A figura
de Goethe vai pouco a pouco impondo-se à de Schiller, à medida que a
obra de MANN evolui. Os trabalhos sobre Goethe culminam com a publicação
em 1939 da "Carlota em Weimar", em que a imagem do "Outro" da"Hora
Difícil" aparece, aliás, com certa dose de ironia. O tema da tetralogia
de "José e os seus irmãos" é o alargamento de um episódio bíblico –
ideia de Goethe. A imitatio de Goethe também não é difícil de
perseguir nas sugestões do título de "Doutor Fausto"...
Verdade é
que o "Ensaio sobre Schiller" data de 1955, que é o 150º aniversário da
morte do "patético" e o próprio ano da morte do "irónico". Mas trata-se
de uma homenagem ao poeta que THOMAS MANN ama desde o princípio da
adolescência, em que o lia durante as próprias refeições, como ele nos
conta, e cujo "Don Carlos" tanto do seu agrado era, que surgiu no "Tonio
Kröger" como exemplo das leituras preferidas do jovem artista.
Em 1930,
quando da publicação do "Esboço da minha vida" era já Goethe o seu
"patrono". A evolução do doentio (o romântico) para o
/
8 / saudável (o
clássico) – nos termos do Poeta do "Fausto" –, não se deixa pois de
fazer, sem que no entanto se esqueça a ponta inferior(?) da "antipodischen
Freundschaft"
(1). A "união mística" de MANN com Goethe torna-se pouco a
pouco num facto.
THOMAS
MANN nasceu no dia 6 de Junho de 1875, ao meio dia; assim o diz
parcialmente no "Esboço..." – em muito a sua fragmentária "Dichtung und
Wahrheit" que, segundo nos parece, ele se achou no quase dever de
escrever, depois de, em 1929, lhe ser atribuído o Prémio Nobel da
Literatura – para informação do público ledor, que sempre gosta de estar
informado da parte anedótica da vida do "seu autor". Também THOMAS MANN
nasceu bem fadado por uma "glückliche Konstellation"...
O pai era
de Lubeque, filho de naturais de Lubeque, e foi dele que herdou o
espírito conservador, a estatura e "isto, de encarar a sério a vida"
(2); foi indubitavelmente da mãe, jovem de sangue luso-germano-creoulo,
que lhe veio, como a Goethe, a natureza alegre e o gosto de contar
histórias – "Liederliche". É da máxima importância esta dupla herança,
que fica a representar simbolicamente – o poeta não é aquele cuja vida é
simbólica? – a união do Norte e do Sul.
Não
nasceu na casa dos antepassados – o agora célebre
/
9 / Buddenbrook-Haus
–, mas numa vivenda adquirida já pelo pai.
As
relações com Heinrich, seu irmão quatro anos mais velho, nunca foram
excelentes. "Admiradora" e "espectadora" das representações dadas no
teatro de fantoches e das imitações do pequeno Thomas, foi a mais velha
das duas irmãs que, como Klaus (o primogénito de Mann), se veio a
suicidar. Como a pequena irmã para Goethe, foi esta a pessoa da família
com quem Mann mais conviveu na infância e a quem comunicou algumas das
suas "ideias".
Em
Travemünde passava as férias grandes. Foi o mar que fez fermentar nele o
espírito irónico e o génio da épica e o levou a procurar sempre, segundo
o seu próprio testemunho e o das filhas Erika e Monika, habitações nas
proximidades do elemento aquoso – quanto isto lhe recordaria Nietzsche,
Wagner e "o ambiente em que nascera! – tanto na Alemanha, como na Suíça
ou na América. Interessaram-lhe só e sempre as "paisagens
intelectuais"(3); nem os monumentos, nem nada que não fosse o mar (pelo
menos a água). O mar aparece em quase todos os seus livros
e
determinou que Mann, durante toda a sua vida, se sentisse um "Veneziano
do Norte". (4) "Das Meer ist keine landschaft, es ist das Erlebnis der
Ewigkeit, des Nichts und das Todes, ein metaphysischer Traum"
(5). Tonio
Kröger não perde de vista o mar na Bucht dinamarquesa. A poesia
do espírito Holger, da sessão espiritista do final da "Montanha Mágica"
é uma poesia ao mar; e ao mar é já
/
10 / também aquele poema
apenas iniciado, do "Tonio Kröger". Importante para aqui é que Thomas
Mann equipara a Épica ao Mar, com o que de certo modo fundamenta o
pendor do seu espírito.
O
espírito apolíneo da Épica, distante e irónico, tem a sua preferência
sobre o dramático e o lírico. As duas únicas excepções são "Fiorenza",
uma peça aliás "dramatisch – undramatisch", que só se aceita como obra
literária ("para ler") e o "cântico da Criancinha", série de hexâmetros
que, numa festa familiar, serviram para comemorar um nascimento.
"Ich bin
einzeln, ich sehe zu", diz-se ainda nas "Observações..."
(7). A
juventude de MANN, que leituras filosóficas pessimistas tornaram
bastante amarga, deixa-se condensar nesta frase. A Zaungastliteratur
de "Tristão" e "Tonio Kröger" fornece os ingredientes para uma futura
carreira épica.
Muito
novo ainda, o pai morrera-lhe. Desfeita a firma – quanto isto não
custaria à Tony dos "Buddenbrooks"! – parte no Outono de 1893 com
a mãe para Munique. Aqui se emprega Thomas, por intermédio de um amigo
da família, numa companhia de seguros – onde se mantém apenas por
condescendência dos patrões e de onde se despede... antes que o pusessem
fora, como confessa.
Em 1894
publica na revista "Gesellschaft" a narrativa Gefallen, que não
foi aproveitada pelo Autor para a colecção das obras completas
/
11 / (A edição Fischer, de
1958, inclui, no entanto, o conto). O assunto gira em redor da frase "Wenn
eine Frau hente aus Liebe fällt, so fällt sie morgen um Geld"
(8), e não
tem ligação com os temas posteriormente tratados. Foi grande o êxito do
conto – ("Gesellschaft" já publicara anteriormente a poesia "Zweimaliger
Abschied", aparecida primeiro no "Frühlingssturn" jornal de alguns
escolares de Lubeque, sob a autoria de um tal Paul Thomas).
"Como bom
alemão" também THOMAS MANN (em companhia de Heinrich) fez uma viagem à
Itália. Tal é o tributo que, pelo menos uma vez na vida, o Norte paga ao
Sul. (Esta "tradição" vem já do tempo de Goethe, que exclamava, ao pisar
a Itália: "Es ist mir, als ob ich hier geboren und erzogen wäre und nun
von einer Grönlandfahrt, von einem Walfischfang zurückkäme!", cit. in F.
Martini, Deutsche Literaturgeschichte, p. 238; em "Mozart auf der
Reise nach Prag", Mörike elogia a Itália na boca do compositor; "das
Land, wo die Zitronen blühn" aparece repetidas vezes como pano de fundo
em THOMAS MANN, e é também na Arcádia que surgem os clássicos "Sonnenkinder"
da visão de Castorp – Zauberberg, Schnee.). A Itália do Renascimento e
das belezas naturais atrai o nórdico de hoje, como atraiu o de ontem. A
própria Milão (reparar: Mai + land em alemão!), quase às portas
da Alemanha, convida o turista.
