Com data de 13 de Novembro enviou-me o nosso querido e
saudoso Manuel Amaral a sua última obra, editada pela Unicepe, com
poemas que eu já conhecia na sua quase totalidade. Acusei
imediatamente a recepção pelo telefone e aproveitei para desejar o
bom Natal que não vinha longe, mas a que ele já não pôde estar
presente. Prometi-lhe nessa altura que escreveria umas notas, não
nos dias seguintes mas assim que satisfizesse uns compromissos que
tinha. Na dedicatória diz-me estas palavras simples mas tão
tocantes: Para Luís Serrano, de que o vento nos traz novas,
finalmente o livro de versos, de que gostaria tanto de ouvir
palavras suas. (não resisto a destacar as últimas palavras).
E é aqui que eu fico com um grande peso na consciência.
Por que é que eu não passei o livro para a frente de tudo o que eu
tinha a fazer? O resto podia esperar; o livro do Manuel Amaral não
podia. Como é que eu não percebi isso? Quando o Vítor me
telefonou, eu apenas sabia que era um telefonema de Amarante. Peguei
no auscultador e disse qualquer coisa como isto: Manuel, estou em
falta, perdoe-me o atraso em lhe dar a opinião prometida sobre o
seu livro. Imediatamente, o Vítor me interrompeu para me dizer:
infelizmente não é o Manuel, sou o Vítor, o filho, para lhe dizer
que o pai faleceu no dia 18 tendo já tentado contactar consigo sem
o conseguir.
Senti um baque no coração, eu sabia que a sua saúde era
precária, mas apesar de tudo não contava e ao primeiro momento de
alegria sucedeu o momento de muita tristeza e de um grande remorso
por não ter chegado a escrever aquelas palavras que lhe poderiam
ter dado algum contentamento.
Tínhamo-nos conhecido em Tondela num desses encontros de
poesia que a Sol XXI
organizava. Tinha delicadezas que hoje se encontram cada vez mais
raramente. Quis que fosse eu a apresentar Alpondras na feira do
livro do Porto (Maio de 2002) e essa foi a última vez que o vi.
Fi-lo com grande prazer, com aquela certeza de estar rodeado de
amigos: a Maria Vitória (a companheira de sempre), os filhos, as
noras e os três netos e a neta. Numa situação dessas, a satisfação
que se tira é a de estarmos a fazer qualquer coisa que ninguém nos
obriga mas que fazemos com o prazer das coisas simples (como quando
se toma um chá em família, por exemplo).
Tudo neste livro é também familiar, desde aquela
espantosa fotografia a preto e branco com o Teixeira de Pascoaes até
à temática dos poemas: gente que conheceu, directa ou
indirectamente (Bento de Jesus Caraça, Luís Veiga Leitão,
António Nobre, o vizinho Cândido, Miguel Torga, Agostinho
Neto, Ilídio Sardoeira, Carlos Paredes, Paulo Cid,) lugares
que visitou na companhia da família como Barcelona, Andorra,
Lyon, Grenoble, Armona e poemas do quotidiano que o mostram sempre
como um homem atento aos outros e ao mundo que o envolvia.
A sua poesia era fortemente narrativa e pormenorizada
quase até à exaustão como se temesse perder algum bocadinho da
realidade com que conviveu durante 82 anos.
A sua arte poética (que este palavrão me seja perdoado,
Manuel) regia-se por coisas simples como simples era este homem lá
das faldas do Marão. Basta relembrarmos aqui estes versos da p. 95;
As medidas dos meus versos,/ [...] são pelo coração, pela voz,/
pelo ritmo, pelo ouvir. // São o respirar, o sentir / e o
exprimir,[... É muito curioso que Manuel Amaral tenha transformado
todos estes verbos em substantivos. É que ele era um homem das
coisas essenciais (substantivas) embora uma primeira leitura nos
pudesse induzir em erro pelo tamanho de alguns poemas que poderiam
ter sido transformados em quatro ou cinco. Poderiam, mas ele quis
assim e porventura não lhe faltavam razões. É que deste modo
ficavam bem assinaladas as ligações, o tudo ter a ver com tudo. Os
seus órgãos dos sentidos estavam sempre alerta, mau grado as
deficiências da visão e da audição, que ele compensava com uma
grande atenção a tudo e a todos.
Os dois poemas em forma de carta ao vizinho Cândido são
a este respeito paradigmáticos:
o espanto perante aquilo que no estrangeiro é diferente
do português, o detalhe que põe em tudo, as próprias armadilhas
da língua francesa a um ouvido pouco afeito, de tudo Manuel dá
conta para que o vizinho Cândido possa de algum modo partilhar com
ele um certo mundo algo diferente.
Que dizer dos muitos poemas em que fala de modo mais
directo ou menos directo de Teixeira de Pascoaes? É a homenagem de
alguém que desde menino sempre reverenciou esse ex-libris de
Amarante e que se habituou a visitar o velho vate na sua casa de Gatão.
Os poemas não estão datados, infelizmente, o que nos
dificulta alguma compreensão em termos de evolução da escrita do
Manuel Amaral mas é nossa convicção (convicção, nada mais) que
os seus poemas tenderiam agora para uma maior contenção como se não
houvesse tempo a perder e se pudessem exprimir ideias e sentimentos
com menos palavras. Estarei errado? Vem isto a propósito de alguns
dos últimos poemas, nomeadamente desse belíssimo poema da p. 105,
A Hora de Ficar. Acho-o tão belo, do melhor que o Manuel escreveu,
que não resisto a transcrevê-lo:
Há um livro que espera
com folhas por abrir,
um fruto que oferece
polpa, promete sumo,
um comboio a partir,
ponteiros sobre a hora,
um barco que me chama,
breve a largar o cais.
Não leio, não, nem provo,
nem parto, fico aqui:
as gaivotas acenam,
as colinas ondulam,
escorre-me dos dedos
a areia doirada, é
teu corpo que tacteio,
tua fala a brisa a diz,
teus olhos a aveleira
me estende nos seus ramos,
na mão colho os medronhos
que enchem a tua boca,
trazem sabor de ti.
O
Manuel partiu. Ficámos todos mais pobres mas a sua vontade de viver
era tanta que nos deixou (p. 106) estas palavras de esperança,
palavras de alguém que ainda não tinha deixado de acreditar na
humanidade: Deixa germinar as sementes, / deixa crescer os pampos, /
abrir as pétalas, / fecundar os frutos / no esplendor desta manhã.
Aqui
fica a promessa: vamos tentar, Manuel, vamos tentar. Até sempre!
Luís Serrano,
Aveiro, 24-01-04.
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