldo oposto ao vento, começavam os homens a atirar ao ar a azeitona, que ia cair longe, liberta das folhas. Terminada a erguida, escolhiam ainda alguma folha que tivesse ido agarrada. Depois de limpa e ensacada, iam-na juntando ao muro, que separava o olival da estrada.

Não faltava muito para escurecer, quando surgiu uma carrinha. Carregados todos os sacos, foi dado por concluído um dia de trabalho, que só na manhã seguinte se repetiria, para vir a acabar da mesma maneira.

Quando isto se passou, ainda nenhum lagar tinha aberto as suas portas. Por isso, a azeitona era levada para casa do dono, onde ficaria alguns dias até lhe ser extraído o dourado líquido.

No olival do Escorial, do lado oposto ao do Souto das Velhas, onde há pouco estivemos, os factos passaram-se de modo um pouco diferente. A azeitona era levada pelo caseiro, ao fim do dia. Para isso, lá ia o nosso informador todos os dias de tarde com o seu burrico buscar as sacas, a fim de serem guardadas na loja, em casa do dono.

Nem sempre os factos se passam como acabámos de descrever, relativamente a Celorico da Beira. Numa grande maioria de regiões, a azeitona é ainda levada por meio de processos primitivos, a que anda aliado um meio de transporte muito generalizado nas nossas aldeias – o carro puxado por uma junta de pachorrentos bois, que deixa uma nota estridente por onde passa, com o chiar intermitente ou contínuo da madeira dos eixos sob a madeira das chumaceiras.

Quando o lavrador não possui o seu próprio carro, cabe ao carreiro ir ao olival buscar o precioso fruto, que ele levará, ou directamente para o lagar, caso esteja já a trabalhar e tenha vez, ou para a casa do proprietário.

O carreiro é o homem que efectua o transporte da azeitona, como já se deve ter compreendido. O termo está relacionado com carro, de onde deriva, e é comum a várias regiões do País, embora não seja o único com a mesma significação. Surge nos distritos de Bragança (P. 100) e Porto (P. 54), aparecendo altamente documentado nos distritos de Coimbra (P. 239, 245, 258, 262, 278, 288, 291, 294) e Leiria (P. 338, 339, 340, 345, 346, 348, 351, 361).

 

 
 

Figura 7: Aspecto da descarga dos sacos de azeitona (Anterronde, Santa Eulália, conc. de Arouca, dist. de Aveiro).

 

Outros nomes aplicados ao homem que transporta a azeitona são: ensacador, termo relacionado com saca e com um matiz particular (Coimbra, P. 238, 245, e Guarda, P. 206), e carreteiro.

Ao efectuar o trabalho, os ensacadores têm o cuidado prévio – pelo menos no concelho de Oliveira do Hospital, P. 238 – de marcar os pequenos lotes pertencentes a cada produtor, que serão depois identificados através de guias. Quando a quantidade de sacos de um produtor trazida pelo ensacador dá para fazer um moinho, isto é, para encher o recipiente do moinho, quantidade que varia entre 400 e 450 quilos, na região indicada faz-se a moagem e prensagem independentemente dos restantes. Se um proprietário apenas tem duas ou três sacas, então a sua azeitona será junta com a de outros, até fazer a quantidade certa para o moinho.

Nem sempre a azeitona é transportada pelos carros dentro de sacas. Em algumas regiões vai para casa do dono em poceiros, cestos de verga, dos quais falaremos mais adiante.

Em Moinhos, P. 281, no concelho de Miranda do Corvo, é levada às costas pelos homens, ao passo que na Deveza, freguesia de Sobrado, concelho de Castelo de Paiva, é levada à cabeça pelas mulheres. Se em sacas ou em cestos, não nos é possível dizer, uma vez que o I. L. C. (Inquérito Linguístico por Correspondência) não fornece qualquer indicação.

Do ponto de vista da frequência, segundo se infere das respostas recebidas por meio do I. L. C., o meio de transporte mais utilizado é o carro de bois e a camioneta. O tractor também já é apontado, mas em número muito restrito(1).

– Como e onde é conservada a azeitona, quando em casa do proprietário?

Antes de entrarmos na resposta à pergunta, vejamos o que nos diz Scheuermeier(2), relativamente à Itália. Neste país, as azeitonas apanhadas demasiado cedo ficam entulhadas durante algum tempo, a fim de amadurecerem. Na Itália Central, despejam-nas geralmente num compartimento sobre o chão, onde ficam em repouso dez a vinte dias. Como o chão é de tijolo, dizem, em certas zonas, que «le olive s'immattótano». No sul da Itália, em muitas terras, as azeitonas são conservadas em local próprio do lagar, dentro de uma caixa vertical alta, feita de tijolos ou, mais raramente, numa cova ou cesto  cilíndrico e alto, feito de esteiras.