Mas
THOMAS MANN não se deixou atrair pela "bellezza". A Itália
/
12 / não o cativa. A novela
"Mário e o Hipnotizador", que é uma vivência italiana, foi escrita numa
praia da Prússia, (Mas os "Buddenbrook", passados no Norte, foram
iniciados na Itália, em Palestina, onde mais tarde Leverkühn irá pactuar
com o Diabo; e já em Roma prepara o volume de contos, que tira o titulo
de um deles: "Tristão".)
De
regresso a Munique, depois de habitar algum tempo com a mãe, vai viver
sozinho para a Boèhemewohnung retratada no conto "O
guarda-vestidos" (Der Kleiderschrank). É então que se emprega como
redactor, por empenho de um conhecido e amigo de Lubeque, no jornal
humorístico "Simplicissimus". Aí trabalha, talvez durante um ano,
publicando no jornal, com grande aceitação, três dos seus contos: "A
vontade de ser feliz" (Der Wille zum Glück), "O caminho para o
cemitério" (Der Weg zum Friedhof) e "Hora difícil" (Schwere Stunde).
Não foi
necessária a mímica de um Felix Krull, para que Thomas ficasse
dispensado do serviço militar: bastou uma pequena doença e a influência
de um médico amigo da família. Durante esta altura, e como ele conta, do
hospital militar, onde tinha recolhido, pois que na tropa só se
encontrava por "erro psicológico" dos médicos militares, escreve ao
editor Fischer. Este achava necessário reduzir os "Buddenbrooks".
(Precisamente o contrário, aconteceu a outro primeiro romance: "The
Professor", de Charlotte Brontë. De começo, o editor recusou o livro
em um só volume, por ser costume da época os
/
13 / romances em dois
volumes. – Cf. W. Kayser, "...Obra Literária", trad. de Paulo Quintela,
1958, vol. l, pp. 273-274). THOMAS MANN não autorizou o corte e, nos
fins de 1900, já com 1901 impresso na lombada, saíram os dois volumes
dos "Buddenbrooks". Com 26 anos publica o seu primeiro romance –
o único pensado como tal desde o início
(9) – de que, no primeiro ano de
publicação, se venderam mil exemplares e, cinquenta anos depois, mais de
um milhão. Nem MANN, pela certa, nem nós, como Nietzsche, gostamos de
estatísticas. Mas, evidentemente, o alto número de exemplares desde logo
vendido mostrava a aceitação do público. Dos críticos, porém, nenhum a
não ser Samuel Lublinski, de Berlim, incentiva o jovem autor.
Vêm
depois viagens ao estrangeiro e louvores na imprensa não alemã. Era a
fama. Momentos de tão grande exaltação só os teve o Autor, como relata
no “Esboço…”, quando das festas do 50.º aniversário, na altura em que
lhe foi atribuído o Prémio Nobel e, acrescentamos nós, quando das
manifestações festivas do 80.º aniversário, o que, aliás, lhe apressou a
morte.
Antes de
prosseguirmos, proponhamos uma
divisão em períodos da obra de THOMAS MANN
– o que não pode ser evidentemente seguro; mas é útil e até fácil num
Autor em que a “simetria" da vida e a diferenciação entre cada um dos
períodos evolutivos é bastante nítida. Iremos apresentando alguns passos
capitais da vida de MANN, paralelos à
/
14 / publicação das obras.
Primeiro período
(da juventude) – 1897-1914 – ("Heilig leidvolle Wirren drängender
Jugendzeit!") (10). É o período da influência de Nietzsche – Schopenhauer – Wagner – das Dreigestirn. Aqui cabem as “histórias
melancólicas de ser jovem" e o romantismo inicial. A ideia nietzschiana
da Decadência atormenta e influencia o Autor seriamente. E, assim como
Nietzsche é o crítico, Mann é o escritor da Decadência. Ele também
assiste a essa decadência na própria família, anteriormente radicada com
firmeza na sociedade comercial hanseática. Principalmente por via das
obras deste período, MANN ficará como "Chromist und Erläuterer der
Décadence".(11) O acaso leva-o a leituras do pessimismo schopenhauriano.
Thomas Buddenbrook também lê Schopenhauer: é que ele não pode já
resistir por mais tempo ao verme da Decadência que corrói a família e
lhe abre, pouco a pouco, o caminho da Arte. Wagner está
estreitamente
ligado ao íntimo de Mann. O "ambiente marítimo", aquela "noche escura"
(12) que o levara a Schopenhauer, e de certo modo também a Nietzsche, o
vago, o indeciso, o amorfo atraem-no para a música de Wagner.
Dos três
bicos do Dreigestirn é indubitavelmente Nietzsche que de maior
importância vai ser para o futuro. Já na velhice, MANN o relembra num
ensaio e num romance.
/ 15 /
Este
primeiro período estende-se da publicação em 1897 da colectânea de
contos, intitulada do nome de um deles, "O pequeno senhor Friedemann",
publicada em Berlim pela casa Fischer, até cerca de 1914 – data do
início da I Guerra Mundial e da publicação do ensaio político “Frederico
e a Grande Coligação" (Coligação da França, Áustria e Rússia contra a
Prússia) e do começo da série de ensaios polémicos que, precisamente no
ano do armistício, aparecem editados em volume, sob o nome de
"Observações de um Apolítico".
O segundo período
(da maturação) – 1918-1930 – em que se publica a "Montanha Mágica"
está compreendido entre o fim da I Guerra e a publicação em 1930 do
"Esboço...".
Em 1922,
em que o Rikola Verlag de Viena publica o primeiro fragmento do
Felix Krull, morre-lhe a mãe, como Thomas nos diz, com o grande
desgosto de ter assistido ao suicídio de uma filha, mas com a íntima
satisfação de viver o reconhecimento do valor dos dois filhos.
O cume da
carreira de Thomas Mann é atingido neste período, quando em 1924 edita a
"Montanha Mágica". Nota-se que, na sua obra posterior, ele
procura manter, mas não consegue, o nível atingido. “Mário e o
Hipnotizador", publicado no mesmo ano do "Esboço...", é quase
/ 16 /
só um episódio de férias; mas no fundo mostra já a reacção de MANN
contra o fascismo vitorioso.
Data de 1933 – o início do terceiro período
(da velhice: 1932 -1955) e da sua saída da Alemanha, por
incompatibilidades políticas. O começo do tratamento do tema bíblico de
"Jacob e os seus filhos" ou antes, de "José e os seus irmãos" – data
desta altura.
Com a
idade de 58 anos, Thomas Mann não era positivamente um velho. Porventura
nunca o foi, apesar do "ar de avô" que se nota nos últimos discursos.
Mas a este período chamamos o da velhice, que, no sentido em que
se assiste a uma descida "da outra vertente da "Montanha Mágica", nos
parece pertinente.
O
primeiro volume da história de José é ainda publicado na Alemanha.
"O jovem
José" aparece em 1934 e "José no Egipto" em 1936. 1938 é o ano da sua
partida para a América, saindo da Suíça, a que regressará mais tarde. O
quarto volume da tetralogia "José, o Alimentador" (1943), já
totalmente escrito na Califórnia, segue-se a uma "Correspondência com
Bona" (1937), que o excluíra de "doutor honoris causa, à "Carlota
em Weimar" (1939) e às "Cabeças Trocadas” (1940). As
/
17 / publicações
subsequentes, que compreendem um período que chega a 1955, o ano da
morte, são as seguintes:
"A Lei"
(1945), que se desenrola no enquadramento da tetralogia bíblica, o "Doutor
Fausto" (1947), um livro sobre que a crítica tem escrito o pior e o
melhor, a "Génese do romance do «Doutor Fausto»" (1949.),
considerado por alguns superior à "obra-mãe", “O Eleito" (1951),
"A Mulher Frustrada" (1952) e "As Confissões de Felix Krull,
cavalheiro de indústria" – publicadas ainda incompletas, em 1954. De
1955 é o
"Ensaio sobre Schiller", a que já nos referimos, e que é,
geralmente tomado como um primor da ensaística manniana.
