614 pixels


A história de Coimbra
 
por
 José Hermano Saraiva

 

 

COIMBRA, a Lusa Atenas. O epíteto é cor­rente, mas parece-me mal fundado: Atenas tem a mais que Coimbra o Parténon, e é o Parténon que faz Atenas; Coimbra tem a mais que Atenas o Mondego, e é o Mondego que faz Coimbra. Com maior razão se lhe chamaria pois, em alternativa com Roma, a Colina das Sete Cidades. Se a ilustre Roma assentava em sete coli­nas, nesta colina que serviu sempre de coração a Coimbra já assentaram sete cidades. E digo sete, levado pelo vigor cabalístico do algarismo, porque se incluíssemos avoengos mais remotos ou menos duradouros, chegávamos às dez, tantas como os man­damentos que Moisés nos trouxe do Monte Sinai. E tudo isto são lucubrações barrocas, mas que me aco­dem ao espírito quando intento re­sumir a um traçado sumário o itinerário histórico de Coimbra. Pois será essa a pista a seguir: referir, uma a uma, as sete cidades da colina. 

A primeira foi desenhada pela geografia: povoado pré-histórico num outeiro defendido pelo fosso natural do Mondego e pelas duas ravinas que nele desembocavam, lu­gar rodeado de terras ricas de água.

 

A segunda foi a cidade romana de Eminium. Este topónimo pré-romano é a prova suficiente da anterioridade de um núcleo urbano, talvez castro de tribo pré-céltica. Dessa implantação castreja fizeram os romanos uma cidade cuja importância redobrou com a construção de uma ponte sobre o Mondego. O mais impressionante vestígio dessa segunda cidade é o criptopórtico que hoje se encontra sob o edifício onde está o Museu Machado de Castro. 

Aos romanos sucederam-se suevos e visigodos, que não fizeram uma cidade nova. Mantiveram o que receberam, vilipendiado e empobrecido pela violência dos tempos. Mas já se pode falar numa terceira cidade sob o domínio do Islão. O Eminio árabe e a seguir a Coimbra moçárabe desempenharam um papel importante como zona activa de relacionamento entre os estados cristãos e os mouros. Matéria de dúvida continua a ser a da época em que a cidade mudou o nome: depois da invasão bárbara? Após a invasão islâmica? Ao certo só sabemos que o bispo de Conímbriga, cidade próxima, foi viver para Eminio, e esta passou a ser a cabeça da diocese de Conímbriga, cujo nome acabou por assumir. Quando foi definitivamente reconquistada pelos cristãos, em 1064, já a me­mória do antigo topónimo estava esquecida.

 

A QUARTA cidade de Coimbra é já portuguesa e afonsina. Era ali a capital do reino nascente, e lá tiveram seus paços os reis Afonso Henriques, Sancho I, Afonso lI, Sancho II. Só o «Bolonhês» se iria lembrar de Lisboa. Nesse paço, que já vinha do tempo dos emires agarenos, reuniram-se por diversas vezes as cortes, e foi dentro dele que nasceu a segunda dinastia, com a aclamação do mestre de Avis em 1385. Os reis continuaram a ter ali seus aposentos até que D. João III, aborrecido com as dificuldades que os Crúzios punham à instalação da Universidade, ofereceu o paço real para a grande escola que devia, no seu pensamento, ser o baluarte da contra-reforma em Portugal. E com tudo isso o mal lembrado Paço de Coimbra pode reivindicar o título de mais ilustre lugar de Portugal. Nenhum outro edifício tem tão fidalgas memórias. E também nenhum outro conserva um presente tão condigno do passado. A casa dos Reis é hoje a Sala dos Capelos, unanimemente reputado o mais ilustre espaço universitário português.


A velha universidade no tempo de D. João III

Depois da Coimbra românica devia poder falar-se de uma quinta Coimbra, gótica e bolonhesa. Não faltam sugestões de memória e de pedra: San­ta Clara e a Rainha Santa, a vida e a morte de Inês de Castro. Mas a ausência da corte, a Univer­sidade em Lisboa, o drama do infante D. Pedro, as predilecções reais por Santarém e Évora, fazem desses séculos um tempo de véspera em Coimbra. Todo o esplendor antigo vai regressar com D. João III, a construção dos grandes colégios da Rua da Sofia, a sediação definitiva da Universidade em Coimbra, em 1537. As ideias de Universidade e de Coimbra tornaram-se desde então complemen­tares. Coimbra passou a ser a cidade dos estudantes. Nos sécs. XVII e XVIII a fisionomia da cidade não se altera, mas enriquece-se muito com as contribuições joanina (a Capela e a Biblioteca) e pombalina, que pretende converter a velha Coimbra num pólo de modernidade. 

A grande mudança, e aquilo que eu tenho por sexta Coimbra, virá porém só com o séc. XIX, o ensino laico, a supressão dos conventos, o encerramento dos colégios, as repúblicas estudantis, os Batalhões Académicos, as livrarias futricas, a geração de Setenta e as «Odes Modernas», a Questão Coimbrã e, já nos fins do século, o canto emocionante do «Só» (a propósito, para quando o regresso, de António Nobre ao seu pedestal mutilado?). E essa Coimbra de sangue na guelra, apres­sada e irreverente, ingénua e generosa, é essa Coimbra que proporciona os quadros para a reconstrução do Estado depois da revolução liberal, e depois do sismo burocrático da República.

 

A COIMBRA de hoje, a sétima, a que eu conheço, é muito maior mas não muito diferente. Continua a ser, ao mesmo tempo, libertina e castiça. Sente-se que o mar está perto, mas a serra não é longe. No espaço ilustre do terreiro das Escolas casam-se ventos de maresia com aromas montesinhos de estevas e de aldeias. 

Para os antigos seria um dia de navegação no Mondego, para os modernos bastam vinte minutos numa estrada excelente. E na ponta da estrada fica a Figueira da Foz, cidade desde 1882, e uma das mais prestigiosas praias portuguesas. Ali o mar tem ondas e fúrias, cheira a iodo e tem o encanto das cousas verdadeiras. E. apesar de todas as suas reservas, o ilustre Ramalho não podia deixar de reconhecer: «Nenhuma outra praia em Portugal possui as condições desta para tornar agradável a estação dos banhos». 

Entre Coimbra e a Figueira avistam-se os vultos seculares das fortificações de Montemor-o-Velho, terra de Fernão Mendes Pinto. Tão perto, quer de uma quer de outra cidade, que a aceleração da viagem já mal consente parar. E é pena. Montemor é um duplo mirante: sobre os campos do Mondego e sobre a proto-história nacional. E as princesas revoltadas? E toda a gesta mística do abade João? E as façanhas recordadas na última mensagem do cavaleiro Diogo da Azambuja?

José Hermano Saraiva, In: Guia Expresso das Cidade e vilas históricas de Portugal, n.º 7, 20/7/1996, págs. 3-4.


Da nascente à foz     Edifícios sepultados pelo Mondego     Síntese sobre o Mondego     Passatempo


Página anterior     Página inicial     Página seguinte