O palacete (ou solar, como as
gentes de Taboeira o classificam), a moradia, ainda que temporária, dos
condes e mais constante de João Teles da Silva, da sua irmã D. Maria
Eugénia e de D. Arcelina, era constituído por uma moradia propriamente
dita, compartimentos e cozinha destacados, destinados aos empregados,
bem como lagar, adega, abegoaria, cavalariça e celeiro. Anexada ao
solar, a capela privativa é dedicada a Nª. Srª da Conceição.
Documentalmente, sabe-se que a Quinta, o solar e a capela já existiam em
1670, pertencendo a Sebastião de Almeida Carvalho, tendo como
administrador Giraldo Pereira Coutinho, desembargador e familiar do
Santo Ofício, natural de Coimbra. A família Pereira Coutinho era oriunda
de Vila Nova de Anços, Soure, Coimbra, Moimenta da Beira e Viseu. Por
coincidência ou não, Sebastião de Almeida Carvalho, natural de Moimenta
da Beira, pertencia a um concelho que confina com Armamar, naturalidade
do pai do conde de Taboeira, Francisco Cardoso Valente, como já se
disse, anteriormente.
É sabido que Francisco ofereceu,
por volta de 1885, o solar e a Quinta a seu filho João, aquando do seu
casamento com D. Maria Aurora.
Devido às relações com a
aristocracia, a Igreja e a sociedade, a família trazia, até Taboeira,
figuras como o pai de D. Duarte Pio, atual Duque de Bragança (24º), a
condessa de Seixal, o conde de Castelo Mendo, o conde de Castelo Branco,
o barão de Casalinho74, a condessa de Sabugosa e Murça, a condessa de
Proença, a condessa de Vinhó e Almeida, o conde de Nova Goa, a condessa
de Bertiandos, o conde de Bettencout, D. Emília Foz de Arouce, D. Amélia
Proença, D. Maria Novais ou D. Fernanda Van Zeller. Em 1915, D. Aurora
escrevia ao barão Kunhn da legação da Áustria – Hungria.
A condessa de Bertinados escreveu
a D. Maria Aurora a seguinte carta:
Minha boa amiga: Muitíssimo
obrigada à delicada atenção de V. Excias.
Nenhuma consequência desagradável
sobreveio: só nos ficou desta nossa viagem a agradável lembrança dos
nossos bons companheiros de viagem.
Cumprimentamos afectuosamente a V.
Excia sua muito amiga.
Também o Cardeal Cerejeira, o Dr.
Manuel Soares, distinto médico da família e deputado da nação, o
Desembargador Nunes da Silva, o director do Asilo de Aveiro, Joaquim
Torres e muitas outras figuras das relações dos Cardoso Valente
visitavam o solar de Taboeira. Mas os trabalhadores, tanto os eventuais
como os fixos, e a própria população de Taboeira e cercanias, eram
tratados e acolhidos com deferência.
Ficaram na memória os magustos de
castanhas e as fogueiras no primeiro dia de novembro, dia de Todos os
Santos, onde estavam presentes todos os empregados da Quinta e alguns
taboeirenses.
Mas os dramas também toldavam a
bonomia da quinta, como aconteceu no ano de 1956. D. Arcelina tinha
alugado parte dos campos, do lado de lá da ribeira que passa junto à
Quinta, a um tal Redondo, da Quinta do Gato, para cultivar o feno.
Como um seu servidor não fez o
serviço como ele queria, travaram-se de razões e, na refrega, o tal
Redondo espetou uma forquilha na cabeça do servidor, dando-lhe morte
imediata, tendo mandado os outros servidores tapá-lo com feno. Porém, a
jovem D. Maria Emília, que viria a ser esposa do feitor Manuel Soares,
presenciou o crime e denunciou-o à D. Arcelina, que entrou em contacto
com a GNR, que veio, de imediato, e ainda encontrou o corpo escondido.