A
Nachlese, publicada já em 1956 com o "copyright" da esposa de MANN,
é uma colecção de escritos de 1951 a 1955 (inclusivamente o Ensaio sobre
Schiller) e parte do espólio espalhado por várias publicações, isto é,
uma Nachlese propriamente dita.
Tem-se
observado neste período um certo pedantismo estilístico e um certo gosto
por “Fremdwörtern" – o que tem irritado os puristas da linguagem, e que
só o tempo dirá se se fixam na língua e são aclamados como "poder
inventivo", semelhante ao de Lutero e Goethe.
Alguns
heróis deste último período são apresentados "indirectamente" ao leitor;
tal são os casos de Leverkühn e do papa Gregório, cujas histórias são
narradas respectivamente por Zeitblom e pelo monge irlandês. Outras
"máscara" do Autor é Felix Krull, que escreve as
/
18 / suas memórias; ele
usa, como é de esperar, uma "linguagem de vigarista". Mas já não são de
esperar de um vigarista certas descrições que evidentemente ultrapassam
essa mentalidade.
O cap.
VII da "Carlota em Weimar" é um claro exemplo da capacidade de
MANN para a imitação linguística, capacidade e interesse que já vêm dos
"Buddenbrooks": os cabecilhas do motim falam ao senador em
platt e o segundo marido de Tony, Alois, com cujo nome se trai logo
uma origem bávara, fala dialecto cerrado. O interesse pela observação
filológica e a Mondlicht - Genauigkeit das designações bíblicas,
a variedade que põe o Autor num estado de pseudo-perplexidade e o faz
oscilar entre Gosen, Kosen, Kesem, Gosem e Goschem
(13), é uma das
características linguísticas mais salientes da tetralogia.
Depois de termos tentado a divisão em
períodos, ocupar-nos-emos das obras de THOMAS MANN que temos por mais
significativas, incluindo-as nos períodos propostos.
Trataremos exclusivamente da parte
novelística.
a) – Primeiro período:
- "O pequeno senhor Friedemann” - a importância desta colectânea
de contos, que recebe o nome de um deles (e data, como já foi dito, de
1897), está em que ela apresenta um tipo de protagonista recorrente
neste período.
/ 19 /
O senhor
Friedemann está marcado fisicamente desde a infância por uma deformação.
A chegada à cidade onde ele vive – Lubeque, naturalmente! – da esposa de
um oficial do exército vem perturbar a paz fictícia escolhida por
Friedemann e a novela termina pateticamente com o suicídio do
protagonista, no regato do jardim que Frau von Rinnlingen (tal se
chamava a esposa do militar!) escolhera para levar a cabo a sua sádica
crueldade.
Em "O
Palhaço" (Der Bajazzo) , outro conto desta publicação, o Autor revê
o seu problema pessoal e faz soar pela primeira vez o "Liederliche"
materno e a seriedade paterna, sentidos como casos próprios e "Wiederkehr"
do caso de Goethe. A consciência pesa-lhe e os ralhos do pai confirmam o
pouco em que se tem, apesar da benévola e indiferente atitude da mãe. "Tobias
Mindernickel", uma curta narrativa, é a história de um solitário,
eternamente apupado pela rapaziada, a quem a morte de um cão, Esaú, que
tem como único companheiro, deixa de, novo só no mundo. E outra vez a
tragédia do homem abandonado ao seu isolamento.
A
primeira obra de vulto é o romance "Buddenbrooks"que deu ao jovem
de 26 anos uma auréola invejável. THOMAS MANN nunca esqueceu que ele lhe
conferiu a honra de fazer figurar o seu autor e como seu autor
/
20 / numa publicação de
Munique, idêntica ao "Whos who?". Foi o único romance
pensado desde o
princípio como romance. (A "Carlota" iria ser só um pequeno
romance...) (14). Também foi a única obra de fôlego não interrompida por
laboração ensaística. (O ensaio "Bilse e eu”, que de mais perto se lhe
seguiu, é publicado em 1906; nele se defende o Autor da acusação que lhe
é feita por caricaturar os burgueses de Lubeque.)
Os "Buddenbrooks"
foram iniciados em Itália e terminados em Munique; a distância mais
fazia sentir a MANN o ambiente natal, produzindo aquela "seelische
Vertiefung" necessária para a criação. (Estava afinal a fazer o
contrário do que iria fazer, mais tarde, com “Mário e o Hipnotizador",
como dissemos).
O romance
trata da decadência de uma velha família da burguesia comercial
hanseática. (subtítulo: "Decadência de uma família"). O Autor conta
afinal a história da sua família e de novo refere o seu caso pessoal. A
decadência que se opera na Lubeque comercial e que THOMAS MANN vive na
própria carne é uma força criadora mas, no tronco carcomido da velha
árvore, florescem as flores novas da Arte.
O velho
Johann Buddenbrook é ainda, por demais, "negociante". O filho e herdeiro
anuncia já uma religiosidade que o casamento ainda mais aprofunda. A
mulher, com efeito, vai deixando-se invadir por um
ambiente pietista e põe cada vez mais a sua consciência
nas mãos dos
/ 21 /
pastores evangélicos, um dos quais vem a casar-se com a mais apagada das
filhas – Klara. O ambiente doentio que se vai apoderando da família toma
por completo Christian; e até o próprio Tom, novo gerente da firma, que
durante bastante tempo lhe resiste, acaba por se absorver em
Schopenhauer e por ter uma morte repentina. Um filho do matrimónio com a
holandesa Gerda Arnoldsen – que trouxe consigo o "espírito corrosivo da
música de Wagner"! – é um antecessor de Tonio Kröger e morre de tifo,
com quinze anos de idade. A acumulação do fermento da Arte, que se foi
fazendo nas últimas gerações dos Buddenbrooks, irrompe abruptamente no
pequeno Hanno, apaixonado da música e da poesia. Só Tony, irmã de Tom,
de Christian e de Klara, resiste aparentemente à derrocada. Representa
ironicamente o amor ao superficial da tradição e defende, com veemência,
os seus direitos ancestrais e a "integridade da firma". Ela mesma, no
entanto, é arrastada pelo aluvião, como já o anunciam os dois casamentos
falhados. Só ela fica dos Buddenbrooks parece que para os chorar. No fim
do romance, são suas estas palavras: "Tom, Vater, Grossvater und die
anderen alIe!
Wo sind sie hin? Man sieht sie nicht mehr. Ach, es ist so
hart und traurig!”
(15).
Em 1903, publica THOMAS MANN uma
colectânea de seis narrativas com o título de "Tristão". Nas duas
principais, MANN trata do problema do artista – o seu próprio problema.
Na novela "Tristão",o escritor
/
22 /
(Detlev
Spinell) exprime o seu ódio à vida, como se vê no final em que foge da
encarnação desta – o filho do negociante Klöterjahn, cuja esposa,
Gabriele, a música "degradante" de Wagner faz cair num “pseudo-adultério”.
(Já aqui se anuncia em parte o amor incestuoso de Siegmund e Sieglind do
“Sangue dos Wälsungen”.)
