COIMBRA,
a Lusa Atenas. O epíteto é corrente, mas parece-me mal
fundado: Atenas tem a mais que Coimbra o Parténon, e é o Parténon
que faz Atenas; Coimbra tem a mais que Atenas o Mondego, e é o
Mondego que faz Coimbra. Com maior razão se lhe chamaria pois,
em alternativa com Roma, a Colina das Sete Cidades. Se a ilustre
Roma assentava em sete colinas, nesta colina que serviu sempre
de coração a Coimbra já assentaram sete cidades. E digo sete,
levado pelo vigor cabalístico do algarismo, porque se incluíssemos
avoengos mais remotos ou menos duradouros, chegávamos às dez,
tantas como os mandamentos que Moisés nos trouxe do Monte
Sinai. E tudo isto são lucubrações barrocas, mas que me acodem
ao espírito quando intento resumir a um traçado sumário o
itinerário histórico de Coimbra. Pois será essa a pista a
seguir: referir, uma a uma, as sete cidades da colina.
A
primeira foi desenhada pela geografia: povoado pré-histórico
num outeiro defendido pelo fosso natural do Mondego e pelas duas
ravinas que nele desembocavam, lugar rodeado de terras ricas
de água.
A
segunda foi a cidade romana de Eminium. Este topónimo pré-romano
é a prova suficiente da anterioridade de um núcleo urbano,
talvez castro de tribo pré-céltica. Dessa implantação
castreja fizeram os romanos uma cidade cuja importância
redobrou com a construção de uma ponte sobre o Mondego. O mais
impressionante vestígio dessa segunda cidade é o criptopórtico
que hoje se encontra sob o edifício onde está o Museu Machado
de Castro.
Aos
romanos sucederam-se suevos e visigodos, que não fizeram uma
cidade nova. Mantiveram o que receberam, vilipendiado e
empobrecido pela violência dos tempos. Mas já se pode falar
numa terceira cidade sob o domínio do Islão. O Eminio árabe e
a seguir a Coimbra moçárabe desempenharam um papel importante
como zona activa de relacionamento entre os estados cristãos e
os mouros. Matéria de dúvida continua a ser a da época em que
a cidade mudou o nome: depois da invasão bárbara? Após a
invasão islâmica? Ao certo só sabemos que o bispo de Conímbriga,
cidade próxima, foi viver para Eminio, e esta passou a ser a
cabeça da diocese de Conímbriga, cujo nome acabou por assumir.
Quando foi definitivamente reconquistada pelos cristãos, em
1064, já a memória do antigo topónimo estava esquecida.
A
QUARTA cidade de Coimbra é já portuguesa e afonsina. Era ali a
capital do reino nascente, e lá tiveram seus paços os reis
Afonso Henriques, Sancho I, Afonso lI, Sancho II. Só o «Bolonhês»
se iria lembrar de Lisboa. Nesse paço, que já vinha do tempo
dos emires agarenos, reuniram-se por diversas vezes as cortes, e
foi dentro dele que nasceu a segunda dinastia, com a aclamação
do mestre de Avis em 1385. Os reis continuaram a ter ali seus
aposentos até que D. João III, aborrecido com as dificuldades
que os Crúzios punham à instalação da Universidade, ofereceu
o paço real para a grande escola que devia, no seu pensamento,
ser o baluarte da contra-reforma em Portugal. E com tudo isso o
mal lembrado Paço de Coimbra pode reivindicar o título de mais
ilustre lugar de Portugal. Nenhum outro edifício tem tão
fidalgas memórias. E também nenhum outro conserva um presente
tão condigno do passado. A casa dos Reis é hoje a Sala dos
Capelos, unanimemente reputado o mais ilustre espaço universitário
português.
A velha universidade no tempo de D. João III
Depois
da Coimbra românica devia poder falar-se de uma quinta Coimbra,
gótica e bolonhesa. Não faltam sugestões de memória e de
pedra: Santa Clara e a Rainha Santa, a vida e a morte de Inês
de Castro. Mas a ausência da corte, a Universidade em Lisboa,
o drama do infante D. Pedro, as predilecções reais por Santarém
e Évora, fazem desses séculos um tempo de véspera em Coimbra.
Todo o esplendor antigo vai regressar com D. João III, a
construção dos grandes colégios da Rua da Sofia, a sediação
definitiva da Universidade em Coimbra, em 1537. As ideias de
Universidade e de Coimbra tornaram-se desde então complementares.
Coimbra passou a ser a cidade dos estudantes. Nos sécs. XVII e
XVIII a fisionomia da cidade não se altera, mas enriquece-se
muito com as contribuições joanina (a Capela e a Biblioteca) e
pombalina, que pretende converter a velha Coimbra num pólo de
modernidade.
A
grande mudança, e aquilo que eu tenho por sexta Coimbra, virá
porém só com o séc. XIX, o ensino laico, a supressão dos
conventos, o encerramento dos colégios, as repúblicas
estudantis, os Batalhões Académicos, as livrarias futricas, a
geração de Setenta e as «Odes Modernas», a Questão Coimbrã
e, já nos fins do século, o canto emocionante do «Só» (a
propósito, para quando o regresso, de António Nobre ao seu
pedestal mutilado?). E essa Coimbra de sangue na guelra, apressada
e irreverente, ingénua e generosa, é essa Coimbra que
proporciona os quadros para a reconstrução do Estado depois da
revolução liberal, e depois do sismo burocrático da República.
A
COIMBRA de hoje, a sétima, a que eu conheço, é muito maior
mas não muito diferente. Continua a ser, ao mesmo tempo,
libertina e castiça. Sente-se que o mar está perto, mas a
serra não é longe. No espaço ilustre do terreiro das Escolas
casam-se ventos de maresia com aromas montesinhos de estevas e
de aldeias.
Para
os antigos seria um dia de navegação no Mondego, para os
modernos bastam vinte minutos numa estrada excelente. E na ponta
da estrada fica a Figueira da Foz, cidade desde 1882, e uma das
mais prestigiosas praias portuguesas. Ali o mar tem ondas e fúrias,
cheira a iodo e tem o encanto das cousas verdadeiras. E. apesar
de todas as suas reservas, o ilustre Ramalho não podia deixar
de reconhecer: «Nenhuma outra praia em Portugal possui as condições
desta para tornar agradável a estação dos banhos».
Entre
Coimbra e a Figueira avistam-se os vultos seculares das
fortificações de Montemor-o-Velho, terra de Fernão Mendes
Pinto. Tão perto, quer de uma quer de outra cidade, que a
aceleração da viagem já mal consente parar. E é pena.
Montemor é um duplo mirante: sobre os campos do Mondego e sobre
a proto-história nacional. E as princesas revoltadas? E toda a
gesta mística do abade João? E as façanhas recordadas na última
mensagem do cavaleiro Diogo da Azambuja?
José
Hermano Saraiva, In: Guia Expresso das Cidade e vilas históricas
de Portugal, n.º 7, 20/7/1996, págs. 3-4.
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