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                NO
                PONTO onde o Mondego tem o seu derradeiro estrangulamento, era
                inevitável que desabrochasse uma cidade. A Ponte é o sítio
                mais favorável à travessia antes dos terrenos alagadiços do
                Baixo Mondego. 
                
                 
                Daí
                que o remoto trilho sistematizado na romanização como via
                Olissipo-Braccara cruzasse fatalmente o Mondego neste ponto e
                que das ensolaradas elevações da margem direita a mais próxima
                e com água no subsolo se constituísse em guardiã da travessia
                do rio. 
                
                 
                Para
                entender Coimbra na História, é de capital importância esse
                fatalismo geográfico que lhe determinou papéis vários de
                centralidade, fronteira, portagem, encruzilhada a diversas
                escalas ao longo do tempo. 
                
                 
                No
                início da nossa era, o leito do rio correria fundo entre duas
                acidentadas margens. A sedimentação provocou o alargamento do
                leito, entretanto artificialmente reduzido com a construção de
                cais e aterros que, definitivamente (?), impediram as cíclicas
                inundações. Só assim pôde a cidade espraiar-se pelas
                margens, coisa com menos de século e meio. 
                
                 
                Da
                Coimbra romana, Aeminium, pouco se sabe. Teria uma ponte, mas
                dados seguros são apenas: o perímetro, o traçado das
                muralhas, as portas, o aqueduto, a necrópole, a localização
                do seu centro monumental/fórum na zona correspondente ao Paço
                Episcopal/Sé Nova. Deste último conjunto restou o criptopórtico
                em três pisos que hoje integra e parcialmente sustenta o Museu
                Nacional Machado de Castro, quiçá a primeira operação de
                obtenção de espaço público plano na difícil topografia da
                cidade. 
                
                 
                Estes
                elementos eram articulados pelo, hoje em parte obliterado, eixo
                orgânico que, da Porta do Sol chegava à Porta de Almedina e
                que no centro cívico/fórum se cruzava com um outro, a matriz
                da rua que atravessa a Alta entre os topos das couraças dos Apóstolos
                e de Lisboa. A esta relação se deveria a regularidade da malha
                que, até à reforma do Estado Novo, se verificava no Sul da
                colina. Do período romano serão as já referidas couraças,
                troços do «pommerium» romano que pelo interior do perímetro
                muralhado articulava as portas e os extremos dos eixos
                estruturantes. 
                
                 
                Da
                queda do Império Romano à reconquista definitiva da cidade
                pelos cristãos (1064), as várias trocas de domínio (suevo,
                visigodo, islâmico) tiveram implicações urbanísticas desprezáveis.
                A importância regional da cidade crescia. A mudança da sede de
                bispado de Conímbriga para Eminio nos anos oitenta do séc. VI
                foi a confirmação disso, e a partir dela se deu gradualmente
                a mudança de nome para Colimbriae — Coimbra enfim. 
                
                 
                Nos
                primeiros tempos da nacionalidade, a permanência do vale do
                Mondego como seu referente fronteiriço levou a que os primeiros
                reis fizessem da cidade morada preferencial, ali nascendo
                quase todos os príncipes da I Dinastia. Nesse contexto surgiu
                o Mosteiro de Santa Cruz, fundado com o empenho de D. Afonso
                Henriques, que para tal cedeu os seus banhos, umas prováveis
                termas romanas.
                 
                 
                 
                 
                A
                lusa casa-mãe agostinha, para além de forja intelectual e
                legitimadora da nacionalidade, foi também o primeiro da série
                de conventos-panteões da monarquia portuguesa. As termas
                tiravam partido da ribeira, a linha de água que corria no fundo
                do vale, e a implantação do convento sobre ela catalisou o
                crescimento da cidade sobre e para além do seu curso final. Em
                contrapartida, constituiu-se como barreira à ocupação a
                montante. 
                 