A
encarnação da vida (e o ódio que lhe é votado) aparece na mesma altura
no conto "O Caminho para o cemitério" (Der Weg zum Friedhof) e de
uma maneira até talvez demasiado explícita: o jovem que, montado numa
bicicleta, perturba o solitário caminho de Lobgott Piepsam, “ein elender
und verlorener Mensch", é mesmo nomeado "das Leben". O conto “Desilusão"
("Enttäuschung") patenteia logo no título o que é.
O conto
“Os Famintos" (Die Hungernden) antecede o "Tonio Kröger", de que é o
embrião. Tonio não odeia a vida, inveja-a e deseja entrar nela. Mas esta
é já a atitude de Detlef (o próprio nome, que é uma variante ortográfica
de Detlev, sublinha logo uma origem nórdica...), a posição filosófica e
vital do primeiro Hanno, que continuou a viver. "Kein Künstler sein,
sondern ein Mensch!" é a aspiração de Detlef. Já Tonio Kröger é positivo
no seu amor à vida ("ich liebe das Leben!"), no seu desejo de participar
do mundo da "blonden, lustigen Inge" e do rival amado (Hans Hansen), que
lia livros sobre cavalos e nem sequer conhecia o "Don Carlos"! A vida
desejada é a dos “Blauängigen", pois a literatura, que ele cultiva, essa
"ist über
/ 23 /
haupt kein Beruf, sondern ein Fluch”.
"Tonio
Kröger" – MANN nunca se cansou de o repetir, – ficou sempre a sua obra
preferida. Não se respira nesta novela uma atmosfera de morte tão
carregada como nos "Buddenbrooks", e há já uma, ainda que ténue,
fé na vida. "Tonio Kröger", que foi elaborado ao mesmo tempo que o
primeiro romance, embora publicado depois, apareceu pela primeira vez em
1903 na Neuen Deutschen Rundschau e foi acolhido
entusiasticamente pela crítica berlinense. É o mais lírico escrito por
THOMAS MANN, como ele disse, uma "Prosa-Ballade; die freilich ohne
Buddenbrooks schlech bestünde", und die so reech ein Lied war, gespielt
auf em selbst gebauten Instrumente des grossen Romans”
(16). O estudante
de Gotinga também o reconheceu. A praia de Aalsgaard, perto de Helsingör
– o castelo de Hamlet! – e as vivências de uma viagem de férias de
Munique à Dinamarca forneceram o assunto.
Tânia,
tal é seu nome "estranho" herdado de um irmão da mãe, é filho do cônsul
Kröger, negociante de cereais na cidade hanseática do Báltico. Mau
aluno, troca o tempo do estudo pelo que dedica à poesia. O seu amor vai
para o fontenário, a velha nogueira do jardim e as ondas do Báltico. Seu
companheiro estimado é Hans Hansen, que em tudo, nos exercícios físicos
e no interesse pelo hipismo, se lhe opõe. A
saudável
mas estúpida Inge é o seu grande amor da infância. Evita
/
24 / Magdalena Vermehren,
"que está sempre a cair durante as danças"; é ela que gosta dele, mas
também em nada pertence ao mundo dos "Blauäugigen”, pois até na tez do
rosto se parece com Tonio – e por isso é rejeitada.
Tonio
torna-se escritor de nomeada, mas o renome alcançado e a devassidão a
que se entrega não conseguem apagar as recordações da infância. Um dia
resolve sair de Munique, onde vive agora, não para a Itália (também MANN
constituirá nisto uma excepção entre os nórdicos…), mas para a
Dinamarca, que tantas semelhanças tem com a sua cidade. Tonio dá parte
desta resolução à pintora russa Lisaweta Iwanowna, num diálogo da parte
central da novela. Nesta ocasião é a ela que Tonio revela os seus planos
em trocar a "bellezza" italiana pela limpidez e pureza setentrionais. Em
Lubeque, a sua cidade natal, que havia treze anos não visitava, é tomado
por um vigarista em fuga. Na Dinamarca, encontra Hans e Ingeborg; a
própria Magdalena torna a tombar durante uma dança, e só por isto o
leitor fica a saber que dela se trata. (É um dos muitos Leitmotiven
da novela – herança de Wagner, explorada com êxito por THOMAS MANN). A
novela acaba com uma carta anteriormente prometida à pintora russa, uma
personagem que o Autor confessa "durchaus fingiert" e que exprime em boa
parte a opinião “dos outros" sobre a Arte e sobre a natureza artística.
O Autor
encontrava-se nesta altura em Munique, como sabemos. A
/
25 / uma "vida de artista”
em que reina a boémia, responde somente com um afastamento irónico, uma
solidão e até um ascetismo que evita relações literárias e ambientes
barulhentos em que muito se fala e nada se diz – tal era Munique na
viragem do século e tal é o que MANN nos mostra em 1904, com o drama "Fiorenza".
Fiorenza
é a Munique do seu tempo. Uma superabundância de Arte, que acorre de
todas as partes do mundo, choca a Sprödheit do nórdico e a
sensibilidade do moralista. Punha-se a Arte sobre a Moral
– e isso
era evidentemente um erro. "Esquecestes a Moral!"– é este o grito de "Fiorenza".
Já um conto de 1902 – "Gladius Dei! –
preludia o tema de "Fiorenza”: um monge exige que o proprietário
de uma loja de objectos de arte da Schellingstrasse retire da montra um
quadro em que a Virem está representada de modo extremamente voluptuoso.
(O Botticelli, que em "Fiorenza" o pintor deste quadro, aceita já a
superioridade da Moral e converte-se à doutrina de Girolamo.). O
proprietário da loja não atende o seu pedido, e Hieronymus sai a ruminar
em latim: "Gladius Dei super terram... (…) Cito et velociter!".
A condenação, que a terra está a merecer o mais cedo e o mais depressa
possível por colocar a orgia da Arte acima da rigidez da Moral,
exprime-se no drama "Fiorenza”, publicado em 1904.
/
26 /
O drama
desenrola-se em Florença, em 1492, no dia em que Lourenço de Médicis, o
Magnífico, espera a morte. Discute-se a descendência na cadeira papal
entre os pintores, filósofos e políticos da sua corte renascentista.
Girolamo Savonarola – o Hieronymus do conto inspirador não é apenas uma
vestidura latina do nome do Prior de são Marcos? – protesta, em nome de
Cristo, contra a devassidão re1IIBnte. Fiore, amante do moribundo, e que
outrora rejeitara o pregador, simboliza a Arte e torna-se centro da
conversa entre Girolamo e Lourenço. O senhor da "bellezza" está a
morrer; e a Moral, que no I acto é considerada "ridícula" e "impossível"
por Poliziano, torna-se força superior à Arte.
O
casamento do Autor, efectuado em 1905, veio modificar a sua disposição
pessimista – o que se projecta nas suas obras.
Num dos poucos meios sociais que
frequentava, THOMAS MANN conheceu a futura esposa, a então estudante de
Medicina Katja Pringsheim, a "Märchenbraut" que mais tarde, no discurso
em que agradece, em nome dela, a festa que os amigos suíços
prepararam,
quando do septuagésimo aniversário chama "das Herz eines ganzen Menschen
(17)", recordando as excelências da mulher e da mãe. A atmosfera da casa
dos futuros sogros recorda a MANN o ambiente da antiga casa paterna dos
antepassados. E rapidamente lhe esquece o devaneio, que apenas cremos
espelhado num episódio do "Felix Krull" – o episódio de miss Twentyman.
