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farol n.º 23 - mil novecentos e sessenta e seis ♦ sessenta e sete, págs. 23 e 24.

Noite de Consoada

Maria Teresa Navarro
(7.º ano - Letras)
 

CHEGOU por fim a mais bela e ansiada noite do ano – a da Consoada.

Através da janela embaciada diviso os vultos encasacados das pessoas que apressadamente se dirigem para os seus lares onde por certo os espero o calor amigo de uma lareira crepitante.

Lá fora o ambiente é gélido e o vento fustiga-os asperamente como a obrigá-los a recolherem-se mais depressa, para celebrarem tão grande noite.

Contemplando a rua tão vazio e triste uma lembrança assalta-me o espírito. Por que será que não neva?

Desde criança sempre idealizei um Natal todo branco em que a neve, com toda a sua alvura, resplandeceria como milhares de estrelas, cegando-me pelo seu fulgor indescritível, mas fazendo-me vibrar o coração.

Fecho por momentos os olhos e parece que estou a ver. Oh, meu Deus, como é belo! As árvores que até há pouco se apresentavam descarnadas, erguendo ao céu os braços esquálidos e tortuosos, estão agora acolchoadas de neve muito branca e macia que lhes encobre as formas sinuosas.

E as flores? Essas estão mais belas que nunca. As suas belas, mas comuns cores, escondem-se agora como envergonhadas de competir com a radiante brancura da neve que as cobre; e quando o vento impiedoso lhes agita o caule trémule, mais parecem alegres pombas brancas, alardeando àqueles que embevecidos os contemplam a extrema pureza que essa noite encerra.

Como tudo seria belo se assim acontecesse! Mas deixemo-nos de divagações, porque, afinal, o que realmente interesso é a alegria e a pureza que cada um sente no seu coração.

Absorta por este pensamento nem dei conta que toda a minha família se encontra já reunida na sala.

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Bem, toda a família é como quem diz, porque as senhoras, as eternas sacrificadas, andam afogueadas, dando os últimos retoques domésticos e só de quando em quando ousam chegar à sala. Ah como é bom estar em família! Que reconfortante encontrarmo-nos entre pessoas a quem queremos bem e que sabemos também nos quererem!

Ali, no centro do sala, está o meu tio e, como é inevitável tem forçosamente de estar a discutir com o meu pai sobre o tão falado tema eterno: o futebol. Será possível que esse tema nunca se esgote? Parece que não, pois não há meio de se calarem e até vão reunindo à sua volta toda a restante família masculina. Pronto, eis que estão todos no seu elemento: um afirma que o seu clube é que merecia ganhar e logo outro afirma o contrário, apresentando provas convincentes, lidas no último jornal desportivo.

Ui, já não suporto mais e, como pelos vistos aqui ninguém me liga nenhuma, vou dar uma espreitadela à cozinha, onde por certo serei mais bem recebido. Ah, que belo cheirinho e que quentinho que está aqui. A minha mãe e companhia movimentam-se apressadamente no meio de toda aquela barafunda. Assim que me vêem enxotam-me para a sala mandando-me arranjar bem a mesa, ordem que eu entendi como uma desculpa elegante para me verem pelas costas.

Finalmente chega a hora de irmos para a mesa com grande gáudio de todos. Realmente um pratinho de bom bacalhau vem sempre a calhar, principalmente quando a hora da refeição foi, digamos «um bocadinho» retardada. O silêncio é geral, pois todos se limitavam a comer, procurando por todos os meios calar o bichinho que no estômago há muito protestava.

Passados estes primeiros momentos a conversa generalizou-se, tornando-se o ambiente animado e convidativo.

Chegou por fim a altura dos brindes em que a animação atinge o auge e invocámos saudosamente aqueles entes queridos que não puderam juntar-se a nós nesta noite tão significativa.

Após animada conversa e dando ocasião a que os mais folgazões contem a sua anedota (se não as contam quase que rebentam) todos se despedem animadamente e regressam aos seus lares.

Da mesma janela, agora ainda mais embaciada, vejo-os partir e uma indescritível saudade apodera-se de mim. Saudade por algo muito belo que acabou.

E então um desejo irreprimível brota em mim e faz-me murmurar:

– Natal, volta depressa!

 

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08-06-2018