BOLETIM   CULTURAL   E   RECREATIVO   DO   S.E.U.C.  -   J.  ESTÊVÃO


PÁGINA 1
Editorial
Alcino Carvalho
PÁGINA 2
Amadeu de Sousa - Homenagem
Paula Tribuzi
PÁGINA 3
Contos tradicionais portugueses
PÁGINA 4
Uma pedra que era doce
Henrique J. C. Oliveira
PÁGINA 5
Dia da África
Poetas Africanos
PÁGINA 6
Mudar nem sempre é melhorar
João Paulo C. Dias
PÁGINA 7
Navegando no espaço virtual
Alcino Cartaxo
PÁGINA 8
Prémio literário J. Estêvão
PÁGINA 9
Acerca do SEUC
Apontamentos
Isabel Bernardino
PÁGINA 10
Organização e funcionamento do SEUC
João Paulo C.Dias
PÁGINA 11
Receitas para o fígado
PÁGINA 12
Hora do Recreio
HJCO
PÁGINA 13
Fac-símile da 1ª página
 

Homenagem a
Amadeu de Sousa

No âmbito do «Dia da Poesia», celebrado na Secundária José Estêvão no dia 21 de Março de 2003, os alunos do Ensino Recorrente tiveram uma visita guiada ao Museu da Escola, seguida de uma palestra de homenagem à figura homenageada de Aveiro, o poeta Amadeu de Sousa, proferida por Paula Tribuzzi, professora desta escola.

É essa palestra que o jornal “Alternativas” aqui reproduz na íntegra.

A “Colectânea Poética” de Amadeu de Sousa reúne textos de várias obras do autor: “Dois mundos diferentes”, “Conflito”, “Aveirismos gastronómicos, salpicados com poesia”, “Que todos os dias não sejam iguais” e “O homem”.

A compilação representa cinquenta anos de criação poética e testemunha, de acordo com a Advertência do Autor, “um sentimento incontido de muito Amor”.

Esse sentimento é revelado na epígrafe que anuncia o primeiro conjunto de poemas da colectânea: “Esse Aveiro que eu amo”. Os títulos dessa secção confirmam o lirismo da relação do homem com a sua terra: “Aveiro, meu amor”, “Meu Aveiro” e “A Paixão”.

O primeiro poema apresenta um cunho nitidamente autobiográfico: o Autor identifica-se como um “Cagaréu” autêntico, nascido em São Gonçalinho; o seu destino é a poesia, através de uma busca incessante da “beleza infinita deste nosso Aveiro!”.

Tal missão surge elevadamente cumprida na séria de retratos de Aveiro num profundo enquadramento literário. A título de exemplo, cito algumas expressões a esse nível: “céu terreno de ria semeado”, “trono de sol enluarado”, “chão salgado de luz” e “aguarela de azul e sal”. Na linguagem poética sobressai o visualismo descritivo que esboça a composição estética do espaço envolvente. O mundo físico é filtrado pela subjectividade do poeta através de uma escrita também dotada de um artístico poder impressionista e de uma admirável força sugestiva. Aveiro é pintado por uma embriaguez de sentidos que lhe fantasia as formas, as cores e os movimentos.

A expansão da alma no delírio poético é bem patente no soneto “A Paixão” (pág. 28) que conjuga a saudade da raiz telúrica com o sentido projectivo da eternidade:

              Quem me dera enterrado junto ao cais
              na tumba da maré da eternidade,
              onde vive o Aveiro e a saudade,
              a beleza infinita dos canais!

              E nessa sepultura ser arrais
              do barco ancestral desta cidade,
              onde mora a raiz da Liberdade,
              semeada por vozes imortais!

              Então nesse recanto do Rossio,
              onde o amor nasceu, e ali ouviu
              o murmurar da água na muralha,

              quem me dera morrer de maresia,
              e na urna embalada pela ria,
              vestirem-me de sal, como mortalha!

Em várias composições, a linguagem reveste-se de um tom místico que canta Aveiro como “terra abençoada”, “altar de fé” ou “sacro rincão”, louvando a alma da sua padroeira – Santa Joana Princesa.

Além da vertente lírica, no primeiro conjunto de poemas figura matéria de sabor épico. Verdadeiro documento da nossa terra, o texto “Identidade” (pág. 18) convida a uma leitura histórica que remonta ao tempo de Mumadona, com a primeira referência toponímica a Aveiro, passando pela aventura expansionista de João Afonso por terras de Benim e da heroína Antónia em Mazagão e terminando com a luta pela liberdade de Gravito, José Estêvão e Mendes Leite.

Todos os poemas da primeira secção revelam, por parte do poeta, um profundo conhecimento da cidade de Aveiro, com a qual ele mantém uma relação muito íntima, engrandecida ainda pela expressão literária.