/ 27 /
A solidão
é destruída pelo amor, que aliás nas "Observações…” MANN considera em
alto grau zivilisationsliterarisch, sem que, no entanto, fiquemos
certos e convencidos, de que isto fica dito com toda a franqueza.
A
superioridade da cultura escolar da esposa e um certo "complexo de
inferioridade" sentido pelo próprio MANN, que nunca fizera o
Abiturium, estão presentes no romance que em 1909 publica: “Alteza
real".
O
casamento arranca MANN (e aos seus heróis), da solidão e acorda-o para a
realidade; torna-o "wirklich", como ele próprio confessa no
"Esboço...". O primeiro fruto artístico do seu comércio é o romance "Alteza
real". Escreve-o na sua grande parte em Oberammergau, onde tem
conhecimento da morte patética da irmã Clara, que há-de retratar na
Clarissa do "Doutor Fausto". O "petit roman" que a crítica
francesa tanto elogiou (e tão mal interpretou na opinião de MANN), não
é, como o Autor o frisa, um Hofroman. Aparentemente pode
sugeri-lo, mas só a quem não estiver dentro da problemática manniana
escapará o sentido da interpretação do próprio MANN. Este, ao encerrar
os comentários à referida crítica, afirma que, sempre escreveu só sobre
a própria vida, de que o romance é, afinal de contas, um espelho do
estado presente.
"Alteza
Real" tem a sua acção situada num reino imaginário da
/
28 / Europa Central,
governado por um arquiduque. Nasce a este um segundo filho, com o braço
esquerdo defeituoso, o que, ao que parecia, era o cumprimento de uma
velha profecia.
A infância solitária – destino de muitos
heróis de MANN – passa-se preponderantemente na companhia da irmã,
Ditlinde, retrato da irmã mais velha de MANN, sua confidente, como atrás
dizemos. O irmão mais velho de Klaus Heinrich – tal se chama o jovem
príncipe defeituoso – é "Weichmütig und zu Trltnen geneigt",
desde novo. E o seu reinado é curto. Cônscio do seu papel meramente
decorativo, abdica no irmão, que o amor cedo liga a Imma Spoelmann,
filha de um milionário americano que vem restabelecer-se à Europa. No
arquiducado, acaba por estabelecer-se com a filha, num antigo palácio.
Este castelo é adquirido à casa real – também nos "Buddenbrooks"
a venda de uma velha casa é índice da decadência em processo... (Não
acontecera coisa semelhante à família MANN?) Imma é também membro da
alta sociedade... do dinheiro e, como Klaus Heinrich, leva uma vida de
isolamento, apenas "for show". A solidão de ambos os lados vence
a resistência oferecida a princípio pela jovem. O dinheiro paterno
financia o Estado, à beira da bancarrota e finalmente "kam der Mai
und mit ihm das hohe Fest von Klaus Heinrich und Immas Ehebund". O
romance acaba com um "happy-end". Quase no fim, lê-se esta
pergunta, feita por Klaus Heinrich: "Weiss der garnichts vom Leben,
der von der Liebe weiss?
/ 29 /
O próprio
Mann não duvidava que a sabedoria da vida lhe viria em parte do amor
realizado. Por isso não foi sem dúvidas que exprimimos atrás o que ele
deixou escrito nas "Observações..."
"Cão e
dono" (1911), um idílio, (idílio vem do grego eidyllion,
"quadrinho"; entende-se por idílio, quase sempre uma composição poética
de carácter bucólico; aqui é um pequeno quadro da vida do Autor) é uma
Tierstudie em que se patenteia o amor ao cão, inclinação que
também tinha Schopenhauer, conhecido Hundlieber. O êxito da
tradução inglesa, muito apreciada por Mann, parece demonstrar a
conhecida tendência dos britânicos...
Na mesma
ocasião, THOMAS MANN publica outro idílio em verso ("Cântico da
criancinha"), para comemorar o episódio familiar do baptismo de
Elisabeth, a filha querida, encarnada em 1925 na figura da Lorchen da
"Inquietação e dor precoce".
A "Morte
em Veneza" (1913), que trazia em si o classicismo da linguagem e o
“cansaço criador", não foi, como muitos supuseram na altura, a
Marienbader Eligie de Mann.
Afinal o Autor ainda estava quase no princípio, e a "Montanha
/ 30 /
Mágica", que viria avivar a fama conquistada com os "Buddenbrooks”,
só com a "Morte em Veneza" seria possível –, tal se confessa nas
"Observações...". Como também neste livro se diz, a novela é "das
Spätwerk einer Epoche, auf welches ungewisse Lilchter das Neuen fallen".
A
história é simples: o escritor Gustav von Aschenbach, de cinquenta anos,
que vive em Munique, cansado por anos de trabalho ininterrupto, decide
viajar. O itinerário da viagem leva-o a Veneza. Estão hospedados no
mesmo hotel do Lido os membros de uma família polaca. O filho mais novo,
– um rapaz de cerca de 14 anos, chamado Tadno, obceca o velho Aschenbach
com a sua beleza clássica. A sua admiração vai-se transformando, a breve
trecho, em paixão. Enquanto ele se empenha em guardar o seu segredo, uma
epidemia de cólera asiática devasta Veneza. Embora Aschenbach tenha
conhecimento do perigo, em vez de avisar a família polaca e de partir
dali ele mesmo, vai cedendo à força hipnótica da sua paixão.
Continuando, junta ao seu o sinistro segredo de Veneza. Com a vontade
moral quebrada e a alma transtornada, morre na praia à vista de Tadzio
que, qual imagem de Hermes, se vai afundando no horizonte
(18).
A criação
progressiva de um ambiente de decadência é um dos processos literários
que, com maior felicidade, se empregam na novela.
A Visão
do caminhante perto do cemitério de Munique, o "jovem
/
31 / fingido" da travessia,
a viagem na gôndola clandestina e o encontro com o rapaz polaco e suas
consequências (o que constitui o cerne do romance) são imagens que fazem
prever a morte, o colapso final de Aschenbach. A preparação lenta do
desfecho, que uma lógica interna torna impossível que seja outro, é para
nós o que de melhor lá se encontra. O próprio nome de Veneza, suas
associações com Nietzsche e com Wagner, cria desde logo uma certa
predisposição para o mórbido.
Em 1914,
início da disputa com o irmão (e da redacção das "Observações..."),
publica MANN o ensaio sobre Frederico da Prússia: “Frederico e a
Grande Coligação". O imperador prussiano era para MANN uma figura
admirada; representava o Selbstüberwinder, o que o Autor mais
admirava em Nietzsche... Também já Aschenbach é autor de uma épica em
prosa sobre Frederico o Grande. O ensaio de Henrich Mann, aparentemente
sobre Zola, era um ataque aos membros da inteligência alemã, submetidos
a ideais políticos que, tal lhe parecia, arrastariam o ocidente para a
derrocada.
Durante
três anos, em ensaios sucessivos, mais tarde coligidos nas "Observações...",
THOMAS MANN empenha-se em fazer notar os, para ele, erros do Ocidente,
da Zivilisation e do Zivilisationsliteraten de que o irmão
Heinrich é o modelo acabado. Não se pode dizer que o Autor tenha
conseguido "aniquilar" as opiniões adversas e tenha feito
/
32 / valer as suas, de
maneira irrevogável. No entanto, MANN reconhece mais tarde a beleza de
certas páginas. E na introdução à "Montanha Mágica", lê-se: “Das
Motto der ‘Betrachtungen’ lautet: ‘Que diable allait-il faire dans cette
galère? Die Antwort lautet: den "Zauberberg".