Em Portugal, quando a azeitona é apanhada ainda um pouco verde ou antes de o lagar ter aberto, vai directamente para casa do lavrador, onde é guardada e conservada segundo processos os mais variáveis, como variáveis são também os lugares onde a metem.

Em Montemor-o-Velho, no lugar de Cabeça Alta, P. 266, e em Alvaiázere, P. 339, no distrito de Leiria, é guardada em celeiros, dentro de pias, latões ou potes.

No concelho de Castelo de Paiva, distrito de Aveiro, os recipientes utilizados são variadíssimos: dentro do lagar de vinho, coberta de água (Sá, P. 167), em salas ou eiras, ao ar livre (Deveza, freg. de Sobrado), em pipas (Paradela, P. 165), em gigos (Vila Verde, P. 166). Neste mesmo concelho usam ainda dornas (Paradela, P. 165), que vamos também encontrar nos concelhos de Alvaiázere e Leiria (P. 339 e 363), respectivamente.

No distrito de Coimbra, o meio mais generalizado de conservar a azeitona é dentro de poceiros, não só em casa do proprietário, mas também no lagar, como veremos em breve.

Sem dúvida que o local mais apropriado é dentro de tulhas. A azeitona é misturada com sal e, em, algumas regiões, pisada com os pés, segundo explicou um dos nossos informadores. Felizmente que este condenável costume é pouco frequente. Normalmente é-lhe apenas adicionado o sal, o que tende também a desaparecer. Conforme se depreende das palavras que iremos reproduzir, ouvidas da boca de um informador, no distrito da Guarda, o sal torna o azeite menos gostoso:

«... Há quem use isso [pôr sal nas azeitonas]. Mas eu não lho ponho antes d'ir pró lagar. Mas sabe que esse sal e botam-lhe? Mas fica sempre..., não fica o azeite tão gostoso, tão fino, perde metade..., ganha um bocado d'acidez. É por càza disso que nós não butamos nada, não quero lá nada n'àzeitona. Ántezia(3) quero mexer duas, três ou quatro ou cinco vezes de dois em dois dias ou três em três dias, mexê-la na tulha, dá-le um tombo dum lado pró outro, pr'àzeitona não tomar aquela quintura, porque fica o azeite milhor.  É muito milhor o azeite do que com sal e!»

No Brasil, segundo informação recebida da região de Uruguaiana, através de um exemplar do I. L. C., a azeitona é levada pelo administrador do olival para casas arejadas ou galpões, passando daí para tanques. Depois de vendida, é levada como matéria prima para indústrias localizadas noutros municípios do estado, donde mais tarde sairá para consumo. Ao contrário de Portugal, a azeitona não se destina ao fabrico do azeite.

Foi anteriormente dito que a azeitona, uma vez apanhada, podia ir primeiro para casa do dono, ou directamente para o lagar. Neste último caso, quando não é o próprio dono que a transporta, há um homem que efectua esse serviço por conta do lagar. Esse ou esses homens, conhecidos também por ensacadores e carreiros, vão de propósito a casa do dono buscar-lhe a azeitona, logo que tenha uma carrada (P. 289), ou trazem-lha directamente do olival para o lagar, onde fica à espera de vez ou é logo feita. Efectuado todo o entulho da azeitona ou carrego, o carreteiro (Covilhã) recebe um litro de azeite por cada moedura. A este pagamento é dado o nome de jeira, em Celorico da Beira, P. 209.

 

 
 

Figura 8: Aspecto da descarga dos sacos de azeitona, em Valbom dos Figos, conc. de Mirandela, dist. de Bragança.

 

Nos lugares mais atrasados, o transporte é feito com carros de bois, meio que parece ainda muito corrente. Observem-se, como exemplo, as figuras 7 e 8. Na primeira, obtida em Anterronde (P. 120), no concelho de Arouca, vemos que o carro penetra dentro do lagar, através da porta principal, de largas dimensões para esse efeito. A azeitona não é metida em tulhas, que não existem. Fica amontoada dentro das sacas, pelo que só a trazem à medida que vai podendo ser feita.

Alguns lagares possuem um amplo pátio, onde o carro pode entrar para melhor ser descarregada.

Na figura 8, registada em Valbom dos Figos, P. 98, no concelho de Mirandela, o produto da colheita é transportado pelo carro que a gravura documenta, ou por um tractor pertencente à mesma casa. Como o lagar, que é bastante moderno, não possui acesso fácil para as tulhas, as sacas têm de ser passadas através de uma janela.

