Ascêncio
de Freitas não pára de nos surpreender, não apenas pela
quantidade de livros que tem publicado ultimamente, mas pela sua
qualidade atestada pelos prémios que tem obtido. Este, por exemplo,
recebeu o Prémio Literário de Sintra / Ferreira de Castro 2002 e
é uma edição da Câmara Municipal de Sintra.
A acção passa-se numa das aldeias da serra da Lousã,
Talasnal, e depreende-se que decorre já nos finais do antigo
regime, uma vez que existem alusões ao 25 de Abril que terá
chegado ao Talasnal embrulhado em denso nevoeiro, como se esperaria
que chegasse o D. Sebastião, com as populações confusas mas ainda
assim esperando que desta vez é que lhes iriam resolver os
problemas.
O Talasnal representa tudo o que é retrógrado neste país,
é uma aldeia perdida com acessos difíceis, é um eco do nosso
atraso atávico, é a crendice, é a nossa incapacidade de nos
organizarmos e vivermos em comunidade, é a nossa tendência para
sobreviver de expedientes, onde há sempre um chico esperto
tentando ultrapassar os outros não importa de que modo.
O próprio autor, a p. 109, é muito claro sobre o carácter
simbólico do Talasnal: (...) essa realidade do lugar do
Talasnal, que não é mais nem menos do que a realidade de todo o país,
(...).
É muito curiosa a epígrafe com que o livro se inicia:
uma das personagens principais (alguém que andou metido na guerra
de Espanha, pelo lado dos republicanos, e que dessa experiência
trouxe menos quatro dedos na mão direita e uma fala onde se
misturam o português e o espanhol): “Sy, hombre, lo hay,
porque lo tenemos en el corazón.” – respondeu o Mano Galhorda
quando lhe perguntaram se havia, algures, o lugar do Talasnal.
A partir daqui, a dúvida instalou-se: o Talasnal existe?
E Portugal existe? Não será tudo isto um sonho, um pesadelo
surrealista?
Para esta configuração muito contribuem a paisagem
serrana com as suas ravinas e uma casa onde uma fenda se abre, por
razões desconhecidas, obrigando o seu proprietário a tapá-la
todos os dias, casa que vai empurrando outra casa serra abaixo (a
dos Sanromões cujo chefe, Zé Maria Sanromão é o explorador sem
escrúpulos daquela pobre gente obrigada a trabalhar numa vaga fábrica
de botões). Acrescentem-se a estes dados os próprios nomes dos
intervenientes (Emílio Riço, Olívia de Ataíde, Teófilo Lagarto,
Mafaldo Mariquito, Rosa Gardunha, Cassilda Vidreira, Mano Galhorda,
a ninfomaníaca Lurdes Macaia, Zeca Maragato falecido em circunstâncias
estranhas mas na sequência de castração cuja autoria nunca foi
descoberta, Clementina Pureza que contrariando o apelido traía o
marido, João Panamana, Urbelino Cagão, filho de Abrãao Cagão e
irmão de Ariovisto e do Zelindo, Inês Gandarinha, a Maricoca
Maragato e as duas beatas, Mirtes e Lídia envolvidas a páginas
tantas num caso de pedofilia com um miúdo de doze anos. Nomes tão
ásperos e incomuns como a própria aspereza da serra. E para
culminar este quadro com algumas ressonâncias de humor pícaro
junte-se a japonesa, mulher que coloca alguns problemas do foro anatómico
aos homens da terra e que é quem compra os botões e garante o
escoamento do produto para o estrangeiro (para o Japão, presume-se)
e que desaparece quase misteriosamente quando chega o 25 de Abril e
ela percebe que os Sanromões deixaram de lhe interessar.
Não faltam nesta obra, que se lê de um fôlego, tal é a
força satírica que dela emana cada página, cada parágrafo, os
lobisomens e até uns desgraçados caranguejos transportando
luzinhas para assustar os incautos.
Neste inferno onde se luta ao nível da subsistência mínima
só o Mano Galhorda é um homem a sério donde ainda não
conseguiram varrer o sonho, consubstanciado no carinho com que houve
o piozinho dos pássaros e são eles a nossa esperança (p.
149). E o autor termina, por um momento perdendo o tom sarcástico
mas não a grande tristeza de ver como somos um país adiado: (...) porque
quanto ao resto, olhe, é só tristezas, o correr da vida parece que
embrulhou tudo e até aquele Portugal antigo que nós tínhamos e
que esteve dormido por século seculorum, acordou mas foi para começar
a ficar outra vez igual ao que era em antes, ai, Deus Nosso Senhor
me valha!, se é que não está a morrer devagarzinho pela raiz e
sem nenhuma esperança de cura – e sem a gente o poder deixar
morrer de uma vez por todas (...).
Uma leitura proveitosa e além do mais divertida, mas atenção,
que isso não iluda o leitor: há aqui, sob forma ficcional uma
reflexão muito séria sobre este país que é o nosso.
Luís Serrano, Abril 2004.
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