Já só
pelo facto de vir a escrever a "Montanha Mágica" lhe valeu ter
escrito as "Observações...", portanto. Este livro publica-se em
1918. Assim se encerra o primeiro período da obra.
b) –
Segundo período:
– É a parte mais alta da obra e as publicações feitas imediatamente
antes e depois da "Montanha Mágica" são apenas pequenos
trabalhos, que os preparativos e o descanso dos preparativos para a
redacção da grande obra claramente exigiam.
A "Montanha
Mágica" saiu em 1924. Com este romance, o "Suchen, Ringen und
Tasten" dos "schnversten Jahren meines Lebens" (Observações...")
tomam forma literária. Se a "Montanha Mágica" é uma resposta
irónica à "Morte em Veneza", como MANN o diz, isto, pelo menos,
não se nota (19). Observa-se com mais clareza, (isto também MANN o diz),
a formação literária do expresso, com irritabilidade mal contida, na
colecção de ensaios políticos. A Europa do tempo abunda em infinitas
contradições, a que o DonnerschIag do fim da "Montanha Mágica”
/ 33 /
dá fuga, mas não resolve. Hans Castorp, o Parzival da "Montanha", vai
formando a sua personalidade, "das einzig Interessante auf Erden”;
mas deixa em aberto todos os problemas que se lhe põem.
A "Montanha
Mágica" também se fundamenta num episódio da vida do Autor, o que já
é habitual nas obras, que temos tocado: como base está uma visita que
MANN faz à esposa, enferma de uma afecção pulmonar, num sanatório de
Davas; o Autor também adoece, aliás sem gravidade, embora o seu caso
"não se cure de hoje para amanhã" como diz o Dr. Berens a Hans Castrop.
E MANN tem de ficar. O ambiente fornece-lhe um material vasto, que ele
desenvolve ainda depois – o que de certo o faria invocar
um dito de
Goethe, dos seus mais preferidos: "Dass du nichts enden kannst, das
macht dich gross". (20).
Por muito
que se veja nela de enciclopédico e de erudito – a "Montanha Mágica"
"n’est vraiment comparable à rien", como o afirmou
Gide, numa
frase querida de THOMAS MANN
(21).
A
Seelengeschichte de Hans Castrop começa com a sua chegada a Davos –
Platz, na Suíça, vindo de Hamburgo, de onde era natural. Tencionava
visitar um primo internado e demorar-se apenas três semanas; mas ele
próprio acaba por precisar de ficar, e as três semanas vão-se alargando,
até perfazerem sete anos. Os primeiros capítulos evocam o passado de
Hans Castorp, até à obtenção do diploma em engenharia naval,
/
34 / pintam o ambiente
geral do sanatório, a vida (e a morte!) e, pormenorizadamente, os casos
de alguns doentes. Uma das primeiras personagens de relevo a aparecer é
o humanista italiano, Settembrini, apaixonado do liberalismo e do
progresso, pregador da "forza vindice della Ragione". É ele que
começa a tentar modelar à sua maneira a alma de Castorp. A aclimatação
aos costumes de “lá de cima" e a erupção do amor de Castorp por Clawdia
Chauchat, uma das doentes, ocupam com intermitências os capítulos
seguintes. O espírito de Castorp vai-se interessando pouco a pouco por
aquele lugar, que lhe dá, como temas de especulação, a Vida e a Morte, o
Tempo e o Espaço, o Corpo e a Alma, o Ocidente e o Oriente, e, como
objectos de estudo, principalmente a Medicina e a Botânica. Settembrini,
que nunca desiste de "ensinar o discípulo", apresenta-lhe Naphta, o
judeu quase jesuíta, que ele apelida ironicamente de "princeps
scholasticorum". Um dos "centros" da obra – pois ela possui vários
"centros" – são as discussões entre Settembrini e Naphta, que terminam
com o suicídio deste último, durante um duelo entre ambos. As aventuras
de Clawdia Chauchat trazem para primeiro plano o holandês Mynheer
Peeperkorn, a "personalidade", que encarna a figura de G. Hauptmann (e a
de Goethe!) e que, como Naphta, também se suicida. "Der Versuch des
Flachlandes" atrai irresistivelmente o primo de Castorp, Joachim
Ziemssen, que acaba, porém, por regressar ao sanatório, aniquilado
mortalmente pela profissão
/
35 / que ansiava por
retomar. O seu fantasma aparece mais tarde, na sessão espiritista
organizada pelo Dr. Krokowski, invocado pela "médium”, a jovem
dinamarquesa Ellen Brand. É Hans Castorp que afugenta a visão, acendendo
a luz eléctrica! A irritabilidade que se apodera dos doentes da montanha
mágica só é desfeita pela explosão da Primeira Grande Guerra, em que
Hans Castorp, já curado da sua doença física, mergulha como num "Weltfest
des Todes".
O
processo evolutivo de um espírito está terminado: Hans Castorp é o
protagonista de mais um Bildungaroman.
Em 1930,
MANN escreve, numa praia do Norte, como já dissemos, a novela sobre a
Verzauberung der Massen – “Mário e o Hipnotizador”.
No mesmo
ano, publica o "Esboço...” e encerra assim um período que,
segundo a nossa opinião, termina precisamente com este trabalho
autobiográfico, com que o Autor se vê de certo modo obrigado a informar
os seus leitores. Com efeito, é-lhe atribuído o Prémio Nobel da
Literatura em 1929.
Acaba
aqui o período de maturação do Autor.
Em 1933 sai da Alemanha e estabelece-se
com a família perto do Lago de Lucerna. Daí em diante, nunca mais volta
à pátria, exceptuando curtas estadias, e o conspecto da obra
modifica-se.
/ 36 /
c) – Terceiro período:
– A tetralogia bíblica, que abre o último período da obra (e da vida) de
THOMAS MANN é uma obra de profundo valor humano ou tornar-se-á simples "Kuriosum
für Archivare" no futuro? Estar-lhe-á realmente reservada "ein
Mass von Dauer", como pensa o Autor?
(22).
O período
de redacção dos quatro volumes é largo e atribulado. Tem a duração de
dez anos e inclui a "Correspondência com Bona" (1937), a "Carlota
em Weimar" (1939) e o "metaphysische Scherz", as "Cabeças
Trocadas" (1940). "As Histórias de Jacob" (1933) são ainda da
Alemanha. Segue-se-lhes "O jovem José" no ano seguinte, em 1936
("José no Egipto" e em 1943 "José, o Alimentador", já
totalmente escrito na América.
A origem
da primeira parte do tríptico literário, cujas segunda e terceira partes
tratariam respectivamente de Filipe II de Espanha e de Lutero (um plano
que não veio a realizar-se), está num pedido feito por um pintor de
Munique) que veio reavivar leituras da infância e uma ideia de Goethe.
(23)
O vasto
romance é o desenvolvimento do episódio bíblico do "casto José"
(Génesis, 12-50).
Contemos
as linhas gerais da sua acção:
Começa-se
por uma Höllenfahrt, que é um prefácio a toda a história;
divaga-se sobre a passagem do tempo, e o Autor mergulha no Reino
/
37 / das Madres, como
Goethe.
"As
Histórias de Jacob" contam a promessa e o logro de Labão "que em
lugar de Raquel lhe dava Lia" e, depois, a demorada conquista de Raquel.