O criminoso foi condenado à pena
máxima. O Redondo era acusado de outros crimes, como o de ter matado um
jovem do Minho, por este ter deixado que um cavalo morresse na passagem
de nível do Viso, tentando depois atravessar o cadáver na linha do
caminho-de-ferro, para encobrir o crime. Durante algum tempo, e como o
assassinado era analfabeto, escrevia aos pais como se ele ainda fosse
vivo. Também era acusado de ter matado uma criada que enterrou. As
pessoas que até à altura do crime, na Quinta, tinham medo dele,
denunciaram estes dois crimes, que ao que parece, não se vieram a
confirmar.
Os empregados da casa rondavam
entre oito a dez.
Sabe-se da existência de quatro
feitores, de nomes João de Salreu, Vítor Gaspar, António Simões Maia e,
tendo como encarregado, o Agostinho, marido da empregada Rosa do Campo
e, por último, Manuel Soares, homem de confiança de D. Arcelina. A
cozinheira Conceição veio do Pinhão e esteve ao serviço setenta e quatro
anos. Maria Felícia, mais conhecida por “Pipita”, era a criada de D.
Arcelina e esteve ao serviço cerca de setenta e cinco anos.
♦
Cremos que o transporte de
pessoas, entre a Quinta de Taboeira e a estação de Aveiro e outros
locais, se repartia entre coche ou landau e o automóvel 75.
Deve ter havido vários chauffers
(há apenas uma vaga referência a um de nome Américo), mas só se conhecem
o António de Almeida Jacinto “conde” (por trabalhar para a condessa) e
Horácio Vinagre, o “Mochaine” (Mon Cher Ami); também a sua esposa Sofia
Rolo trabalhou na Quinta. Informou-nos Manuel Clara Soares, que cresceu
na Quinta, que o Horácio estava talhado para o lugar que ocupava, pois
mantinha o carro muito bem tratado e, como o seu pequeno amigo Manuel o
ajudava na limpeza do automóvel, exigia que ele puxasse o lustro até ver
o brilho dos seus olhos. Os motoristas andavam fardados, usando um boné
de pala e luvas brancas.
Manuel Oliveira Lares era um homem
muito chegado às iniciativas de benemerência da condessa e de D.
Arcelina, a ponto de, quando foi inaugurada a escola, ela dizer que o
povo lhe devia agradecer a ele pelo empenho demonstrado.
No Jornal de Notícias (1970), na
secção das notícias de Aveiro destacam-se as “Deliberações Camarárias”,
em que uma das decisões é a construção, em Taboeira, de uma escola com
três salas de aula. É sabido que os terrenos contíguos à escola eram,
por herança, de João Teles da Silva, como herdeiro proprietário, e de D.
Maria Eugénia Valente Moreira Teles da Silva, apenas como beneficiária
de metade do usufruto, pois em 1977, ofereceram 650 m2 à Junta de
Freguesia, para melhoramentos, dando a entender que foram estes
proprietários que ofereceram o terreno para a escola. D. Eugénia, por
estar várias vezes ausente do país, nomeou seu procurador Manuel Soares,
ao qual com os de substabelecer, confere poderes para vender pelo preço
e condições que julgar conveniente, quaisquer imóveis ou direitos sobre
imóveis, bem como quinhões hereditários. Esta procuração foi executada
no dia 28.10.1977 e João Teles da Silva morreu a 29.08.1977. É provável
que D. Maria Eugénia herdasse o que coube ao falecido.
O feitor Manuel Soares, de alcunha
o “Escudeiro”, que inicialmente era o mordomo, era natural de Lourosa e
veio a Aveiro trazer uma carga, quando se sentiu mal, com problemas
pulmonares. D. Arcelina tratou-o e ele ficou na Quinta, onde conheceu a
futura esposa, Maria Emília, que, com a mãe, era criada do solar.
Entre a residência, propriamente
dita, e os compartimentos destinados aos empregados, incluindo a
cozinha, assim como uma adega e lagar, existe um pátio interior, com 20
por 30 metros, servido pelo portão principal, tendo, do outro lado, um
portão de acesso à Quinta e, do mesmo lado, duas portas e duas janelas.
Do lado da habitação há uma porta de acesso à capela e dois postigos, e
uma porta larga que dá acesso à habitação. Do lado oposto, ou seja, como
acessos à adega, cozinha e área destinada aos trabalhadores, há uma
janela, cinco portas e o portão da garagem, tudo isto ao nível do
rés-do-chão, e dando serventia à rua, através de um bem trabalhado
portão, aos anexos e à quinta.
