Tormes ficou célebre
graças a essa obra magnífica, escrita por Eça de Queirós, A
Cidade e as Serras. Tornou-se tão célebre que hoje já começam a
aparecer placas toponímicas a indicar Tormes ao lado de
outras que indicam o nome mais antigo Santa Cruz do Douro. A
continuar assim ainda vamos ver Tormes tornar-se,
internacionalmente, tão conhecida como a espanhola Alba de Tormes
(aquela onde os nossos Jacinto e Zé Fernandes perderam as malas,
por falta de conhecimentos de geografia do zeloso funcionário dos
caminhos de ferro franceses, ali à beira dessa cidade monumental que
é Salamanca).
Vem isto a propósito de
uma recente visita que fiz a este local paradisíaco onde o nosso
Jacinto (o meu príncipe, como lhe chamava o Zé Fernandes)
veio curar a doença da fartura de que padecia em Paris.
Apesar da inclemência do
tempo, não pude deixar de apreciar a carinhosa intimidade desta
casa, agora parcialmente transformada em turismo de habitação, com
aquela cozinha que quase não foi mexida e onde ainda hoje se prepara
o arroz de favas tão gabado em A Cidade e as Serras.
Caro leitor, tire-se dos
seus cuidados e vá por aí adiante rumo ao Porto, daí a Penafiel,
Marco de Canavezes, Santa Cruz do Douro (quero dizer Tormes). Visite
esta casa, percorra a Quinta, desça ao Douro. Aí tem várias
hipóteses para o regresso: ou ir à Régua e daí a Lamego (visitar a
Sé, passar aos mosteiros de Tarouca e Salzedas, provar o champanhe
da Murganheira (cuidado se conduzir!) e regressar por Viseu e
Vouzela (paragem para a prova dos célebres pastelinhos) ou então
passar a Resende e Cinfães e daí a Castro Daire atravessando essa
belíssima serra chamada de Montemuro onde poderá ver com proveito
algumas aldeias.
Dessa forma, poderá o
meu caro leitor dar-se conta das potencialidades das serras, não só
do ponto de vista turístico, mas também da qualidade do ambiente
(até quando?) com o seu ar limpo e as suas águas rumorosas e livres.
Perceberá então a paixão
do nosso Eça (ou era do Jacinto que eu estava a falar?) por aquele
torrão duriense que o compensava do tédio da cidade, o spleen,
como lhe chamava Baudelaire e Cesário repetia num conhecido
poema.
Chegado a casa e ainda
maravilhado com o que viu (disso não tenho dúvida) agarre n’ A
Cidade e as Serras e leia-o, se ainda o não leu, ou repita a
leitura, se esta não for a primeira vez, e verá que ela, a leitura,
virá enriquecida pelo que os olhos viram. Mas tome atenção: o que os
olhos viram não substitui a leitura.
Dar-se-á conta de que
esta obra tem tudo: as contradições entre o campo e a cidade mas
também o que há de positivo e bom para os cidadãos, quer na cidade,
com o seu avanço tecnológico, quer no campo, com a sua paz e a sua
maior proximidade a um correr do tempo mais próximo do movimento
natural das estações. Constitui a obra uma notável antecipação a
alguns dos problemas que nos afligem hoje, aqueles que resultam de
uma exploração irracional da natureza, por exemplo.
Há nessa obra, escrita
mesmo ao terminar o século XIX, referências ao telefone, aos
caminhos de ferro, à fotografia, coisas então muito jovens; também
por isso a obra assume um estatuto de testemunha de um tempo que
ainda não é o nosso. E tudo isso servido por uma escrita riquíssima,
mordaz por vezes, mas também ternurenta e sempre irónica.
Que nem tudo era bom
viu-o o Jacinto, estupefacto com um atraso secular e endémico, como
nem tudo era bom na grande cidade que, como um monstro
pré-histórico, engolia as pessoas e as triturava no monótono mas
difícil dia-a-dia.
A obra revela, não
apenas a capacidade de um escritor para efabular, mas também a força
cívica de um homem que persegue uma utopia, qual seja a de tentar a
superação destas contradições, campo-cidade, retirando e articulando
o que há de melhor num e noutro dos ambientes, o rural e o urbano.
Quero crer que depois
desta leitura, não resistirá a ir a correr ler Os Maias ou
A Ilustre Casa de Ramires ou...
Então, iluminado pela
leitura, só lhe resta voltar a Tormes. Já agora, aproveite para
fazer o regresso pelo Pinhão (visite a estação do caminho de ferro
que é uma das mais bonitas deste pais e dê um passeio num dos
barquitos que por ali andam), vá ao Pocinho (se possível de
comboio), rume a Vila Nova de Foz Côa, visite os locais onde se
encontram as gravuras do Vale do Côa (não se arrependerá) e em
Freixo de Numão encontrará um vinho (tinto e branco) chamado de
escorna bois que não o vai desiludir.