A segunda
parte, “o jovem José”, começa propriamente a tratar de José e os seus
irmãos: da relação entre eles, dos primeiros sonhos proféticos de José,
até à venda aos ismaelitas. "José no Egipto" narra a viagem "para
baixo", para o Egipto, os serviços de José a Mont-kaw e depois ao eunuco
Potífar, cuja mulher in nomine procura seduzir o novo Hermes. Ela
é, ao lado de Raquel e de Thamar, do mesmo romance, uma das poucas
personagens femininas de vulto em THOMAS MANN. Na última parte paira
quase unicamente uma atmosfera de êxito e de optimismo. José interpreta
satisfatoriamente os sonhos do Faraó, e é por ele elevado a
"Alimentador", a como que "ministro da agricultura e da economia" de
todo o Egipto. Durante os anos das vacas magras, vêm até ele os irmãos,
(excepto Benjamim) que Jacob não deixara partir) para comprarem
alimentos. Depois do reconhecimento e do leve castigo de José, o próprio
Benjamim e Jacob vêm até ao Egipto. A tetralogia termina com o cortejo
fúnebre do Pai de José.
O romance "Carlota em Weimar" (1939) é uma fuga do
assunto bíblico para o problema criado pela personalidade de Goethe.
"...on lui (ao romance) reproche notamment de
rabaisser la grandeur de Goethe
/
38 / et de ramener sa
personnalité à des dimensions humaines, trop humaines"
(24).
O que choca o leitor desde a entrada é a "linguagem
goetheana", sobretudo no VII capítulo, em que surge o Titã de Weimar. Um
livro bastante sensacionalista, mas que revê com agudeza alguns
problemas da moderna literatura alemã, aponta, para contrapor ao
Epigonentum do estilo de Carossa, o estilo irónico da "Carlota”
de MANN, “denn Mann ist eben primär lroniker, Parodist”
(25).
A "Hofräthin Witwe Carlotte
Kestner geb.
Buff, von Hannover”
chega a Weimar, na companhia da filha e de uma criada grave. Mas não
consegue furtar-se à publicidade – do que se queixa também o próprio
Goethe, nas "Elegias Romanas"
(26).
Mager,
empregado do Gasthof em que as três mulheres se alojam, é um
apaixonado do Werther. Propagada a notícia da presença de
Carlota, em breve a vem visitar a caricaturista americana Rose Cuzzle,
que, nas palavras de Mager, "wants to have just a look at you".
Em seguida é Herr Doktor Riemer, secretário de Goethe, que revela
a Lotte como é grande o entusiasmo pela sua chegada e que “diese
Leute vorm Tore warten darauf, dass sie das Haus verlassen" e lhe
fala do "täglichen Umgang mit einem solchen Manne". Depois dele é
a vez de Demoiselle Schopenhauer, irmã do Mestre.
Conta
pormenores das relações entre Goethe e o filho, refere-se à natureza
tirânica daquele (a tirania do génio!) e à "divina
/
39 / atitude que criavam um
sentimento de inferioridade no infeliz August. Como este era diferente
de Riemer que, absolutamente invadido pela personalidade do Mestre, já
redigia as cartas num "estilo mais goethiano" do que o próprio Goethe! É
August que vem comunicar a Lotte um convite do pai, atacado de
reumatismo, para uma reunião em sua casa. Segue-se então o referido VII
capítulo, em que Goethe irrompe numa linguagem exclamativa e em
expressões que lhe são peculiares. É o cume do romance. Aqui, sente o
leitor perfeitamente como está longe da sensibilidade romântica, e
procura esconder um sorriso interior perante tanta ironia de THOMAS MANN.
O
olímpico do génio e da arte romântica já não comovem. Não foi isto
precisamente o desejado por MANN? As “grandes tiradas" da retórica
goethiana tornam-se ridículas. Ninguém acredita hoje na divindade dos
titãs".
Já da
Frühromantik se ergue o grito de Jean Paul contra o culto weimariano
ao "Giganten-Geist der Zeit"…
O ensaio sobre Nietzsche, de 1947, “Nietzsches
Philosophie im Lichte unserer Erfahrung" (“A filosofia de
Nietzsehe à luz da nossa experiência") prova como o Autor se ocupa de
novo da problemática nietzschiana. O romance "Doutor Fausto”,
do mesmo ano, que é, além do mais, uma "autobiografia” de Nietzsche,
está dentro da mesma feição espiritual.
/ 40 /
O "Doutor
Fausto", iniciado já em Maio de 1943, está saturado de
reminiscências e associações. Surpreendido pelos prenúncios da derrocada
e pela própria derrocada alemã de 1945, o livro enveredou por um caminho
que realmente corresponde aos desejos de MANN em compor um "Buch des
Endes". Nas palavras de HANS MAYER, "des Ende" de tudo, foi nele
conjurado: "Ende des bürgerlichen Künstlers, Ende des Bürgertums,
Ende der bisherigen Kunst, Ende der bisherigen Philosopie, Ende
überlieferter Gottesvorstellungen, Ende des traditionellen Humanismus,
Ende des Vernunfts – und Wissenschaftsbegriffs, Ende des liberalen
Staates, Ende der kapitalistischen Gesellschaft"
(27).
O
Fausto, paradigma nacional alemão é o compositor Alexander Leverkühn,
cuja vida nos é relatada por um amigo da infância, o Dr. Serenus
Zaitblom. Este não escreve nenhum romance, como se não cansa de repetir.
Conta apenas a catastrófica vida do amigo, que é evidentemente
protestante, ao contrário de si mesmo, que é católico. Herdando do pai o
Hang zur Zauberei e a inclinação de die Elementa zu
spekulieren, estuda humanidades e teologia, mas em breve se dedica à
música. A cena do bordel, do tempo universitário de Leipzig, não mais
lhe sairá do espírito. A "Hetaera Esmeralda" obseca-o na
composição da música a que apaixonadamente se dedica. O pacto com o
Diabo, que Zeitblom reproduziu de notas deixadas por Leverkühn, foi
durante
/ 41 /
uma viagem à Itália, e ocupa todo o capitulo XXV do livro. Prevê-se já o
catastrófico desfecho, na solidão e no desejo de procurar contacto na
amizade e no amor normal e anormal. No fim, vem uma lancinante confissão
pública de Leverkühn, que morre da doença que o vem atacando desde
Leipzig.
Da
Nachschrift da obra ressalta claramente a identificação do destino
alemão ao destino pessoal de Leverlkühn.
"A
Génese do romance do "Doutor Fausto” é um Nebenwerk da obra
anteriormente citada e por alguns considerado até mais significativo do
que a própria obra referida.. O livro é, por assim dizer, um diário da.
elaboração do "Doutor Fausto" e narra determinados pormenores da
vida do Autor, no circulo dos exilados alemães da Califórnia.
Em 1949 –
que é o ano da publicação da "Génese..." – faz THOMAS MANN uma
alocução na Paulskirche de Francoforte-do-Meno, destinada a
comemorar o bicentenário do nascimento de Goethe e aproveitada também
para se contaram episódios do próprio destino do Autor.
"Ich stand in Kapitel XXXI (do
“Dr. Fausto") (...) und las abends lange in den Gesta Romanorum. Die
schönste und überraschendste der Geschichten ist die von Geburt das
HeiIigen Papstes Gregor. Die Erwälung, verdient durch die Entstehung aus
Geschwister - Verkehr und
/
42 /
durch Blutschande mit der Mutter
–
was alles freilich durch eine siebzehnjährige unglaubliche Askese auf
dem wilden Stein abgebüst wird.
Extreme Sündhaftigkeit, extreme Busse, nur diese Abfolge
schafft Heiligkeit"
(28).