Na parede, há um painel em
azulejo. Trata-se de uns painéis recortados, de pintura azul sobre
branco, produzidos em Lisboa, provavelmente do 2º quartel do séc. XVIII.
Trata-se de um período conhecido como “Grande Produção”. Coincidente com
o 2º quartel de setecentos, sucede ao “Ciclo dos Mestres”, no qual
pintores qualificados na pintura a óleo passaram a pintar azulejos,
tendo sido a forma que as olarias tiveram para responder a uma forte
concorrência holandesa. Um grande número de encomendas, muitas delas
chegadas do Brasil, obrigaram a um incremento na produção que esbateu
autorias, tornando a maioria da produção, do 2º quartel, anónima, tal
como tinha sido ao longo do séc. XVII. Como era hábito, naquela época,
este painel pertenceria a uma série de narrativas76. Por uma carta da
condessa, enviada desde Lisboa, em julho de 1942, faz-se supor que os
painéis vieram do palacete, situado no Campo Mártires da Pátria, aquando
da sua restauração.
Assim reza um excerto da carta de
D. Aurora: Com respeito à lenha em que me fala, se for que se possa
encaixotar essas grades e azulejos que minha sobrinha Arcelina deseja
ter em Taboeira. Desta forma é de admitir que os azulejos, sem
contraste, não se sabendo, por isso, a sua origem e que existem nas duas
cozinhas, tenham a mesma proveniência. A pessoa que dirigia as obras, no
palacete do Porto, escreveu à condessa, manifestando receio pelo que se
viria a confirmar assim, eu sou da opinião que os azulejos dos dois
painéis vão conforme estão, porque ainda que se marquem muito bem, ao
assentá-los de novo em outra parte, tenho receio que não os acertem,
porque já estão compostos e depois custará muito a acertá-los.
Lamentavelmente, quem montou os
painéis, inverteu alguns azulejos. O facto dos painéis não serem
simétricos, pois faziam parte de um maior, levou à confusão do
assentador que não respeitou a numeração posterior dos azulejos. Como é
referido, tratava-se de dois painéis, com oitenta e quatro azulejos cada
um, que ladeavam a porta de acesso ao solar. Um, já referido, mantém-se,
mas o outro foi retirado.
A casa dos condes de Taboeira foi
modificada, na segunda metade do séc. XIX. Edifício vasto, disposto em
forma de chaveta, em volta de pátio central. A frente deste é
resguardada de muro, no qual se abre o portão. Encosta-se à esquerda a
capela (1871) de Nossa Senhora da Conceição. Retábulo do fim do séc.
XVII, de colunas salomónicas e arcos. Existem, espalhadas telas antigas.
No que concerne a documentação
escrita, referente à administração da Quinta, os registos mais antigos
remetem-nos para o século XVII. Desse período, encontramos referência a
uma escritura, datada de 1683, que se pressupõe estar associada à posse
da Quinta, pela Misericórdia de Coimbra. Aliás, este facto vai ao
encontro da informação de que, no século XVIII, a quinta seria gerida
por um administrador, oriundo de Coimbra, de seu nome Giraldo Coutinho.
Os ascendentes de Giraldo eram naturais de Taboeira.
A sua aquisição, por Francisco
Cardoso Valente, terá ocorrido entre 1834 e 1871, uma vez que, de acordo
com documentação consultada, esta terá sido fruto de compra por
desamortização de bens da Misericórdia de Coimbra77.
A questão levantou celeuma entre a
população, nomeadamente os proprietários confinantes: Não foi essa
arrematação vista a bons olhos por os habitantes de algumas povoações,
que consideravam aquele prédio como espécie de logradouro comum — e por
alguns pretendentes malogrados, que esperavam haver aquele prédio em
praça por mui diminuto preço. Daqui nasceram as mais baixas e sórdidas
intrigas e malquerenças que não é para este lugar referir agora.
