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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

I

O lagar

 

NOMES DO LAGAR

É o azeite, também conhecido pelas expressões óleo d'azeitona (distr. Beja), sumo d'oliva, P. 202, óleo de oliveira, p. 113, e óleo d'olípio (distr. Évora), um dos óleos mais utilizados em Portugal. A sua extracção, e não fabrico como incorrectamente se diz, é feita em lugares próprios, genericamente designados por lagares de azeite ou, muito simplesmente, lagares. Embora seja este termo comum a todo o país, não é o único dado à casa onde o azeite é extraído.

Nos distritos de Castelo Branco, P. 313, e Guarda, P. 197, surge-nos o termo atafona(1) com uma significação mais restrita do que lagar. Efectivamente, refere-se ao lagar antigo, movido pela força de bovinos. O termo está registado em vários dicionários, que nos dão sentidos um pouco diferentes.

Segundo António de Morais Silva(2), atafona é um «engenho ou máquina de moer grão, posta em movimento à mão, ou por bestas», equivalendo a moinho.

Para Augusto Moreno(3), atafona é um «moinho manual ou movido por cavalgaduras», equivalendo também a azenha.

A este respeito, informação mais completa é-nos dada por Frei Domingos Vieira(4), que nos descreve os elementos  de que se compõe a atafona.  Embora referindo-se ao moinho de trigo, será vantajoso transcrever parte do que se diz neste dicionário, visto apresentar elevado número de peças semelhantes às que iremos encontrar nos lagares de azeite:

«(Do árabe atahuna; do verbo tahana, moer). Moinho de mão ou movido por uma besta. Consta este engenho de uma trave atravessada em que está pregada uma porca, que tem um ferrão com uma viga que anda à roda, a que se chama pião. A almanjarra, que é uma espécie de viga torta, apertada por um pau, a que chamam arrojadura, com um torno no cabo, e com o rabo da própria almanjarra que serve de outro torno, faz andar a pedra ou mó, a qual está entre tábuas largas, que chamam emparamentos, assentados em dois dormentes, que são dois paus; e nos emparamentos tem mão um barrote, a que chamam mesa do engenho. Para a pedra moer, tem um encaixe com um pau largo e comprido, chamado segurelha; levanta-se e abaixa-se a pedra com um pau chamado alevadouro, e o carrete, que consta de seis fuselos, que são uns pauzinhos redondos e direitos, anda por meio de um ferro comprido em baixo, a que se chama veio, e o pau em que anda o veio chama-se taco. A moega tem a boca larga para receber o trigo, que pouco a pouco cai na calha (...)».

Da mesma família de atafona são os termos atafoneira, para indicar «a (pessoa ?) que mói na atafona», e atafoneiro, que se aplica ao que está empregado em uma atafona, que dirige a moagem e faz a maquiação. O facto de nunca  os termos ouvido faz-nos crer que estes dois termos perderam completamente a vitalidade.

Nos distritos de Aveiro (P. 116, 117, 118, 122, 164, 166, 167), Bragança (P. 86), Porto (P. 51, 53, 54, 56), Vila Real (P. 73, 82, 83) e Viseu (P. 169, 171, 173), surge-nos o termo azenha, que se aplica sobretudo a moinhos tocados a água, mas também aos que são puxados por animais. Segundo a noção que grande número de sujeitos falantes tem em relação a azenha, esta é uma casa bastante antiga, por oposição aos modernos lagares de azeite. Uma noção inversa à apontada surge-nos no concelho de Amarante, P. 56, onde o mais antigo é designado por engenho.

Dissemos que o termo azenha se aplica sobretudo a moinhos tocados a água, mas também aos que são puxados por animais. Esta é uma das noções existentes actualmente. Segundo o já citado dicionário de Frei Domingos Vieira, p. 632, 1ª e 2ª col., não foi a única existente. Diz-nos o A., depois de haver apontado como étimo da palavra o árabe assanha, que a azenha é uma «espécie de moinho movido por uma corrente de água, que lhe cai perpendicularmente sobre a roda». E apresenta-a como sinónimo de moinho, acrescentando: «a azenha é como o moinho, movida por água, com a diferença que aquela mói com roda, e este com rodízio; na azenha a roda está fora da água que lhe cai em cima; o moinho é nas margens de rio e a azenha anda com qualquer riacho. Hoje a palavra moinho tem um sentido vastíssimo, e azenha está cada vez mais restrita».