O segundo agrupamento do livro de Amadeu de Sousa tem o título de “Dois mundos diferentes”. Nesta parte da colectânea, o poeta tem uma postura reflectida e crítica perante o mundo circundante. O espaço dominante é o ambiente nocturno, palmilhado por um espírito inquieto que perscruta um sentido para a existência humana (“Meta final”, pág. 59).

              Já percorri mil ruas e vielas,
              noite após noite, em longas caminhadas,
              quando a luz não existe nas janelas
              e as portas já há muito estão cerradas;

              Quando no céu o brilho das estrelas,
              tremula ao som das horas avançadas;
              quando o silêncio enorme invade as celas
              e desce às pedras negras das calçadas.

              Não encontrei ainda o que procuro,
              neste mundo vazio e obscuro,
              só cheio de loucura e de ambição.

              — Continuo, porém, a caminhar,
              seguro de que um dia hei-de encontrar
              o mundo da verdade e da razão.

 

Da sua análise da vida resulta a consciência de um binómio que distancia, antagonicamente, dois mundos: por um lado, o mundo real, “vazio e obscuro”, ensombrado de “soberba”, “ambição”, “loucura” e “morte”; por outro lado, o mundo idealizado pelo poeta, acalentado em tantos sonhos e iluminado por uma mente lúcida e racional (“Taça da ilusão”, pág. 58).

A vida do poeta é traduzida, metaforicamente, como uma caminhada que oscila entre a esperança de encontro com um mundo edificante e o desalento na busca desse sonho.

A esta concepção dual da existência corresponde a visão dialéctica que opõe o bem e o mal no retrato do ser humano. O título “Resumo” (pág. 48) é bem sintomático dessa linha de pensamento (“É no bem ou no mal que se resume/ a maneira de ser de toda a gente”).

A obra “conflito” retoma, com este título, a dicotomia de “Dois mundos diferentes”. O texto “Meu coração anseia” (pág. 76) dispõe essa dualidade numa confissão frustrada do poeta: “ ... Pouco ou nada ganho que se veja,/ p’ra quem tanto deseja, ou quase tudo.”

Também o desalento alterna, nesta secção, com a esperança que alimenta o Ideal perseguido de salvação da Humanidade. Mas agora é mais pesado o cansaço do poeta, como anuncia a composição “Envolve-se-me o corpo já de pó” (pág. 79).

A estrutura dialéctica do pensamento poético enquadra-se, perfeitamente, no esquema versificatório adoptado, com pertinência e predominância, nestes agrupamentos da colectânea – o soneto.

Nas duas partes seguintes da compilação – “Que todos os dias não sejam iguais” e “O homem” – a mensagem poética é comunicada, de novo, sob a forma de uma busca, conforme se pressente no título “Chave-mestra” (pág. 98) e se esclarece no texto “Homem de bem” (Pág. 110).

Noutros momentos, a ânsia de descoberta de um sentido para a vida é articulada com interrogações sucessivas num quadro de ócio filosófico: “Por que sou?, / por que estou?,/ por que vim?” (pág. 137).

Os vários auto-retratos e a inclusão de textos alusivos ao núcleo familiar do Autor, particularmente em memória de sua mãe, perspectivam o poeta em busca de si mesmo, ao encontro das suas origens e em cumprimento de um destino.

Já na parte final de uma longa caminhada, a procura do “eu poético” complica-se com a dúvida de um outro, enevoando a sua jornada e adensando a eterna incógnita (pág. 141). Surge então, inevitavelmente, a ideia da morte, decorrente da consciência do sentido precário da existência e da ânsia de libertação (“Na hora da morte”, pág. 139).

As páginas finais da colectânea prestam homenagem a Aveiro e às suas gentes, relembrado o amor do Poeta pela sua terra. Distingo, para terminar, o soneto dedicado a Jeremias Bandarra, o Artista que ilustrou superiormente a “Colectânea Poética” de Amadeu de Sousa (pág. 145):

            SE FOSSE PINTOR

              Pintava a própria alma do artista,
              A força dos sentidos, o seu grito
              A ecoar, fugaz, no infinito
              Do mundo que o cerca, irrealista.

              Pintava o mar, até perder de vista,
              Criava, assim, a cor do novo mito
              Na órbita emergente onde gravito,
              Pintava o fado, enfim, sem ser fadista.

              Pintava o sol e a nuvem fugidia,
              Mesclava com a noite a luz do dia
              Em tons de nova era, outra alvorada.

              Pintava a dor imensa da saudade.
              O silêncio da voz na eternidade
              Seria a derradeira pincelada

Ana Paula Cabrita Dias Tribuzi


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