Vá por mim que eu,
quando puder, lá voltarei.
Mértola ou os caminhos
cruzados com o islão
Mértola deriva do latim
myrtylis. Trata-se de uma bela povoação situada junto ao
Guadiana, no Baixo Alentejo e já a dois passos do Algarve, caminho
de Vila Real de Santo António. Ainda lá está o que resta do porto
romano onde atracavam os barcos provenientes do Mediterrâneo.
Durante séculos apenas era conhecida a mesquita, desde longa data
transformada em igreja católica, mas suspeitava-se que outros
testemunhos do islão deviam andar por ali.
Realmente estavam lá:
era só preciso escavar um pouco para eles aparecerem e esse trabalho
foi feito graças à iniciativa e ao saber de Cláudio Torres, um nome
incontornável quando se fala de Mértola.
Hoje, Mértola constitui
uma visita obrigatória para quem queira avaliar o que foi a presença
árabe no que hoje é o território de Portugal. Mértola foi justamente
uma das últimas praças muçulmanas a cair, a que seguiu um período
conturbado no relacionamento entre D. Afonso III (1210 -1279) e o
seu sogro, D. Afonso X de Castela e Leão, o rei sábio, grande
trovador e avô do nosso D. Dinis. Haveriam de passar ainda duzentos
e tal anos para que os árabes fossem expulsos, definitivamente, da
Península, com a queda de Granada, que ocorreu em 1492.
Visite essa vila espantosa mas faça-se acompanhar por um guia do
turismo local, senão não vê metade do que há para ver. Encontrará a
mesquita lá no alto, perto do castelo, com os seus arcos em
ferradura (como se fora uma miniatura da de Córdova), um
criptopórtico, um cemitério, onde lado a lado repousam para todo o
sempre cristãos e muçulmanos, museus bem organizados e didácticos
(romano, islâmico, paleocristão, de arte sacra), um porto romano e
trabalhos arqueológicos em curso (sempre!).
Aproveite para almoçar
num daqueles restaurantezinhos plantados sobre o Guadiana onde lhe
servirão comida alentejana (sempre de comer e chorar por mais!). Uma
vez que fez tantos quilómetros, não deixe de ir ao Pomarão onde em
tempos existiu uma exploração mineira levada a cabo por ingleses e
que hoje não é mais do que uma aldeia perdida nos confins do mundo,
perdida nas dobras do tempo. As suas casas branquinhas, à beira do
Guadiana, encostadas à fronteira com a Espanha, são uma nota
extremamente emotiva nesta paisagem dura e agreste.
Vale a pena ver Serpa e
se tem tempo vá ao Pulo do Lobo, estrangulamento do Guadiana, mais
ou menos a meio caminho entre Serpa e Mértola.
Uma paragem em Beja é
sempre aconselhável, não só para comprar a porca feita de doce de
amêndoa, mas para ver algumas preciosidades, quais sejam a muralha
do castelo, o convento de Nossa Senhora da Conceição onde, dizem,
estaria recolhida uma tal Sóror Mariana Alcoforado que se teria
apaixonado por um soldado francês, ao tempo das invasões francesas.
Parece estar provado que as cartas (as célebres Cartas de Sóror
Mariana Alcoforado) foram forjadas e escritas por um escritor
francês. De qualquer modo são belíssimas e vale a pena lê-las, ou no
original francês ou na tradução portuguesa devida a Eugénio de
Andrade. Já agora e porque vem a talhe de foice, a tradução alemã
das mesmas é devida a um outro grande poeta: Rainer Maria Rilke.
Para o acompanhar nesta
viagem sugiro-lhe uma obra de Manuel da Fonseca (A Seara de Vento
ou Cerromaior que são obras clássicas sobre o Alentejo.
Mas não posso deixar de lhe aconselhar a leitura de Nenhum Olhar
um livro acabado de aparecer e que constitui uma nova
perspectiva sobre o Alentejo, sendo o primeiro romance de um jovem
escritor, José Luís Peixoto; esta obra tem merecido os maiores
elogios da crítica. Mas se prefere ir ás raízes, quando Portugal
ainda não existia como estado soberano, então recomendar-lhe-ia os
poemas de um grande poeta andaluz do século XI, Almutâmide, nascido
em Beja e que foi governador de Silves, tendo substituído mais tarde
seu pai no trono de Sevilha (1069). Tendo Sevilha caído nas mãos dos
Almorávidas, em 1091, é desterrado para Agmat, junto do Atlas, onde
morre cativo em 1095. Se optar pela antologia organizada por António
Borges Coelho (Portugal na Espanha Árabe, vol. IV), então aí
encontrará também um poema de Abú Imrane Almertuli, poeta de Mértola
que dizia: Ai quantas coisas se desculpam, dizem:/”talvez mais
tarde”. Quantas se demoram. É verdade, quantas coisas adiamos
para o dia seguinte! Pelos vistos, já vem de longe. Não adie o meu
amigo esta viagem por mais tempo e verá que não se arrepende. Bom
sol e boa viagem. Ah, é verdade: respeite o código.