Esta última afirmação condiz com o que se passa em nossos dias. Consultando o mapa nº 2, verificamos que o termo azenha se circunscreve a uma área relativamente pequena. Com efeito, encontramo-lo apenas nos distritos de Aveiro, Porto, Viseu, Vila Real e Bragança, em zonas muito próximas umas das outras, quase sempre a distância relativamente pequena da bacia do Douro. Exceptua-se o distrito de Vila Real, onde o encontramos até mesmo perto de Chaves, junto à fronteira.

O termo engenho, por vezes pronunciado ingenho, é corrente nos distritos de Aveiro (P. 164, 165, 166, 167), Braga (P. 22, 23, 31, 32, 33, 34), Porto (P. 56, 57, 58, 60) e surge-nos isoladamente no distrito de Coimbra (P. 256).

É esta uma daquelas palavras que poderão ser apontadas como exemplo das grandes alterações semânticas que sofrem muitos vocábulos dentro da nossa língua(5). Designando inicialmente o aparelho para moer a azeitona, acepção ainda hoje com bastante vitalidade em muitas regiões do país, pelo menos a parte Norte, o seu valor semântico alargou-se consideravelmente, passando a referir-se a todo o edifício. Exemplos da sua primitiva acepção puderam ainda ser registados nos distritos do Porto, P. 58, 67, Coimbra, P. 256, e Leiria, P. 353, 360. É o que se depreende do seguinte fragmento, extraído de uma conversa com um mestre de lagar: «...se por acaso a gente não encontra caroço, está pronto. Bois fora, parou o ingenho, parou esta construção...».

Sentido idêntico a este já o encontrámos, quando vimos a transcrição de Frei Domingos Vieira, relativamente a atafona.

Engenho aplica-se também ao moinho de água onde o linho é moído. É por este motivo que, em alguns casos, o povo emprega a expressão ingenho d'azeiti, como pôde ser ouvido no concelho de Amarante, P. 58, 60, para o distinguir dos restantes.

Curiosamente, são designados por engenheiros ou ingenheiros os indivíduos que trabalham nos lagares, originando episódios curiosos e quase anedóticos, como oportunamente veremos. Este emprego da palavra engenheiro pode ser encontrado nos distritos de Braga (P. 32, 33) e Porto (P. 56, 57).

Designação que, hoje em dia, começa a ter um emprego cada vez mais frequente, quer não só entre a camada popular, como também já entre as classes elevadas da sociedade, é a de fábrica de azeite, para o local onde o precioso e dourado óleo é extraído. Facto de interesse a registar é o de nos surgir não só no nosso país, distritos de Braga (P. 28, 29), Bragança (P. 100), Porto (P. 56) e Coimbra, mas também em Espanha, ao lado de molino e molino d'aceite. Veja-se o que diz Tomás Buesa Oliver(6):

«Durante mi último viaje – enero de 1952 –, vi como la arcaica maquinaria de la mayoría de los molinos habia sido sustituída por otra más moderna. De esta forma, el modesto y antiguo molino aceitero se había transformado en Fábrica de Aceite

Tomás Buesa emprega a expressão «fábrica de aceite» na mesma acepção que se verifica em Portugal, isto é, na de lagar moderno apetrechado com maquinaria do nosso tempo.

No distrito de Coimbra, no lugar da Alegria, freguesia de Góis, concelho de Góis, encontramos mesmo a expressão FÁBRICA DE AZEITE escrita nas paredes de um lagar. Os dizeres estão em letras de tal modo grandes, que, quem vai na estrada da Lousã para Pampilhosa da Serra, infalivelmente terá que ver tal inscrição ao aproximar-se da localidade.

