Os poetas estabeleceram desde sempre um diálogo com a
natureza, diálogo de adesão, de recusa, de contemplação, de
confidência, diálogo que se pode seguir ao longo da história
marcado quer por observações de carácter ideológico, quer por um
léxico específico.
Iniciemos a nossa viagem pela idade média por um poeta
espanhol chamado Gonzalo de Berceo.
1
- GONZALO DE BERCEO (1196?-1265?)
Viveu Berceo ao tempo em que era rei de Portugal D. Sancho
I e posteriormente D. Afonso II. Era cerca de 25 anos mais velho que
Alfonso X, o Sábio e teria cerca de 16 anos quando o exército almóhada
foi derrotado em Navas de Tolosa (1212). Foi ainda contemporâneo da
queda de Córdova nas mãos dos cristãos (1236), Córdova onde
existia a famosa Biblioteca de Alhaken II que continha
aproximadamente 200.000 volumes. Teria talvez 13 anos quando
se iniciou a cruzada contra os albigenses (1209) e 17 anos quando os
cruzados de Simon de Monfort venceram Pedro II de Aragão em Muret
(1213). Nasceu na aldeia de Verceo (Logroño, na Rioja), fez a sua
educação em San Millán de Suso, e faleceu provavelmente em 1265
(ano do nascimento de Dante).
Entre as suas obras, tem lugar de destaque Milagros
de Nuestra Señora (1990) a cuja edição pela Espasa-Calpe com
introdução e notas de Juan Manuel Cacho Blecua recorremos.
Na sua poesia, a natureza aparece como prado
adornado de flores, árvores de fruto e fontes e amenizado pelo
canto dos pássaros como dele diz Cacho Blecua, prado em que ele
como romeiro encontraria repouso.
Esta natureza assume-se com uma carga religiosa evidente,
pois constitui a metáfora do jardim do paraíso. É o locus
amoenus cujos traços essenciais são as árvores, os prados,
fontes ou ribeiros, aos quais se acrescentará o canto das aves,
umas quantas flores, o sopro da brisa.
Diz
Berceo (Introducción, estrofe 14):
Semeja
esti prado igual
de Paraíso,
en qui Dios tan gran graçia,
tan gran bendición miso;
el que crió tal cosa
maestro fue anviso:
omne que hi morasse
nunca perdrié el viso.
Por
toda a idade média passam, lado a lado, duas vertentes (a religiosa
e a profana); a natureza aparece-nos, de facto, umas vezes carregada
de símbolos religiosos (ver estrofes 19, 20, 21, 23, 25 e 26), como
os que se apresentam a seguir e em que o significado figura na
coluna da direita
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elementos
presentes |
significado |
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o prado (sempre verde)
as flores
as 4 fontes
as árvores de fruto
a sombra
cantos
das aves
|
a Virgem
os nomes de Maria
os evangelistas
os milagres marianos
o amparo (que
Maria concede aos seus devotos
os
que enalteciam o nome de Maria |
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outras
vezes como cenário de encontros amorosos e fonte de vida.
Assim
o locus amoenus paradisíaco
alternará com o arquétipo do jardim de Vénus embora não raro se
confundam os dois em ambiguidade perfeita.
Em
Berceo a intenção de ir ao fundo das questões (e num homem deste
tempo isso significa ter do mundo uma perspectiva cristã, caldeada
por Aristóteles no domínio do pensamento e por Ptolomeu na sua
cosmovisão) está bem patente em Introducción,
estrofe 16:
Señores e amigos,
lo que dicho avemos
palabra es oscura,
esponerla queremos;
tolgamos la corteza,
al meollo entremos,
prendamos lo de dentro,
lo de fuera desemos.
Estamos
num mundo em que as canções de gesta estão ainda próximas - a Chanson
de Rolland é de cerca de 1100 (1080-1090) e a Terra constitui o
centro do Universo com o Sol e as outras estrelas girando em volta
dela.
