Condessa de Taboeira, D. Maria
Aurora Ângela Benigna Inês da Santíssima Trindade Muñoz y Puig Peñalver
y Fernandez, era natural de Benavente, Zamora, Espanha, onde nasceu em
1861, vindo a falecer em Lisboa, a 31.01.1946. Era filha de Rafael Muñoz
Peñalver, natural de Cádiz e Natália Puig y Fernandez, natural de
Sevilha 36.
Falarmos de uma senhora que
faleceu há seis dezenas de anos e que não conhecemos pessoalmente, é
tarefa difícil. Valemo-nos de relatos orais de quem ainda a conheceu, ou
ouviu de outros já idos, mas sobretudo de escritos do punho da própria
condessa, ou documentos avulsos que atestam, por analogia, uns e outros,
como autênticos testemunhos da sua prestação, em relação à sua vida
social e humanitária.
D. Maria Aurora, para além de ter
perdido o marido de forma dramática, quando tinha 42 anos, além do seu
estado físico e psíquico (desde Lisboa escreve que se sente doente e
infeliz, pois naquele dia fazia ano e meio que tinha perdido o seu anjo
da guarda e era natural que sentisse o abandono involuntário em que o
conde a deixou) e ver-se obrigada a gerir os seus bens com pulso de
ferro, teve de se haver com pessoas da família que a difamaram, de forma
grotesca e imprópia de pessoas de bem.
Há relatos do aspeto fisionómico e
físico que chegam até nós oralmente e em imagem. Tinha uma figura
roliça, a tender para o baixo (alta dizem outros!), rosto oval e era
loura, segundo dizem. Na foto que chegou até nós, dá a ideia que era uma
mulher exuberante na forma de vestir, talvez de acordo com a época e por
viver a sua juventude como dama de companhia da Rainha D. Amélia
(1865-1951) onde o “vaporoso” das vestimentas era comum, entre os da sua
posição social. Quem conviveu, de perto, com a condessa, diz que era de
altura média, sobre o forte, vestindo de preto, depois da morte do
marido. Tinha um porte altivo, mas era muito humana e caritativa.
Houve pessoas que a conheceram e,
embora divergissem na sua apreciação, num aspecto estavam de acordo: era
uma mulher simpática e sempre pronta a ajudar os necessitados. Uns dizem
que havia lavradores que não gostavam dela, mas pela leitura de
documentos, chegamos à conclusão que apenas era exigente, no rigor dos
contratos das muitas propriedades que possuía, tendo até um caráter
condescendente em muitos casos. Dizia-se que era uma constante sua dizer
que “se os beijos fossem flores, a minha cara era um jardim”.
Pode-se afirmar que, como a sua
vida social a obrigava a ausentar-se, a maior parte do tempo de Taboeira,
confiava no seu caseiro e no advogado Jaime Duarte Silva, trocando
assídua correspondência com estes e com o seu procurador, no Porto,
António Augusto Rodrigues da Gama.
O facto de ter ficado viúva, aos
quarenta e dois anos, levava-a a controlar, com eficácia, os seus
rendimentos.
A sua obra social, conjuntamente
com Manuel Simões Lares, e o seu coração magnânimo, são atestados por
factos incontroversos, tais como a fundação da Colónia Balnear Infantil
de Taboeira, com sede na Rua Domingos Sequeira, em Lisboa, e a sua
preocupação com crianças desvalidas, como se comprova através das cartas
de 17.11.1934 e 31.01.1935, enviadas ao diretor do Asilo-Escola
Distrital: Quinta de Taboeira, Perdoe V. Excia que lhe venha lembrar os
dois pequenos, meus recomendados, para entrar no Asilo – minha
insistência vem por eu ver aqui, cada dia mais, a urgência de retirar
estes pequenos, do lugar de Taboeira. Recebi a carta de V. Excia e
fiquei contentíssima por saber admitido o meu protegido.