Vale do Douro
Conheço
muitos vales lindíssimos (o de Aosta na Itália, o vale da Dordogne
em França, ou ainda o do Reno, na fronteira entre a França e a
Alemanha, por exemplo) mas o vale do Douro tem um lugar muito
particular no meu coração. Há uma ligação tão forte entre a
exuberância das formas, a natureza do xisto, a expressão sempre
mutável das vinhas e a pequenez do homem, que me quedo sempre mudo
perante aqueles socalcos construídos pelos trabalhadores rurais à
força de braços, ano após ano, num esforço que temos dificuldade em
aquilatar.
Um tão grande empenho
está registado nas obras literárias de Miguel Torga e nas de João de
Araújo Correia.
Há duas maneiras
privilegiadas de ver o Douro: de comboio ou de barco. O barco será,
porventura, o meio mais aconselhado. No entanto, o comboio constitui
uma boa alternativa.
Se quiser aproveitar
para ver as gravuras rupestres de Foz Côa e pernoitar nesta
simpática urbe, então sugiro-lhe que, no dia seguinte, desça até à
povoação do Pocinho, deixe aí a sua viatura e tome o comboio que o
levará até ao Pinhão. É uma viagem belíssima que passa pela estação
de Vesúvio, onde se realizaram algumas das cenas do filme O Vale
Abraão de Manoel de Oliveira (já agora, não deixe de o ver,
assim que puder, pois trata-se de uma das obras mais importantes do
grande mestre e que representa, entre nós, uma nova leitura de
Madame Bovary de Flaubert). Após a dita estação, tem uma paragem
na estação de Tua e mais adiante no Pinhão. Na estação dos caminhos
de ferro do Pinhão, veja os magníficos painéis de azulejos alusivos
à faina das vindimas. Encha, depois, os olhos com esse vale
espantoso, onde as quintas durienses se sucedem umas às outras.
Aproveite esta paragem para fazer um pequeno passeio de barco ao
longo do Douro, com a Quinta de Ventuzelo, logo ali à vista.
A minha sugestão é que
regresse ao Pocinho (de comboio) e, depois, a Vila Nova de Foz Côa.
Agora, já de automóvel, vá a Freixo de Numão, compre umas
garrafinhas desse néctar precioso que é o vinho de Escorna Bois,
tinto ou branco, pois que ambos são a não perder, e a seguir
faça o trajecto até S. João da Pesqueira, vila interessante com
várias casas solarengas, e, à saída, pare no miradouro e olhe por
uns minutos o Douro, ao longe, junto à confluência do Tua. Desça ao
Douro, ande aí uns três ou quatro quilómetros na direcção oeste e
vire, de seguida, para Tabuaço. Um pouco à frente, tem uma cortada,
à esquerda, que lhe dá acesso à Igreja românica de S. Pedro das
Águias, no vale do Távora. Não deixe de a ir ver porque, apesar de
pequenina, é um belo exemplo de uma arquitectura ligada à
topografia.
Ainda nesta viagem e sem
mudar, significativamente, de direcção, uma vez que está a efectuar
o regresso, passe por Moimenta da Beira. Estamos nas Terras do
Demo; já tudo cheira a Aquilino Ribeiro que estudou no Seminário
da Senhora da Lapa (Serra da Lapa). O Seminário fica situado, no
meio de uma paisagem agreste, a escassa distância da nascente do rio
Vouga.
Aguiar da Beira fica
logo ali ao lado e vale a pena visitá-la. À sua volta, castanheiros
por toda a parte. Felizmente, poder-se-á dizer, ainda há
castanheiros!
Estamos em terras de
mestre Aquilino, como já se disse. Se ainda o não leu, está muito a
tempo: o já citado Terras do Demo, A Casa Grande de Romarigães, O
Malhadinhas ou essa pérola que é O Romance da Raposa.
Este último, pode lê-lo aos filhos ou aos netos, se os tiver, mas se
os não tiver, leia-o, mesmo assim, que não se arrependerá.
Deixei de parte Torre de
Moncorvo (simpática vila encostada à serra de Reboredo), Freixo de
Espada a Cinta (terra do poeta Guerra Junqueiro, autor de A
Velhice do Padre Eterno) e Barca de Alva (terra fronteiriça onde
nasceu o Professor Agostinho da Silva). É que não se pode visitar
tudo de uma só vez. Umas viagens servem de aperitivo a outras. E,
apesar de tudo, o pais não é assim tão pequeno ou tão destituído de
interesse, como as pessoas podem julgar, apressadamente. Pelo
contrário, a sua variedade paisagística é enorme e a ela se alia uma
razoável riqueza monumental, que vai da pré-história à actualidade.
Luís Serrano |