As querelas, com os proprietários
locais, ter-se-ão arrastado durante alguns anos, como mostram documentos
relativos à aquisição de novos terrenos, para a expansão da Quinta78.
Décadas mais tarde, a ação
benemérita da condessa terá sanado/amenizado as questões com a
população.
(.... ... transcritas apenas as 6
primeiras páginas) ... ...)
________________________
74 A condessa de Penha Garcia,
de seu nome D. Maria Francisca, teve na Bélgica e no ano de 1930 duas
intervenções no 4º Congresso Internacional de Educação, com os títulos:
Sobre a vulgarização da educação familiar pelas obras da infância, pelas
obras sociais, etc. e A infância colonial, que enviou a D. Maria Aurora
com a nota seguinte: Espero que não se masse demais a lêr este meu
pequeno trabalho.
A moralidade da época entre a aristocracia apoiante da ditadura militar,
que aprovou o ato colonial, tendo como base a pragmática e legal,
política colonial, imperial e centralista, permitia e encorajava, e no
caso de D. Maria Francisca, a defender que o ensino das crianças
continentais mantivesse o sentimento colonizador.
Transcrevemos alguns trechos da sua intervenção:
Nós acreditamos que é inútil insistir sobre o valor da iniciação
colonial no ponto de vista educativo. O
movimento é de resto um movimento em todos os países colonizadores:
basta intensificá-lo. Nas colónias será cada vez mais conhecida.
75. O primeiro automóvel
considerado moderno, o Mercedes “Daimler”, sai para a estrada em 1901. A
23.07.1903 a Ford vende o primeiro veículo. O primeiro automóvel
produzido em série, o Ford T, começou a ser vendido nos E.U.A. em 1908,
mas só à volta de 1903 chegou a Portugal. Em 1910, havia 500 automóveis
em Portugal e em 1926, 5363. É natural que D. Maria Aurora tivesse
adquirido um, mas só a 11.12.1948 surge a notícia de um automóvel ao
serviço, provavelmente, de D. Arcelina. Nesta data, queria vender por
trinta contos de réis o seu “Crisler 34”, mas o interessado ofereceu-lhe
apenas vinte e seis contos e quinhentos escudos, por ser antiquado e
consumir 15 litros aos 100 kms em estrada. D. Arcelina queria vendê-lo,
porque infelizmente perdi pessoas de família (referia-se à sua tia por
afinidade D. Maria Aurora, em 1946, e a irmã desta, D. Natália, em 1948)
e, sendo só não me convém um carro grande.
Teve primeiro um automóvel de marca Volvo, tipo “Marreco” 133, e por
último um 144, que depois da sua morte, em 1976, ficou para o D. João
Teles da Silva que o acabou por vender ao gerente da cantina da Portucel.
15.03.1949 – D. Arcelina contesta o valor inserido nas faturas da
garagem Fiat do Sr. João Santos, onde tinha mandado concertar e meter
gasolina no seu automóvel Chrysler.
Já em 1958, D. Arcelina quer vender o automóvel Volvo BD-73-96.
Como a linha férrea do Vale do Vouga só foi inaugurada a 8.9.1911, como
não é conhecido nenhum automóvel no tempo de D. Aurora e tal como a sua
contemporânea, D. Maria Cândida Couceiro da Costa (1861–1950), Morgada
de Vilarinho, também D. Aurora pode ter tido uma carruagem “Berlinda
Coupé” (pequeno coche de quatro portas suspenso entre dois varais).
76 Informação do Museu
Nacional do Azulejo (I.M.C. João Pedro Monteiro T.S.), resultando daí a
assimetria das figuras pintadas (na capela da Quinta Amarela havia
azulejos do séc. XVII). Encimado pela legenda “Os despozorios de Paco
Comraces” (“O casamento de Paco Comraces”).
77 AHM - CMA, petição de
Francisco Cardoso Valente para que os enfiteutas da Quinta de Taboeira
se abstivessem de fazer adobes, datado de 10 de agosto de 1874
(documento avulso).
78 AHM - CMA, Exemplo de
escritura de compra de terrenos a Manuel Rodrigues Ferreira e outros, de
Eixo, datado de 3 de abril de 1871 (documento avulso). |