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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

Introdução: a Oliveira

 

Inicialmente de tipo silvestre, a oliveira teria passado a produzir fruto depois de convenientemente cultivada. É de salientar o facto de, ainda agora, em muitos países da Ásia, Europa e Norte de África, ser possível encontrá-la num estado selvagem. Neste aspecto, o nosso país não constitui excepção, sendo vários os nomes por que é conhecida: azevim, jambujo, zambujo, etc.

Com uma origem bastante obscura, têm-se formulado à sua volta as mais diversas opiniões: segundo uns, teria surgido pela primeira vez no continente europeu; segundo outros, no continente africano. Cremos, no entanto, que a maior parte dos botânicos é de opinião que, à semelhança do que ocorreu com a figueira, a que anda frequentemente ligada na tradição popular portuguesa(1), a oliveira será proveniente do sul da Ásia, donde terá passado para outras regiões, designadamente a toda uma vasta zona do Mediterrâneo. Os seus produtos, nomeadamente o azeite, são de há longa data conhecidos dos povos semíticos, arménios, egípcios e, sobretudo, dos da Palestina. A pouco e pouco, a sua importância foi aumentando, acabando por se espalhar por toda a Europa.

Deixando de parte o problema das origens da árvore de Minerva, cujo estudo compete essencialmente ao historiador, foquemos a nossa atenção sobre a importância do azeite na nossa civilização, mais rigorosamente na nossa comunidade.

Embora a legislação portuguesa tenha já considerado como alimentares os óleos de bolota, de gérmen de milho, de grainha de uva, de semente de tomate e de girassol e de óleo de amendoim e de algodão, e estes sejam de elevado uso em vários países europeus, a verdade é que a Península, e sobretudo Portugal, são dos maiores consumidores de azeite. Apesar de, hoje em dia, serem já adoptados numerosos tipos de óleo, fruto em parte da elevada publicidade por tão influente meio de comunicação como é a televisão, a verdade é que a cozinha tradicional portuguesa não dispensa ainda o dourado óleo de Minerva, base primordial de tanta e tão requintada iguaria.

Ao contrário do que sucede, por exemplo, em França, onde a dona de casa sente uma natural repugnância pelo azeite, como por mais de uma vez tivemos oportunidade de constatar, a gente portuguesa, de modo muito especial a das nossas aldeias, sente (ou sentia) igual repugnância por todo e qualquer óleo que não seja o azeite. E dizem muitas pessoas com quem falámos, por esse Portugal fora, que o azeite, para ser bom, para ser realmente gostoso, não há-de ser inteiramente virgem; a sua excessiva pureza torna-o insípido e desagradável ao paladar. Para que ele seja realmente bom e ao gosto da nossa gente, há-de ter uma ligeira percentagem de acidez, pois só assim a comida consegue adquirir-lhe o paladar. E talvez não deixem de ter uma certa razão.

No meio citadino, onde os diversos óleos vêm adquirindo um mercado cada vez maior, entrando cada vez mais nas nossas casas, nem por isso o azeite perdeu por completo a sua importância. Acaso haverá algum português que o dispense para temperar o tradicional bacalhau com batatas, na consoada do Natal?

Nem a consoada seria consoada, nem o bacalhau com batatas seria bacalhau com batatas, se não fosse regado com bastante e bom azeite.

Não é, pois, de admirar que, num país tão pequeno como é o nosso, se consumam, anualmente, cerca de 90 milhões de litros de azeite, quantidade para a qual é frequentemente insuficiente a nossa produção, como foi o caso, por exemplo, da campanha de 1969/70, segundo as indicações fornecidas pelo “Boletim da Junta Nacional do Azeite”(2).

Sendo o nosso País tão grande consumidor de azeite, não é também de admirar que, nos capítulos que vão seguir-se, procuremos saber como ele é (ou era) tradicionalmente feito em Portugal.

 
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(1) Em Portugal, a oliveira e a figueira encontram-se frequentemente ligadas na tradição popular, especialmente no que respeita a certas crenças. Uma e outra árvore surgem-nos, não raras vezes, em certas composições de cunho popular, recitadas por pessoas da nossa terra em alturas de tormenta, quer como forma preventiva contra a trovoada, quer para afastá-la para bem longe, sempre que esta faça sentir as suas nefastas consequências. Em muitos casos, as duas árvores são apresentadas simultaneamente numa mesma composição, o que nos revela o valor que lhes é atribuído. Como exemplo, veja-se o texto que passamos a transcrever, recolhido em Casal dos Foitos, no conc. de Pombal, dist. de Leiria, num inquérito do ILB em 1960:

 

«Santa Brábara s'alebantou,

Suas santas mãos labou

E o seu manto prantou;

Nossa Sinhora incontrou:

– P'ra donde bais, Santa Brábara?

– Bou ‘spalhar a trabuada,

[que] Sobre nós anda armada.

– Tão ‘spalha p'ra bem longi,

P'ra dondi nã haja nem era nem bera,

Nem pé de figuêra,

Nem raminho d'olibêra,

Nem galo que cante,

Nem galinha que cacareje,

Nem coisa que de Deus seje.»

 

(2) “Boletim da Junta Nacional do Azeite”, Lisboa, Janeiro-Junho de 1970, ano XXV, nº 70, pp. 118-120.

 

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