Se atentarmos bem na figura 8, veremos que os animais que puxam o carro têm, à frente dos olhos, uma tiras de couro que pendem sobre o focinho. Segundo a explicação que o carreiro deu – um dos que vemos a descarregar o carro – as tiras servem para os animais enxotarem as moscas, abanando para isso o focinho. Assim, além do efeito decorativo, apresenta uma função utilitária. Entre as hastes e apanhando a parte superior do cachaço, colocam habitualmente umas almofadas de couro, que protegem o animal, evitando que o jugo o fira. São as chamadas molidas ou molhelhas, que iremos encontrar quando tratarmos dos moinhos de tracção animal.

 

 
 

Figura 9: Aspecto da descarga da azeitona, na Quinta da Portela, freg. de Santo António dos Olivais, em Coimbra.

 

Em Coimbra, no lagar da Quinta da Portela, P. 285b, a azeitona é transportada directamente do olival para o lagar por meio de um tipo especial de carro (figura 9).  Quando chega a altura de efectuar o transporte, colocam sobre os bordos quatro taipais de madeira, formando uma caixa de grande capacidade. Sempre que a enchem, dirigem-se para o lagar. Uma vez dentro, abrem um postigo de correr, existente na retaguarda, e a azeitona cai no chamado carrocel do amor, no qual é transportada para o moinho. Para que não fique nada dentro do carro, salta um homem para o interior e, com uma pá, empurra toda a azeitona para a abertura. A operação de carga e descarga vai-se repetindo tantas vezes quantas as necessárias, até que tudo tenha sido trazido do olival.

Na Federação dos Grémios da Lavoura do Nordeste Trasmontano, que serve toda a zona do Cachão e ainda parte de Mirandela, Vila Flor e Carrazeda de Ansiães, o transporte é feito por meio de camionetas. Chegadas ao lagar, encostam às tulhas, como a figura 10 bem documenta, e despejam o conteúdo das sacas.

 

 
 

Figura 10: Federação dos Grémios da Lavoura do Nordeste Trasmontano: descarga da azeitona nas tulhas (Cachão, Mirandela).

 

Vimos já que nem sempre a azeitona é guardada em tulhas, quando entra no lagar. Nem todos as possuem. Por essa razão, vai sendo trazida à medida que a vão moendo. Noutros casos, fica dentro das sacas em que veio, amontoadas a um canto ou numa sala própria, sobre o chamado assentador (P. 297) ou tendal (P. 73). O assentador ou tendal não é mais do que uma espécie de mesa comprida, formada por pranchas de madeira colocadas lado a lado, sobre a qual assentam as sacas.

Não é raro encontrarem-se lagares com tulhas onde, apesar destas existirem, a sua função é nula ou quase nula. Se repararmos bem na figura 11, veremos que as tulhas estão praticamente devolutas, à excepção da primeira, à esquerda. Em contrapartida, grande parte da chamada casa das tulhas encontra-se repleta de sacas, que se amontoam umas sobre as outras. Casos destes são frequentes.

Na região de Coimbra, embora existindo tulhas em muitos lagares, a azeitona é conservada dentro dos cestos – os chamados poceiros – em que foi transportada. Efectivamente, o poceiro, que poderemos considerar como um tipo de cesto exclusivo desta região, ao lado do chamado seremil ou cesto de maquia, este último com uma maior difusão, é dos elementos mais característicos que encontramos. A sua área é bastante restrita, estendendo-se até Leiria, onde é menos frequente. Difere pela forma e construção dos gigos usados no norte, também com idêntica aplicação. Comparem-se os cestos apresentados, quer na figura 12, quer na figura 13, que nos mostram os citados poceiros, com os que observamos na figura 14.
 

 
  Figura 11: Aspecto da chamada «casa das tulhas». Ponte da Arranca, Vinhais, Bragança.  

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(1) – De qualquer modo, não nos podemos esquecer que os dados aqui relatados se reportam a uma época passada, aos finais da década de 1960, altura em que realizámos os diversos tipos de inquéritos: directos e por correspondência. Quase em finais do segundo milénio, além de muitos dos nossos olivais ficarem ao abandono, o tractor substitui já os métodos tradicionais em muitos lugares.

(2) – Paul SCHEUERMEIER, Bauernwerk in Italien der italienischen und rätoromanischen Schweiz, 1943, pág. 183.

(3) – Leia-se colocando o acento tónico na sílaba inicial da palavra e como proparoxítona.

 

 

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