Há já muito tempo que eu não lia poemas do meu querido
amigo António Menano e eis que de uma vez só me chegam às mãos
os seus dois últimos livros.
Abordemos hoje Teoria do Vidro, obra que ganhou o
Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres e que foi editada
pela sua Junta de Freguesia. Constitui ela uma curiosa reflexão
sobre o conhecimento do real e encontra-se dividida em três partes:
Dialéctica do Espelho, Pregão do Vidro (com um subtítulo
Alusões) e Vozes. É um conjunto de poemas escritos
entre 81 e 86 que o poeta teria na sua gaveta esperando por melhores
dias. E teve que esperar quase 20 anos para os ver em letra de
forma.
São conhecidos em literatura estes recursos ao espelho e
ao vidro. O primeiro exibe propriedades reflexivas, isto é permite
dar a conhecer o real não directamente mas através de uma sua réplica,
a imagem, que é um eco, se assim me posso exprimir, do mundo
concreto. O vidro, ainda quando transparente, dá-nos uma versão
(chamemos-lhe assim à falta de palavra mais rigorosa), refractada
do real.
Em qualquer dos casos estamos perante uma realidade que
foi filtrada. Deste efeito de filtro encontramos alusões
muito interessantes na obra de Carlos de Oliveira, por exemplo.
Estes filtros podem roubar objectividade à análise do
real mas permitem que o poeta encontre novos significados dando ao
sujeito uma importância que de outro modo não teria. O poeta vive
disso: provoca o real, interpondo entre si e o real filtros que
enriquecem o conhecimento ao mesmo tempo que permitem a fruição
estética, inexistente na descrição puramente denotativa ou
informacional (ou científica se preferirem). Desta complexidade nos
dá conta, por exemplo, o poema A dama de pé de cabra (p.
15-16): o verdadeiro está ao lado do falso/ as nódoas sobre o
pano, o labirinto do bosque/ esconde, por vezes, a transparência:
(...) conjunto de contradições ou pelo menos de tomadas de
vista complementares.
Há,
pois, que desconfiar da aparência das coisas e sugerir novas
interpretações: é trabalho de todos, dos cientistas sem dúvida
mas também dos escritores , dos pintores, de todos os artistas em
geral.
No poema Os
quatro caminhos (p. 17) há uma alusão à memória e à
transformação do mundo em função do tempo. Esta preocupação do
tempo já vem de longe como referiu e bem António Pedro Pita no
prefácio a Transire. Citem-se a propósito os versos finais:
(...) filamentos/ conservados na memória/ de quem ainda não
sabe/ serem os quatro caminhos/ um recinto circular. É, na
minha leitura, como se estivéssemos continuamente, a refazer um
mesmo caminho. Muito já se escreveu sobre a circularidade do tempo
que para alguns assume a geometria, não do círculo mas antes da
espiral. A repetição “circular” processar-se-ia, então,
noutro plano.
Esta preocupação de procurar distinguir o real dos vários
“enfoques” possíveis leva António Menano a escrever poemas tão
curiosos como o taxidermista, esse profissional (em extinção?) que
imita a vida (Nestes rituais imita-se a vida / enchem-se de
estopa as palavras / usa-se a serradura em vez de sangue/ e as
aranhas gostam muito de assistir/ à espera das formigas e das
abelhas / inocentes). O taxidermista é, no fundo, um
mistificador como o poeta: a sua grandeza é também a sua maior
fraqueza (criar uma ilusão... perfeita).
O final desta dialéctica do espelho é quase toda
dedicada à memória (Memória da Fontela. p. 29) e é ao
reescrevê-la sob a forma de poemas que o poeta descobre que De
atirar pedras/ para o poço:/ matava/ a morte/ aos doze anos. É
porventura dos versos mais belos e intensos deste livro já que
matar a morte é tentar anular o vazio da vida e pelos vistos é
coisa que já se pode fazer aos doze anos.
Pregão de Vidro (2ª parte) (p. 38 a 49) é um pequeno conjunto de alusões
onde se pressente uma abertura para a vida e por conseguinte uma
maior explicitação do diálogo que se procura na audição de
determinados músicos, na presença da pessoa amada (Sentados amámo-nos/
como se de ódio fosse este amor (p. 46). Mais uma vez, nestes
dois versos citados, se sente a pequena diferença que às vezes
existe entre o verdadeiro e o falso numa aproximação ao que poderíamos
chamar a tentação do oximoro, isto é a reunião numa mesma
palavra ou num mesmo conjunto de palavras de ideias contraditórias.
Na última parte Vozes, misturam-se recordações e
o diálogo iniciado em Dialéctica do Espelho continua. Não
posso deixar de fazer um pequeno reparo que não põe em causa, nem
o livro nem o poema que vou referir; trata-se de Voz em surdina
(p. 53). Há neste poema alusões a algumas obras musicais
certamente ouvidas em versões editadas em país de língua inglesa
e daí que apareçam versos onde se fala de The Elise que é
uma sonata de Beethoven. Teria sido melhor utilizar o título
original Für Elise
ou na tradução portuguesa Para Elisa. Reparo semelhante me
merece (...) era uma “Bagatelle/ in A minor”. Ora esta é
ainda a terminologia inglesa que nós normalmente não
utilizamos. Seria mais conveniente ter escrito Bagatelle em Lá
Menor. Ainda no mesmo poema e para concluir estas “impertinências”
que o António Menano me perdoará, umas linhas mais abaixo escreve
“The Gate of Kiev” e “The Gnome”. Ora estes são
dois dos quadros de Os Quadros de uma Exposição de
Mussorgsky cuja tradução portuguesa é Grande Porta de Kiev,
e Gnomo, obra por sinal gravada, pelo menos por uma pianista
portuguesa, a Maria José de Souza Guedes. De resto, e de um ponto
de vista estritamente prosódico, o efeito estético obtido com a
tradução portuguesa destas peças, é muito melhor. A ter em conta
numa eventual reedição que se deseja e se deseja porque estamos na
presença de uma obra importante na evolução do António Menano e
cujo grande defeito é nos aparecer com quase 20 anos de atraso.
Trata-se de uma poesia que privilegia as ideias em
detrimento de aspectos formais que embora não estejam de todo
ausentes, aparecem com grande parcimónia (alguma rima aqui e ali,
algumas aliterações e as metáforas quando presentes são tão
discretas, os vocábulos tão comuns, que exigem do leitor uma
leitura muito atenta).
Foi sem dúvida um reencontro muito gratificante e de tal
modo o foi que muito em breve falarei do seu último livro Transire
– Ventos no Casaco.
Luís Serrano,
Aveiro, 07-02-2004
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