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Estória do homem que comeu a sua morte
de Ascêncio de Freitas

"Região Bairradina", n.º 742, Janeiro 2003

 

 

Estória do Homem que Comeu a sua Morte, editado pela Editorial Caminho (O Campo da Palavra) e que acabei de ler há alguns dias, só não foi uma grande revelação para mim, pois que deste autor já nada me espanta depois de ter lido O Canto de Sangardata, uma das obras mais importantes da ficção portuguesa dos últimos anos. Bem sei que este livro é feito de contos pertencentes a outros livros mais antigos que eu desconhecia, (mea tanta culpa), mas nem por isso deixa de ser um belo mostruário das capacidades de Ascêncio de Freitas.

A primeira qualidade que vejo nele é a capacidade para adaptar os aspectos formais à estória que se pretende contar (aquilo a que o Eugénio Lisboa chamou, no prefácio, o estilo). Mas então há que retirar as óbvias conclusões: o estilo de Ascêncio de Freitas é um estilo multímodo, polifacetado com o qual, porventura, mais facilmente e mais adequadamente vê o mundo, um pouco, como se se tratasse de uma visão polifónica, passe a comparação que é um pouco abusiva. Mas não sei se me faço entender: é como se o autor mudasse de lentes para ver a realidade ou mudasse de posição (de ponto de vista), como quando inclinamos a cabeça para ver de um outro ângulo. A linguagem utilizada é fundamental para isso. A arte é, de resto e fundamentalmente, um processo formal, isto é, um processo que não pode descurar os aspectos formais sob pena de se suicidar. Não basta ter uma boa estória para contar, é preciso saber contá-la.

Falava da linguagem para pôr em destaque, neste livro, as suas funções: a de traduzir a oralidade, no que se refere aos contos que se debruçam sobre a realidade moçambicana (Noite alumiada de vermelho; Amanhece, manhã, amanhecendo; Barro não é pedra, não; Chove chuva, chuverando; Lukutúkue; Mainato Paulino e sô Basilo) e aqui talvez não seja descabida uma aproximação a Guimarães Rosa que teve decisiva influência em escritores que vivem ou viveram nas ex-colónias portuguesas como Luandino Vieira, por exemplo.

Noite Alumiada ... para falar do primeiro conto cuja acção se passa em Moçambique, é de uma grande delicadeza pondo o acento tónico no remorso que colhe cada homem no mais fundo de si próprio mesmo quando se trata de mostrar as valentias de macho. No meio da exploração de um povo miserável, há muitas vezes da parte do opressor (que às vezes não passa de opressor oprimido, ou seja, opressor ao serviço de terceiros) o desabrochar de sentimentos delicados que o levam a envergonhar-se do seu comportamento. Digamos que não chega mas já é alguma coisa, ou seja quando alguém se envergonha de uma feia acção, nem tudo está ainda perdido.

Barro não é pedra, não é um conto notável, ou melhor, é uma verdadeira novela, não apenas pelo tamanho mas sobretudo pela complexidade narrativa que apresenta, narrativa da primeira pessoa dando largas a um léxico variado e trabalhado, em que a reflexão e a narração dos factos se alternam de uma forma equilibradíssima.

Chove chuva... é um conto que revela um aspecto sórdido das relações entre brancos e pretos no tempo do colonialismo. Infelizmente, este conto não é pura ficção. Aconteceram casos destes em que o nativo foi julgado como uma coisa (e portanto, um escravo). O conto tem uma força que nos tira a respiração, tal é a violência que nos é lançada em rosto. É daquelas situações em que a vítima não consegue perceber qual foi o seu erro ou o seu crime a menos que seja contado como crime o facto de se existir.

De Lukutúkue direi que se trata de um canto de denúncia do que foram os últimos tempos do colonialismo e do papel da polícia política. Está muito bem construído alternando a narração dos factos com o refrão das partes 1, 6 e11, como se de um poema se tratasse: Lukutúkue morreu!...Mas tem mal assim, não, os passarinho no mato, quando que está cantar, canta lukutúkue lukutúkue!...De facto, toda a natureza canta lukutúkue porque esse é o canto da vida e da solidariedade, não o do ódio. Excelente é o mínimo que se pode dizer.

Não precisaria de mais exemplos para dizer que estamos perante um grande livro de contos, essa arte da comprimir no espaço um acontecimento, uma estória, mas a que não deve faltar o sentido do exemplo e proveito.

Dos restantes contos, uma palavra ainda para Memória Sobreposta. De facto, trata-se de um pequeno romance de cerca de 60 páginas. Na realidade, a estrutura narrativa é suficientemente complexa para que lhe chamemos romance (com as suas analepses – os flash-back do cinema). De resto, há uma verdadeira linguagem fílmica, que nos recorda o processo de montagem cinematográfica com alternância de lugares onde decorre a acção desta estória. A África colonial e a metrópole surgem como as duas faces de uma mesma moeda, a das contradições de lá e de cá, o sem sentido da morte no teatro militar deixando órfãos de um lado e de outro.

Os contos Segunda Mentira, Quarta Mentira e Quinta Mentira acordam na minha memória as histórias de caçadores que sempre hiperbolizavam as suas façanhas venatórias e acordam em mim algumas que vim a ler nos livros do Alphonse Daudet.

As últimas estórias são também deliciosas e até os títulos dão bem conta da singularidade dos factos a que aludem: Estória dos meninos que não quiseram repartir sua galinha que não tinham e Estória do homem que comeu a sua morte.

Estão neste livro 18 contos que são todos contos dignos de figurar em antologias. Digo-o com forte convicção, de tal modo foi a impressão que me causaram.

Fico hoje, por aqui, caro leitor. Não digo nem mais uma palavra sobre o livro. Quis apenas aguçar-lhe o apetite e manhosamente, escondo-lhe a trama e o significado dos contos restantes. Tenha um novo ano, o ano de 2003, à medida dos seus desejos.. .  

Luís Serrano, Jan. 2003
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