                 
                A
                TÍMIDA extensão urbana fora de portas, desenvolvida segundo a
                via Lisboa-Braga e comprimida entre a frente poente da muralha e
                a linha média de cheia do rio, encontrava mais espaço. A
                conjugação da porta Oeste (Almedina) com dois pequenos templos
                cravados na encosta de então (S. Bartolomeu e S. Tiago) havia já
                potenciado um alongado terreiro onde se realizava a praça. A
                construção de uma ponte foi outro dos empreendimentos de D.
                Afonso Henriques, obra que se prolongou pelos reinados
                seguintes, a par com os constantes reforços da muralha, as
                reformas nos templos, entre os quais a Sé (a meio do principal
                eixo estruturante), e a fixação de instituições de assistência
                e de conventos (Donas, Celas, S. Jorge, S. Francisco, Santa Ana,
                S. Domingos, Santa Clara), todos em arrabalde ou na margem
                oposta, dada a falta de espaço.  
                A
                partir do séc. XIII, a estabilização das fronteiras tornou
                definitiva a deslocação do centro administrativo para Lisboa.
                Apesar de tudo, Coimbra solidificava a sua estrutura urbana. O
                centro cívico da cidade, outrora concentrado em torno da Sé,
                desceu o Quebra-Costas, não ultrapassando ainda a Porta de
                Almedina. Era então grande o empenho régio em manter a população
                a residir intramuros, para tal sendo concedidos grandes privilégios.
                Mas a acessibilidade aos cais, a intensificação das trocas
                comerciais e o grande terreiro comum a Santiago e a S.
                Bartolomeu eram factores incontornáveis. 
                
                 
                O
                reformismo urbanístico do período manuelino veio confirmar
                essa tendência. Para além de intervenções profundas em Santa
                Cruz, do folgamento dos largos da Sé e de Sanção e da
                integral renovação da ponte afonsina, o terreiro foi refeito
                com a implantação de equipamentos novos ou renovados — Câmara,
                pelourinho, tabeliães, açougue, mercado, Misericórdia,
                hospital —, passando a ser o centro da cidade, a sua praça. 
                 
                 
                
                  
                Com
                ela se desenvolviam em altura e ocupação as ruas de Coruche e
                da Calçada (futuras Visconde da Luz e Ferreira Borges),
                preenchendo-se também o espaço até ao rio e Santa Justa, no
                que hoje é o Terreiro da Erva. A cidade muralhada (Alta) foi-se
                desertificando, mas muito pouco tempo depois um acontecimento
                mudava definitivamente a sorte urbanística de Coimbra. Em 1537,
                pela terceira vez, a Universidade foi transferida de Lisboa para
                Coimbra, só que desta vez o radicalismo da reforma deu origem a
                um amplo programa construtivo que a fixou definitivamente. Para
                tal se lançou mão de todos os recursos possíveis, em especial
                dos bens de Santa Cruz. 
                O
                processo pode-se esboçar em dois momentos, a que correspondem
                também dois espaços: a fase humanista na Baixa, com a instalação
                do primeiro Colégio das Artes, gerando largo/pátio próprio e
                a abertura da Rua de Santa Sofia; a da Contra-Reforma, que, a
                partir da entrega da tutela do Colégio das Artes aos Jesuítas,
                deslocou o centro universitário para a Alta. 
                O
                rei cedera os seus paços para a instalação dos Gerais. Se a
                abertura da nova rua é a face da reforma de D. João III, a
                segunda é a marca que tornou Coimbra a única cidade do Antigo
                Regime a manter vitalidade na sua velha cidadela e a ver sociológica
                e culturalmente dividido — entre escolares e futricas — o
                seu espaço urbano. 
                A
                Universidade atraía uma população que era necessário alojar,
                o que deu origem à densificação do casco urbano, em especial
                na Alta, onde, com o jesuíta Largo da Feira, surgia a
                toponimicamente reveladora Rua Larga. Com D. João V, à
                inconsequente reforma dos estudos correspondeu uma valorização
                urbanística do espaço universitário. Ergueu-se a nova torre
                da Universidade, implantou-se a nova Casa da Livraria. 
                APONTANDO
                um dos futuros eixos de desenvolvimento urbano, em 1748 e por
                iniciativa episcopal, iniciou-se a construção do Seminário. A
                cidade, que no século anterior substituíra os seus assoreados
                conventos de S. Francisco, Santa Clara, Santa Ana e S. Domingos
                (este ainda no séc. XVI) e agora renovava alguns dos templos
                (S. Bartolomeu, Santa Justa, S. Pedro, S. João), continuava a
                combater os excessos do rio. 
                
