2.
BERNARDIM
RIBEIRO (1482?-1552?)
Creio
que vale a pena chamar a atenção para alguns aspectos
interessantes das églogas de Bernardim:
a)
- Descrição
realista do Alentejo em período de seca e de fome na égloga II
(Ribeiro, s/d: 26 e 27):
[...]Quando as fomes
grandes foram,
que Alentejo foi perdido,
da aldea que chamam o
Terram
foi este pastor fogido.
Levava um pouco de gado,
que lhe ficou de outro muito
que lhe morreo de cansado;
que Alentejo era enxuto
de agoa, e mui seco de prado.
Toda a terra foi perdida!
no campo do Tejo só
achava o gado guarida:
ver Alentejo era um dó!
e Jano, para salvar
o gado que lhe ficou,
foi esta terra buscar,
e se um cuidado levou,
outro foi ele lá achar.[...]
Tal descrição adquire carga metafórica e constitui já um
mau prenúncio para a resolução do problema amoroso de Jano já
que se um cuidado levou,/ outro foi ele lá achar.
b)
- leia-se
ainda na mesma égloga a descrição de Aónia (op. cit., 28-31). A
figura airosa de Aónia entra em equilíbrio com a natureza
[...]Vestido
branco trazia,
um pouco afrontada andava,
fermosa bem parecia
aos olhos de quem na olhava.[...]
Não
é difícil imaginar o quadro A Alegoria da Primavera (1477?) de Botticelli, alegoria da unidade e da harmonia entre a natureza e a civilização,
segundo Luciano Berti (História da Arte, Publicações Alfa, v. 5,
p. 238) quando se lê, por exemplo, (op. cit p.2 9):
Fez delas [das
flores] uma capela,
e soltou os seus cabelos
que eram tão longos como ela;
mas
Jano, pelo contrário, entra em conflito com ela e para não ser
visto
escondeo-se antre um prado:
e
logo a seguir
Joana flores colhia,
Jano colhia cuidado.
O autor introduz, pois, discretas dissonâncias a preparar um
desfecho infeliz.
c)
- Chamaria
ainda a atenção para a égloga III (op.cit. p.65-67)
[...]I-vos,
minhas cabras, i-vos,
gado bem aventurado,
em outro tempo passado,
ficai-vos, ou despedi-vos
despojo de meu cuidado:
Já vos não verei comer
penduradas no penedo
onde vos soía ver
andar saltando sem medo,
sem medo de me perder.
Já vos mais não cantarei
nenhuns versos, nem cantigas,
mas a todas contarei
as minhas tristes fadigas
com que sempre viverei:
Minhas cabras desditosas,
já vos não verei roer
as salgueiras amargosas,
que soíeis de pascer
pelas ribeiras fragosas.
Andarei de vale em vale,
e de lugar em lugar,
não acharei quem me fale,
nem com quem possa falar,
nem quem diga que me cale;
Sobir-me-hei aos outeiros,
e deita-los-hei a giros
pelos pés dos sovereiros,
meus suspiros derradeiros.
E vir-me-hei assentar
à sombra de uma asinheira
que está fora do logar
ao longo da ribeira
onde eu soía andar:
Verei a casa caída,
sem parede, e sem telhado,
e verei meu mal dobrado,
cuidado de minha vida,
ó vida de meu cuidado.
Ouvirei cantar os galos
naldéa, e ladrar os cães,
e jazerei entre os pães,
verei berrar entre os vales,
os novilhos pelas mães:
Deles berrarão do fato,
por que mor pena me deem
chorarei meu desbarato,
eu não sei por quem me mato,
mato-me não sei por quem.[...]
O poeta está em rotura com a natureza: despede-se do seu
gado - as suas cabras.
d)
- Ainda
um último aspecto: a função catártica da natureza. Esta função
é visível na égloga IV (op. cit.,130)
[...]-Ó Mondego, meu amigo,
senhor das craras aguas,
a ti só meus males digo,
minhas mágoas vão contigo,
contigo vão minhas mágoas.
3.