A sua preocupação com uma
empregada, programando a ementa, é reveladora dum caráter que se condoía
com os mais humildes dos seus servidores, muito embora colhesse
vantagens por estes serem saudáveis. Assim, “às sete horas, leite de
cabra, às dez, bife e chá, às 14.30 h, caldo, às 17 h, galinha, arroz e
caldo, às 21 horas caldo”.
Pagava quotas para várias
Irmandades e Instituições de Beneficiência. Em 1925, assumia cargos como
a presidência da Obra do Vestuário, para os pobres da Freguesia de
Santos-o-Velho, que integrava a Federação das Associações Católicas
Femininas, liderada pelo Cardeal Patriarca D. António Mendes Belo, que
também era governador do Bispado de Aveiro (1881-1884).
De 1905 data uma carta da condessa
para Ernesto e Ana “Annocas” Diegues, a qual passamos a transcrever. A
quinta está linda e bem tratada; a mim faz o efeito de um cemitério. [O
conde tinha falecido há dois anos] As minhas filhinhas [Teresa com 11
anos e Arcelina com 9], sempre meigas e delicadas comigo esperam-me com
rosas, hoje de manhã, à porta do meu quarto para me alegrar”.
Ernesto e Ana Diegues
respondem-lhe a 27.07.1905 – Gostaríamos de dizer alguma coisa que fosse
dissipar as ideias de tristeza. Então que desalento é esse?
V. Excia já nem parece a mesma
mulher forte, a nossa amiga, que com tanta coragem tem lutado contra
tantas adversidades e malquerenças. Sem retroceder uma linha no caminho
que traçou, enfim esse grande génio (que eu sentia-me pequeno por não me
igualar ao seu valor). Fala-nos num tom amargurado que nos gela a alma.
Vejo-a rodeada das suas filhinhas que adatou, dois anjos que Deus lhe
deparou para que nunca sentisse a falta daquele nobre coração.
O conde fez testamento, a favor da
sua esposa D. Maria Aurora, em 26.08.1894, quando tinha 35 anos.
O testamento foi aberto a
12.09.1903.
A 27 de janeiro de 1904, a
condessa requereu uma cópia do testamento que lhe foi passada pela
Administração do Bairro Oriental, Porto.
A forma carinhosa como o conde
redigiu o testamento em seu favor, atesta quanto amava D. Maria Aurora.
Instituo minha universal herdeira, e em harmonia de tudo a que à data da
minha morte legitimamente me pertença, a minha mulher, como verdadeiro
testemunho do meu verdadeiro amor por ela e em último reconhecimento das
suas virtudes e do muito que lhe devo como companheira carinhosa e
esposa exemplar.
D. Maria Aurora, apesar de
espanhola, tinha um português escorreito e fluente.
Levava uma vida social e
humanitária. Viajada e culta, sabendo-se expressar em várias línguas
(aos 27 anos aprendia a falar inglês através do livro Método de Aprender
Inglês), frequentava a ópera, ou o teatro, em Portugal ou no
estrangeiro, como se comprova, aos 55 anos, a ida ao Teatro no Casino
Municipal de Biarritz ver “Les Afaires Sont les Affares”, ao Teatro do
Palais Royal ver a comédia em três atos “Le Veilleur de Nuit” e ao
Olympia a comédia burlesca “Snokum”.
A senhora era profundamente
religiosa como o prova a condecoração com a Ordem Italiana do Santo
Sepulcro, e a grande amizade com o Cardeal-Patriarca, D. Manuel
Gonçalves Cerejeira (1888-1977), tal como a manutenção ativa da capela
do solar em honra de N.ª S.ª da Conceição com andor próprio,
incorporando a procissão em honra de St.ª Maria Madalena, padroeira da
aldeia, no dia oito de maio. (No domingo esteve cá a chover, mas a
procissão saiu numa altura em que a chuva parou. – O encarregado da
Quinta, Manuel Soares – 20.05.1975). Igualmente o atestam os muitos
versos de caráter religioso da sua autoria. “ Coração Santo / Tu
reinarás / Por todo o mundo / Fazendo a Paz como o soldado / Vela seu
rei / Assim meu sangue / Por ti darei “. Livros de orações como Para o
mês de Maio, a “oração” de S. Bento X. Assinaturas de revistas
religiosas como “Cruzada do Rosário” e quotas pelo culto da igreja de S.