Isto pode
ler-se a páginas 130 da "Génese do romance do "Doutor Fausto"" e
relato da génese de "O Eleito". As fontes da obra são indicadas
em pequena nota, no final de "O Eleito". O tema, como MANN
confessa, "roubado" ao "Doutor Fausto", encontra-se resumido em três
páginas (422-425) deste romance. A narração é de um monge do mosteiro de
Sankt Gallen, na Alamânia. (Este narrador fictício, que conta uma
história a um auditório, toma a atitude épica primitiva.) Gregório,
fruto de um amor incestuoso, pratica novo incesto, sem o saber, mas vem
a sentar-se, depois de longa persistência, na cadeira papal. A sua
consolação final é que a graça divina tenha impedido novo incesto com
uma das suas filhas-irmãs. A quase obsessão manniana pela
Geschwisterliebe, que vem do tempo do "Sangue dos wälsungen”
(não se sabe em que medida reflectem, se reflectem, é claro, vivências
autobiográficas), vai fixar-se ironicamente sob a forma de romance, no
fim da vida.
Escrito
de novo na Europa, "A Mulher Frustrada" (1953) constitui apenas
um "Experiment", e é a reprodução romanceada de um caso vivido. Também
nesta novela se encontra (nas páginas centrais) uma
/ 43 /
confrontação
entre o ambiente europeu e americano, facto causado, sem dúvida, pelo
contacto recente com a Europa. É isto talvez o mais significativo no
livro e comprova o apregoado europeísmo de MANN. (Sobre "europeísmo" e
"unidade cultural europeia", ideias presentes já em Herdar" leia-se o
cap. IV, "Herança Cultural", do livro de M. Beloff, Europa e europeus,
"Ulisseia"; também Nietzsche previa a união dos estados europeus num
Volksbund, como consequência das vitórias da Democracia.) O resto
não é de grande valor literário: uma mulher "no climatérico, luta por
defender a sua juventude, apaixona-se por um jovem americano, mas
sucumbe a uma doença grave e à sua euforia passageira. O livro não
parece integrado no conjunto da obra.
Coisa
diferente acontece com as "Confissões de Felix Krull, cavalheiro de
indústria", que é o pano de fundo de quase toda a obra de MANN e que,
iniciado já depois da “Alteza Real" e retomado "várias vezes, é
ainda fragmentariamente publicado em 1954. É inspirado nas memórias de
Manolescus, "wie viele erraten haben" – o que valeu aliás ao
Autor novo processo jurídico. A crítica inglesa considera-o,
quase
uniformemente, "probably the greatest work of contemporary German
fiction" (29). E nós, apesar de fragmentário, achamo-lo a melhor
obra de MANN, depois da "Montanha Mágica". À linguagem e a um ou
outro problema que ela levanta, já nos referimos atrás. As memórias são
do
/ 44 /
próprio punho de Krull, escritas "in völliger Musse und
Zurückgezogenheit”. Ele vai contando da sua infância solitária, das
doenças fingidas (o que o prepara para o futuro mimo com que consegue
livrar-se do serviço militar) até à falência da firma que o pai possuía
e ao suicídio deste. No ambiente em que cresce, só o padrinho
Schimmelpreester parece dar-lhe importância; é este que alimenta em boa
parte as pretensões do afilhado. A cena da inspecção militar, em que
Krull consegue convencer a junta de sofredor de uma doença nele
inexistente, permite-lhe a ida para Paris. Por recomendação do padrinho
é admitido como Liftboy no “Hotel Saint James and Albany". Já sob
o nome de Armand, nome mais sonoro do que Felix (na opinião do gerente),
presta serviços no hotel, onde reencontra a senhora que roubara, quase
sem querer, na revisão da alfândega e que a ele se entrega. A sua
insinuante figura e a maneira exemplar do seu comportamento valem-lhe a
subida de categoria. É colocado no Kellerdienst, onde conhece a
menina Twentyman, a cuja paixão ele se esquiva. O encontro com o Marquês
de Venosta na Dachterasse do "Grand Hôtel des Ambassadeurs" é
decisivo e marca o início de um Doppelleben ainda mais nítido. O
Marquês, conhecido já da sala de jantar, onde Krull servia, propõe-lhe
uma "troca de papéis". Os pais, de casa nobre luxemburguesa, ansiando
por afastar o filho do ambiente de Paris e dos amores de uma tal Zaza,
dispõem-se a oferecer-lhe uma viagem. O itinerário é vasto: "die
beiden Amerika, die
/ 45 /
Südsee-Inseln und Japan, gefolgt von
einer interessanten Seefahrt nach Ägypten, Konstantinopel, Griechenland,
Italien und so weiter". Felix Krull, que se incumbe da sua
realização, representando o outro, é que "não tem a sorte suficiente" e
não sai da Europa – mais precisamente não passa da primeira etapa –
Portugal. No comboio para Portugal, encontra o professor Kuckuck, alemão
havia longa data residente em Lisboa, casado com uma portuguesa e pai de
Zouzou (não de Zaza, a amiga do Marquês!), a quem Krull se apresenta,
evidentemente na qualidade de nobre. A viagem até Lisboa é passada com
divagações sobre o tempo e as ciências da Natureza, o que, é claro, se
explica, porque estas são a especialidade do professor; são também,
tanto o tempo, como as ciências, os temas queridos de Hans
Castorp, cujo Bildungsroman devia ter sido escrito
concomitantemente.
A entrada
em Lisboa ocupa algumas páginas. A Avenida da Liberdade, a Praça do
Comércio e a Baixa são descritas com alguma fidelidade. Na língua
portuguesa, nota MANN um “oft etwas exotisch heiseren Stimmklang",
o que não é a primeira observação congénere feita por um estrangeiro.
Reinhold Schneider sublinha o misticismo que se
desprende do
português ("Sprache der Lyriker") e contrapõe-o ao dramatismo do
castelhano (30). Menos poeticamente, THOMAS. MANN fala da tonalidade
rouca da nossa língua, o que no fundo se encontra, no que respeita a
vago, indistinto e pouco claro, com o místico e
o lírico
/ 46 /
de Schneider.
"Das
Doppelbild von Mutter und Tochter", Dona Maria Pia e Zouzou, encanta
e atrai Felix Krull desde o princípio. A primeira parte das memórias
termina com uma entrevista com D. Carlos, descrita numa carta aos "teuersten
Eltern", com a assistência a uma tourada (aliás pouco portuguesa...)
e com a conquista de Maria Pia, que vem interromper uma cena de amor
entre Felix e Zouzou.
De 1955 é
o “Ensaio" lido no 150.º aniversário da morte de Schiller. Como
dissemos a princípio, é este o último trabalho de MANN – homenagem a um
poeta admirado já na adolescência.
Fecha-se
o círculo da vida e da obra.
THOMAS MANN; "Magister Thomas von der
Trave",
morre às 8 horas e 10 minutos de 12 de Agosto de 1955, não
com 70 anos, como uma vez "previra", mas com mais de 80, em Kilchberg,
perto do Lago de Zurique, na "freien, kleinen und nicht engen"
Suíça. Uma dor no braço esquerdo, que se começara a fazer sentir a 18 de
Julho e anunciava o colapso final, que as festas do 80.º aniversário
apressam, leva-o à sepultura. Ela é perto da do escritor suíço de fala
alemã Conrad Ferdinand Meyer. As águas do Lago não marulham longe. Estão
a lembrar uma dedicação constante, que tinha começado lá em cima, no
Báltico. |