A luz aqui estremece antes de pousar...
Raul Brandão, Os Pescadores
A laguna de Aveiro, mais conhecida por Ria de Aveiro,
constitui um acidente geomorfológico semelhante a outros que
existem pelo mundo: a foz do Brenta e do Piave que com o Adige e o Pó
acabam por enquadrar a laguna de Veneza, a foz do Ródano cujo
delta, na extremidade da Provença, dá origem à bela região da
Camarga, a dos cavalos selvagens, com o seu vértice Norte em
Avignon, a do Guadalquivir que possui vértices em Sevilha e Cádiz,
isto para não citar senão alguns bem conhecidos e relativamente próximos.
Esta laguna desenvolveu-se através de um jogo onde por
certo tiveram um papel importante
o mar, a terra e até o próprio rio Vouga. Porventura, a
laguna já foi uma ria quando por efeito da subida do nível das águas
do oceano, o mar terá entrado terra adentro através dos vales. Mas
isso foi já há muito tempo, uns largos milhões de anos atrás,
pois que toda esta zona apresenta características de pântano desde
os últimos tempos cretácicos (cerca de 65 milhões de anos). O
estudo das argilas que se encontram na vizinhança de Aveiro têm
mostrado fósseis de crocodilos e de tartarugas além de outros
seres vivos animais que atestam condições climáticas semelhantes
às que encontramos hoje em clima tropical. O mesmo se diga da
flora. São conhecidos vestígios de árvores descobertas em vários
locais das proximidades de Águeda (Aguada de Cima, p. ex.) aquando
da exploração das chamadas argilas negras e noutros pontos onde
foram abertos poços para extracção de água.
Vem tudo isto a propósito de um passeio de barco que há
pouco tempo dei com alguns amigos.
Em boa hora se puseram a funcionar velhos moliceiros que
com um pequeno motor e no intervalo de uma hora nos levam do centro
de Aveiro (em frente ao Turismo) e através de canais, até próximo
da Empresa do bacalhau e nos trazem de regresso ao local de partida
mas por outro caminho. Um itinerário alternativo leva-nos a S.
Jacinto (ida e volta, cerca de duas horas). É um passeio que nos
faz mudar o ponto de vista sem por isso deixar de nos permitir abraçar
de uma só vez a montanha (para os lados de Sever do Vouga) e o mar
do lado da Barra e da Gafanha da Nazaré.
É muito difícil dizer sobre a Ria alguma coisa de
novo. Raul Brandão já falou da luz, desses reflexos tremendos que
os fotógrafos conhecem bem e que os leva a ter cautelas acrescidas.
A própria região de turismo não é por acaso que se
chama Rota da Luz.
Em
qualquer dos casos, a sensação que se tem é de que está tudo ao
mesmo nível: água e terra num casamento tão íntimo que por vezes
se torna difícil estabelecer uma fronteira. A sublinhar essa
indefinição
dizia Raul Brandão: Bois pastam na água, um barco navega
no interior das terras... A ria é mágica e possui uma luz própria
que a veste. (p.70 de Os Pescadores).
É
tremendamente difícil dar em palavras esse clima de sonho, de
irrealidade, que a Ria oferece a quem a olha. Por
isso, o mesmo Raul Brandão, que tão bem sabia utilizar as
palavras, sugeria que só a pintura era susceptível de traduzir sem
trair, essa realidade por onde circulava o sal, o moliço, o sangue,
digamos assim, o sangue que desde sempre alimentou uma grande
comunidade. Dizia ele a propósito: O que eu queria dar só o
podem fazer os pintores – os tons molhados, os reflexos verdes, o
galopar das nuvens fugindo sobre a imensa superfície polida, e, por
fim, ao cair da tarde, a agonia dolorosa da luz.
Toda a vida destas comunidades tem estado, ao longo dos séculos,
na dependência da laguna. Se a sua saída para o mar fecha, as
populações têm de procurar o seu sustento noutras paragens. Se
ela funciona, então, os barcos entram e saem, levando louça e
outras peças cerâmicas (como ficou provado com o estudo de um
barco naufragado junto à ponte da Costa Nova de meados do século
XV), e trazendo de volta coisas necessárias para as pessoas que
aqui vivem. A vida da Ria é um barómetro sensível: a sua
saúde transmite-se à comunidade, a sua instabilidade tem reflexos
negativos na vida social.
Curiosamente, ao ler-se Raul Brandão, o celebrado
escritor de Húmus, falecido em 1930 (há, portanto, 72
anos), não podemos deixar de ter uma sensação de grande
actualidade sobre esta paisagem, única do nosso país, que ele
descreveu com grande rigor em Os Pescadores e cuja leitura
recomendo vivamente. Para o fazer andou dias e dias metido nos
moliceiros com os pescadores (Há três dias que ando metido na
ria, com a barba por fazer, sujo como um ladrão de estrada, e fora
de toda a realidade. Afigura-se-me que vivo num país estranho –
amplidão, água e sonho dizia ele).
Deste espelho de luz onde a água alterna uma certa
transparência com a opacidade da nata fique-nos ainda e a terminar
esta passagem de Os Pescadores: Sinto que a tinta que envolve
a paisagem morre a muito custo, e que toda esta humidade se quer
fartar de luz, transformando-se como numa mágica em explosões e
cores desgrenhadas pelos ares e em cenários irreais na terra cheia
de mistério, até que um único risco de oiro ao cimo de água,
oscila, serpenteia e acaba por desaparecer num último arabesco...
Luís Serrano, Julho 2002.
|