Podemos
dizer que por este tempo a natureza não era mais do que um
prolongamento de Deus.
Ao
deixar a idade média vale a pena, pensamos nós, transcrever uma
passagem de LENOBLE (História
da Ideia de Natureza,1990, p. 204):
[...]
O mundo é menos rígido e, não
obstante, muito cheio. Uma
experiência interessante consiste em projectar, numa tela,
miniaturas da Idade Média. Curiosamente, fazem surgir o carácter
particular da representação da vida corrente. A vida e o mundo são
espantosamente "cheios" ou "povoados". [...] a
ausência de perspectiva indica que a percepção visual não é
ainda abstracta: vê-se
tudo porque tudo interessa, fica-se no espírito com cada pormenor
da cena. Além disso, pretende-se incluir tudo, tudo o que se refere
ao tema. Esta impressão é independente do estilo da
miniatura.[...] nas miniaturas medievais, o pormenor é amado por
ele, não é concebido como pormenor, isto é, parte de um conjunto,
mas como um todo que tem interesse. Desta forma, os campos são
cheios, as cidades buliçosas, cheias de animais e de plantas
visando cada uma ser o centro "desta arte" da obra;
efervescentes de homens, de mulheres e de crianças, parecendo cada
um ser um todo independente do resto e vivendo a sua própria vida
por ele mesmo. E o mundo sobrenatural também lá se encontra: os
anjos, os demónios, os santos do Paraíso e, finalmente, o mundo
fantástico que herdou das primeiras idades: os unicórnios, os dragões,
os basiliscos, tão reais, tão bem "vistos" como o resto.
OS
POETAS DO RENASCIMENTO
Muita
da poesia deste período foi veiculada através da égloga.
Como
acentua Bernardes (1988:
27): A novela de cavalaria
tinha praticamente esgotado as suas possibilidades estéticas e
ideológicas e a poesia bucólica assume-se como virtual
condensadora de uma nova visão do mundo. Já não uma visão do
mundo heróico-conservadora, mas uma mundividência humanista, em
que o Homem aparece como motivo e tema axial da prática estética.
Não
esqueçamos que no plano científico, o mundo está a mudar: Copérnico
(1473-1543) propõe um novo modelo sobre as revoluções dos corpos
celestes - o modelo heliocêntrico - que será tornado público no
mesmo ano da sua morte (1543).
Leonardo
da Vinci (1452-1519) descobrirá as leis da perspectiva, deixará
sob a forma de desenhos testemunhos do corpo humano que mantiveram a
sua actualidade até ao fim do séc. XIX, foi capaz de tirar algumas
conclusões de cariz geológico a partir da observação de fósseis
marinhos; (só o séc. XIX viria a reconhecer como fósseis o que o
séc. XVIII ainda considerava jogos da natureza).
O
nosso Pedro Nunes nasce em 1502, grande matemático, inventor do nónio.
Todos estes homens contribuíram decisivamente para fazer o
Renascimento.
Bernardim
e Sá de Miranda fazem a ligação entre a Idade Média e o
Renascimento. Camões, Diogo Bernardes, António Ferreira e Frei
Agostinho da Cruz situam-se já no que veio a chamar-se de
Maneirismo.
De
todos eles, a perspectiva mais clássica, mais racionalizante é a
de António Ferreira embora não se possa recusar esta segunda
característica a Sá de Miranda.
São
como já se disse as églogas os poemas que fornecem mais informação
sobre o relacionamento dos poetas com a natureza. Note-se a este título
os próprios nomes dos pastores carregados de significado: Salício (salgueiro chorão = Salix), Nemoroso (bosque sombrio = Nemus), Agrário, Serrano, Umbrano, Frondélio, etc.
Também
o vocabulário pastoril é típico: abelhas,
água, árvores (salgueiros, freixos), erva,
flores, gado (cabras, ovelhas), pastores, prados, rio,
sombras, vento,
etc.
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