CRISFAL
Esta obra tem sido, ora atribuída a Bernardim Ribeiro, ora a
Cristovão Falcão. O problema continua em aberto e não é nosso
propósito debatê-lo.
Há, no entanto aspectos interessantes de encarar a natureza,
pelo que nos iremos deter, aqui, um pouco, quais sejam a natureza
como espaço edénico, a natureza como inimiga e a transformação
do homem na própria natureza, ou seja, a
hominização da natureza.
Do primeiro aspecto, veja-se a descrição desse espaço idílico,
que envolve duas das mais belas serras de Portugal, a serra de
Sintra e a serra da Arrábida (estrofe 1)
Antre Sintra, a mui prezada,
e serra de Ribatejo
que Arrábeda é chamada,
perto donde o rio Tejo
se mete n'água salgada,[...]
Do segundo aspecto, a natureza vista como um espaço
agressivo, um espaço de exílio, vejam-se as estrofes 7, 8 e 9:
[...]
levarom-na
a longes terras,
esconderom-na entre uas serras,
[...]
(est.7)
[...]
Em vale mui solitário,
sombrio e saudoso,
sendo [o] monte temeroso,[...] (est. 8)
[...]
Ali sobre ua ribeira
de mui alta penedia,
donde a água d'alto caía,[...]
Quanto ao terceiro aspecto, a transformação do homem na própria
natureza, retenham-se dois excertos das estrofes 10 e 23:
[...]
Não mudam tempos nem anos
ao triste a tristeza;
antes tenho por certeza
que o longo uso dos danos
se converte em natureza.[...]
[...]
As
ribeiras, em eu vê-las,
correm mais do que é seu foro,
entrando meu chorar nelas;
e pois ajudam meu choro,
quero só falar com elas[...]
Trata-se
da identificação do homem com a natureza na dor que é, de resto,
visível noutras estrofes.
4.
SÁ
DE MIRANDA (1481 - 1558)
Segundo
Bernardes (1988, op. cit., p. 117-118): [...]
em
Miranda o pastor adquire a consciência do que de irracional e
absurdo existe no Amor ao mesmo tempo que avalia as próprias
possibilidades humanas de lhe resistir
[...] e mais adiante [...]
A
arcádia mirandina é fundamentalmente, um espaço e um tempo de Razão.
Razão que exclui liminarmente o estado amoroso, sem comprazimentos
masoquistas (como em Bernardim) nem utopias de desejo irreservado
(como em Camões).
A
este título leia-se do poema 91 (p. 69).
[...]
se va mi rabi y mi voz entonando
por que con las aves mis males quejemos;
lloremos con la agua por que suspiremos
al son de los vientos que van murmurando.
Ansí acordados los suspiros míos,
mis lloros y quejas crecerán los vientos;
y los de las aves, con los mis lamientos;
y con las mis lágrimas crecerán los rios.
[...]
Sublinhe-se:
[...]se va mi rabi y mi
voz entonando
por que con las aves mis males quejemos;
há,
pois, uma tentativa de sobreposição entre o poeta e a natureza com
o fim explícito de se queixar(!); veja-se também:
[...]lloremos con la agua por que suspiremos
al son de los vientos que van murmurando
O poeta vai influenciar a natureza com o seu choro, vai
transformá-la mas ao mesmo tempo vai pedir-lhe a solidariedade que
os homens lhe recusam. Há, pois, um diálogo, de resto visível no
poema 94, a tão conhecida égloga Basto,
(p. 137):
[...]Falemos com a
natureza,
andando pelas florestas[...]
e
numa antecipação a Camões, na mesma égloga Basto
(p. 150):
[...] o que não espermentares
não cuides que o sabes bem;[...]
A
terminar esta incursão pela poesia de Sá de Miranda, leiamos este
maravilhoso e conhecido soneto (poema 122, p.300), soneto de amor à
natureza e de melancolia à chegada do outono, poema que veio a ser
glosado por Jorge de Sena no poema ...De
passarem aves (Sena, 1961):
O Sol é grande, caem co'a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d'alto cai acordar-m'-ia
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu'em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d'amores.
Tudo
é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m'eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!
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