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Teoria do vidro 

de António Augusto Menano

"Região Bairradina", n.º 811, Junho 2004 

 

Há já muito tempo que eu não lia poemas do meu querido amigo António Menano e eis que de uma vez só me chegam às mãos os seus dois últimos livros.

Abordemos hoje Teoria do Vidro, obra que ganhou o Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres e que foi editada pela sua Junta de Freguesia. Constitui ela uma curiosa reflexão sobre o conhecimento do real e encontra-se dividida em três partes: Dialéctica do Espelho, Pregão do Vidro (com um subtítulo Alusões) e Vozes. É um conjunto de poemas escritos entre 81 e 86 que o poeta teria na sua gaveta esperando por melhores dias. E teve que esperar quase 20 anos para os ver em letra de forma.

São conhecidos em literatura estes recursos ao espelho e ao vidro. O primeiro exibe propriedades reflexivas, isto é permite dar a conhecer o real não directamente mas através de uma sua réplica, a imagem, que é um eco, se assim me posso exprimir, do mundo concreto. O vidro, ainda quando transparente, dá-nos uma versão (chamemos-lhe assim à falta de palavra mais rigorosa), refractada do real.

Em qualquer dos casos estamos perante uma realidade que foi filtrada. Deste efeito de filtro encontramos alusões muito interessantes na obra de Carlos de Oliveira, por exemplo.

Estes filtros podem roubar objectividade à análise do real mas permitem que o poeta encontre novos significados dando ao sujeito uma importância que de outro modo não teria. O poeta vive disso: provoca o real, interpondo entre si e o real filtros que enriquecem o conhecimento ao mesmo tempo que permitem a fruição estética, inexistente na descrição puramente denotativa ou informacional (ou científica se preferirem). Desta complexidade nos dá conta, por exemplo, o poema A dama de pé de cabra (p. 15-16): o verdadeiro está ao lado do falso/ as nódoas sobre o pano, o labirinto do bosque/ esconde, por vezes, a transparência: (...) conjunto de contradições ou pelo menos de tomadas de vista complementares.

Há, pois, que desconfiar da aparência das coisas e sugerir novas interpretações: é trabalho de todos, dos cientistas sem dúvida mas também dos escritores , dos pintores, de todos os artistas em geral.

No poema  Os quatro caminhos (p. 17) há uma alusão à memória e à transformação do mundo em função do tempo. Esta preocupação do tempo já vem de longe como referiu e bem António Pedro Pita no prefácio a Transire. Citem-se a propósito os versos finais: (...) filamentos/ conservados na memória/ de quem ainda não sabe/ serem os quatro caminhos/ um recinto circular. É, na minha leitura, como se estivéssemos continuamente, a refazer um mesmo caminho. Muito já se escreveu sobre a circularidade do tempo que para alguns assume a geometria, não do círculo mas antes da espiral. A repetição “circular” processar-se-ia, então, noutro plano.

Esta preocupação de procurar distinguir o real dos vários “enfoques” possíveis leva António Menano a escrever poemas tão curiosos como o taxidermista, esse profissional (em extinção?) que imita a vida (Nestes rituais imita-se a vida / enchem-se de estopa as palavras / usa-se a serradura em vez de sangue/ e as aranhas gostam muito de assistir/ à espera das formigas e das abelhas / inocentes). O taxidermista é, no fundo, um mistificador como o poeta: a sua grandeza é também a sua maior fraqueza (criar uma ilusão... perfeita).

O final desta dialéctica do espelho é quase toda dedicada à memória (Memória da Fontela. p. 29) e é ao reescrevê-la sob a forma de poemas que o poeta descobre que De atirar pedras/ para o poço:/ matava/ a morte/ aos doze anos. É porventura dos versos mais belos e intensos deste livro já que matar a morte é tentar anular o vazio da vida e pelos vistos é coisa que já se pode fazer aos doze anos.

Pregão de Vidro (2ª parte) (p. 38 a 49) é um pequeno conjunto de alusões onde se pressente uma abertura para a vida e por conseguinte uma maior explicitação do diálogo que se procura na audição de determinados músicos, na presença da pessoa amada (Sentados amámo-nos/ como se de ódio fosse este amor (p. 46). Mais uma vez, nestes dois versos citados, se sente a pequena diferença que às vezes existe entre o verdadeiro e o falso numa aproximação ao que poderíamos chamar a tentação do oximoro, isto é a reunião numa mesma palavra ou num mesmo conjunto de palavras de ideias contraditórias.

Na última parte Vozes, misturam-se recordações e o diálogo iniciado em Dialéctica do Espelho continua. Não posso deixar de fazer um pequeno reparo que não põe em causa, nem o livro nem o poema que vou referir; trata-se de Voz em surdina (p. 53). Há neste poema alusões a algumas obras musicais certamente ouvidas em versões editadas em país de língua inglesa e daí que apareçam versos onde se fala de The Elise que é uma sonata de Beethoven. Teria sido melhor utilizar o título original  Für Elise ou na tradução portuguesa Para Elisa. Reparo semelhante me merece (...) era uma “Bagatelle/ in A minor”. Ora esta é ainda a terminologia inglesa que nós normalmente não utilizamos. Seria mais conveniente ter escrito Bagatelle em Lá Menor. Ainda no mesmo poema e para concluir estas “impertinências” que o António Menano me perdoará, umas linhas mais abaixo escreve “The Gate of Kiev” e “The Gnome”. Ora estes são dois dos quadros de Os Quadros de uma Exposição de Mussorgsky cuja tradução portuguesa é Grande Porta de Kiev, e Gnomo, obra por sinal gravada, pelo menos por uma pianista portuguesa, a Maria José de Souza Guedes. De resto, e de um ponto de vista estritamente prosódico, o efeito estético obtido com a tradução portuguesa destas peças, é muito melhor. A ter em conta numa eventual reedição que se deseja e se deseja porque estamos na presença de uma obra importante na evolução do António Menano e cujo grande defeito é nos aparecer com quase 20 anos de atraso.

Trata-se de uma poesia que privilegia as ideias em detrimento de aspectos formais que embora não estejam de todo ausentes, aparecem com grande parcimónia (alguma rima aqui e ali, algumas aliterações e as metáforas quando presentes são tão discretas, os vocábulos tão comuns, que exigem do leitor uma leitura muito atenta).

Foi sem dúvida um reencontro muito gratificante e de tal modo o foi que muito em breve falarei do seu último livro Transire – Ventos no Casaco.

Luís Serrano, Aveiro, 07-02-2004 

 


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