                 
                No
                auge do reformismo iluminista pombalino, a refundação da
                Universidade, voltando-a para as Ciências e para o
                experimentalismo, ficou muito aquém dos seus propósitos urbanísticos.
                Apesar de tudo, o colégio jesuíta foi reconvertido em sede
                episcopal, hospital universitário, Museu de História Natural e
                Gabinete de Física, dando os seus anexos lugar ao Laboratório
                Químico e o logradouro a uma nova praça. O Pátio das Escolas
                ganhou a sua feição actual. A praça da Baixa perdeu
                definitivamente o hospital e a Misericórdia agora instalada na
                velha Sé. Mais determinante foi a criação do Jardim Botânico,
                a mancha verde que cintou por todo o Sul a velha Almedina. 
                  
                O
                processo de construção do Botânico arrastou-se pelas
                primeiras décadas da Idade Contemporânea e, com a extinção
                das ordens religiosas, tornou inevitável a abertura à urbanização
                da vertente oposta, ou seja, da Quinta de Santa Cruz.  
                Por
                razões óbvias, só na Regeneração se conjugaram as sinergias
                necessárias a mudança tão radical. Em 1866, a mudança do
                mercado para o local actual, levando a praça da cidade à
                designação de Praça Velha, foi um passo simbólico. A abertura
                da actual Avenida Sá da Bandeira, para além de articular o
                casario de Montarroio com a Alta, anulou a exclusividade de
                utilização do velho eixo que atravessava esta até á estrada
                da Beira. A actual Praça República passou a articular os acessos
                ao burgo e à Alta, tirando partido do espaço de lazer que fora
                dos crúzios e agora era da cidade: o Parque (ou Jardim) da
                Sereia, onde a Académica veio a ter o seu primeiro campo de
                jogos. O caminho-de-ferro (1864), uma nova ponte (1875), as
                obras do cais, a concomitante abertura da actual Avenida
                Navarro e com ela do mais directo acesso à estrada da Beira, a
                reconfiguração do Largo da Portagem e a construção dos novos
                Paços do Concelho são marcos da cidade pós-revolução
                industrial, que no aterro do novo cais e em Santa Clara também
                se industrializou. 
                
                 
                Foi
                com essa dinâmica que Coimbra entrou no séc. XX, expandindo-se
                segundo a topografia e velhos caminhos rurais, refinando
                tipologias arquitectónicas específicas como as da encosta de
                Montarroio. Foi a pressão demográfica da imigração beirã
                dos anos 30 (e a ligação de Salazar a Coimbra) que levou o
                Estado Novo a empenhar-se no plano da cidade nas décadas de
                1940 e 1950. 
                
                 
                Na
                esteira do plano encomendado a De Grõer surgiu um conjunto de
                bairros sociais (Loreto, Cheira, Marechal Carmona/Norton de
                Matos, Sete Fontes, Cumeada, Santa Clara, Fonte do Castanheiro),
                sendo aglutinados pela cidade o lugar dos Olivais e os sítios
                do Calhabé e da Arregaça e abertas artérias urbanas como as
                avenidas Fernão de Magalhães, Afonso Henriques e Dias da
                Silva. Para além da nova ponte, a concentração de outras
                marcantes infra-estruturas urbanas (liceu, magistério, estádio)
                serviu de suporte a uma das raras concretizações portuguesas
                de um plano inspirado na Carta de Atenas: a Solum. Ainda hoje as
                mais marcantes opções de ordenamento se inspiram nas reflexões
                de De Grõer (vales das Flores e de Coselhas, ponte-açude,
                circular urbana) e só há pouco se abandonou a polémica ideia
                da Avenida de Santa Cruz (vulgo «bota-abaixo»). 
                
                 
                Foi
                no entanto a Universidade que registou a intervenção emblemática
                do Estado Novo. Contra os princípios formulados por De Grõer,
                foi (re)instalada no seu próprio espaço. De forma violenta,
                o casco urbano foi arrasado, obras de arte destruídas e a
                topografia radicalmente regularizada. Sem deixar de lamentar o
                que se perdeu, não se pode, no entanto, deixar de registar que
                nem assim a estrutura milenar da cidade, o seu perímetro e
                acessos se remeteram em exclusivo para a memória.
                
                 
                WALTER ROSSA (Arquitecto)
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