Moinho, à semelhança do que se passa em Espanha, pode aplicar-se também ao lagar de azeite. Todavia, o seu verdadeiro significado reporta-se ao aparelho de moer a azeitona. Mediante um alargamento do seu campo semântico, passou a designar a quantidade de azeitona que o moinho pode laborar de cada vez, que varia de acordo com a sua capacidade, e o conjunto de seiras ou capachos dispostos uns em cima dos outros para a prensagem.

A expressão lagar de vara, de uso tão frequente, aplica-se unicamente àquele tipo de lagar onde as prensas são enormes troncos de árvore, actuando segundo o princípio de uma alavanca inter-resistente.

O período de tempo compreendido entre a abertura e o encerramento do lagar é designado por laboração, distrito de Vila Real (P. 78), lagaragem, distrito de Braga (P. 29), e safra, distrito de Coimbra (P. 242, 257), que também se emprega para indicar a produção de azeitona e azeite de um ano.

À quantidade de óleo produzido é dado o nome de funda, distritos de Bragança (P. 32) e Coimbra (P. 245, 262, 285). Deste modo, é usado o verbo fundir, que significa 'produzir azeite', e foi registado no distrito de Coimbra (P. 256, 262, 285, 303).

A actividade que consiste em produzir azeite é indicada pelo nome de feitoria, registado nos distritos de Guarda (P. 206) e Vila Real (P. 69).

Segundo Tavares da Silva(7), existe no Alentejo o termo mastuga para designar a «moenda da azeitona; o trabalho do lagar do azeite».

A funda, isto é, a produção do azeite, varia de acordo com determinados factores. Na Quinta do Esporão, P. 245, freguesia de Midões, concelho de Tábua, foi-nos dada a seguinte explicação, que passamos a transcrever:

«Num òlival virado ò sol, a funda dá mais azeite; e, por exemplo, num òlival que não está ao sol, que é sombrio, já dá menos, ou que seja regadio, também dá menos». E mais adiante: «A funda é, por exemplo, por cem quilos dá x, mas uma dá mais ou menos.»

Segundo outro informador, na Vila do Mato (P. 245), na mesma freguesia e concelho, a azeitona «miúda dá mais funda d'azeite que a graúda (...). A funda é dar mais litros consoante os quilos.»

Daqui se conclui, portanto, que a maior ou menor produção de azeite dependerá de vários factores, tais como: situação do olival, características do terreno, tamanho e qualidade da azeitona, etc.

A afirmação de que o azeite se faz em lagares não é totalmente rigorosa. Primeiro, porque o azeite não é feito, mas sim extraído; segundo, porque há processos caseiros de o extrair, como veremos em capítulo próprio.

Embora o verbo fazer não deva ser empregue relativamente à produção de azeite, o seu uso está de tal modo generalizado e enraizado que dificilmente se ouvirá dizer «extrair ou extracção de azeite», em vez de expressões como «fabricar azeite», «fazer azeite» ou «fabrico do azeite". Por isso, aqui mesmo se encontrará o emprego frequente de expressões como estas últimas. 

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(1) O termo atafona foi registado por ALICE PEREIRA BRANCO, Covilhã. Contribuição para o estudo da linguagem, etnografia e folclore do concelho. Dissertação de licenciatura (inédita). Coimbra, 1966, pp. 95-97.

(2) ANTÓNIO DE MORAIS SILVA, Grande dicionário da língua portuguesa. 10ª ed., vol. II, p. 171, 1ª col.

(3) AUGUSTO MORENO, Dicionário complementar da língua portuguesa. 1948, 5ª ed., p. 169.

(4) FREI DOMINGOS VIEIRA, Dicionário português ou tesouro da língua portuguesa. Porto, 1871, vol. I, p. 632, 1ª e 2ª col.

(5) Veja-se o mapa com a distribuição geográfica dos nomes aplicados ao lagar. Não incluído aqui.

(6) TOMÁS BUESA OLIVER, Terminología del olivo y del aceite en el alto aragonés de Ayerbe. In: "Miscelánea filológica dedicada a Mons. A. Griera". Barcelona, 1955, tomo I, p. 59.

(7) D. A. TAVARES DA SILVA, Esboço dum vocabulário agrícola regional. Lisboa, 1944, p. 307.

 

 

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