Francisco de Paula são outros exemplos, para além dos expressos na
listagem que se segue:
Esmola anual para a missa de Taboeira – 5,000 réis.
Donativo à capela de Taboeira para ajuda da compra da umbrela – 10,000
réis.
Côngruas de Taboeira, em Esgueira e Vera Cruz – 5,480 réis.
Dinheiro devolvido, que era destinado à missa por falta de capelão –
2,000
réis [ver abaixo carta do Calafate à condessa a propósito do padre pedir
muito dinheiro].
Esmola de subscrição para compra do relógio da capela de Taboeira –
100,000 réis.
Esmola para o Seminário de Aveiro – 100,000 réis.
Subsídios para despesas de sua Excia Cardeal Patriarca – 24,000 réis.
Apresentamos uma das cartas que
confirmam a sua devoção, datada de 1920:
Quinta de Taboeira
Exmo. Sr. António Lopes da Silva Junior
Aqui lhe devolvo a quantia de 208,030 réis em que importam as duas
contas d’obras. Uma das contas traz dois enganos tendo no total um
prejuízo para o mestre d’obras. As emendas vão feitas a lápis sendo-lhes
assim fácil verificá-las. Logo que as tenhas seladas e assinadas
peço-lhe o favor de m’as mandar de novo. Sempre muito e muito obrigada
sou com estima e amizade.
Mas a condessa era uma mulher de
comportamento vertical e se um membro da Igreja se excedia, afrontava-o,
liderando a vontade da população de Taboeira.
O desejo de Taboeira ascender a
freguesia parecia ter a posição interesseira do padre. Como o povo de
Taboeira se queria separar de Esgueira, D. Maria Aurora encabeçou essa
luta propondo que os habitantes da aldeia pagassem uma quota para as
despesas inerentes. (Taboeira, 01.08.1915, Declaro que estou conforme
com pagar anualmente a quantia de X réis, no caso de se obter uma
freguesia para este lugar de Taboeira – Condessa de Taboeira.)
Carta de João Rodrigues Calafate e
Silva à condessa a propósito da soma avultada pedida pelo capelão:
Exma Senhora condessa. O nosso capelão, ontem, fez-nos uma proposta,
exigindo-nos 10.000 réis e um quarto para estar às dele, e quer que nós
lhe demos resposta no domingo próximo. Nós, sem darmos conhecimento
disto a V. Excia não resolvemos nada, esperando a opinião de V. Excia
que a exigência dele referente a um aumento sendo ele um capelão.
Como estamos muito esperançados na
altíssima protecção de V. Excia em podermos obter para Taboeira uma
freguesia, que para nós seria Glória pedir a V. Excia, caso pudesse ser
de nós dizer d’aí, antes de domingo, se fomos obtidos ou não, para
sabermos como havemos dar resposta ao nosso capelão.
Caso venha a Freguesia, nós
dizemos-lhe que não podemos dar mais nada; e mesmo que não venha não lhe
damos o que ele quer, e nesse caso ele ir-se-á embora. Ficamos esperando
as respeitáveis ordens de V. Excia quem se confessa muito grato, e lhes
deseja muita saúde e a toda a ilustre família de V. Excia. João
Rodrigues Calafate e Silva, Manuel Simões Lares.
P.S. ele não servirá para prior!
Calafate.
(.... ...
transcritas apenas as 6 primeiras páginas e omitidas as gravuras) ...
...)
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36 D. Maria Aurora assinava
sempre “Condessa de Taboeira” excetuando documentos oficiais em que
assinava “Maria Aurora Muñoz Puig de Valente”. |