Flor
O mar é belo,
nem que cem vezes me afirmem o contrário. Quem ousará negar a
beleza selvagem das ondas franjadas de espuma que, rebeldes, lutam
contra os rochedos
gastos de velhice e cansados de batalha infindável? As revoltadas
despedaçam-se em milhares de pequenas gotas que são atiradas aos
ares na
fúria do embate. As ondas sacrificam-se, morrem, mas os rochedos, que teimam em não arredar pé, calados
e quietos, são os que sofrem mais: vão sendo gastos a pouco e
pouco, vão sentindo a sua massa desconjuntar-se mansamente, as
angústias da queda fragorosa e da morte a penetrarem-nos. E, um
dia, pedaços arrancados caem e são sepultados na imensidão branca,
verde, azul, do mar enfurecido que brama atroadoramente. Tudo
isto é espantosamente misterioso, e, por ser misterioso, é
belo e maravilhoso.
Em contraste, a calma simples de mar que banha uma praia areosa, em
dia de sol e de brisa leve.
Afirmem-me que é feio, pouco ou nada interessante, o espectáculo
das ondulações que nascem aqui e ali; das ondas recém-nascidas que
correm
em busca da praia e desaparecem na areia solta, mansamente, como
quem não quer a coisa, como filhinhas que se acolhem e escondem no
regaço da mãe. Esta parece ser beijada docemente pelo mar inteiro
que voltou de longa viagem.
Ao pôr-do-sol, o mar é luminoso, a areia é domada, os rolos de
espuma das ondas mortais tomam o aspecto dum arco-íris, com todas
aquelas cores que se combinam e dão um tom avermelhado. Um rasto de
fogo se estende na água, que parece
arder lentamente, em direcção ao
sol que se despede a custo, com lágrimas de sangue. Em breve
irá banhar com a sua luz quente outros
mares tão misteriosos como aquele de quem se separa.
E ao luar? O mar é ainda mais misterioso e doce. Um suave marulho se
ergue daquela massa líquida e
morna do calor do dia. Canto de sereias lendárias cujas escamas
brilhantes reflectem a luz prateada da lua? Gemidos de antigos
heróis do mar, de amorosos suicidas, que se lamentam e desfiam o seu
rosário de saudades, saudades da terra tão próxima e ao mesmo tempo
tão distante? Chamamento do mar acordado para a terra
adormecida e inconsciente? Não sei. Sei apenas que sentada sobre a
areia pálida à luz da lua, escutando aquele barulho contínuo e
olhando a imensidão azul-escura, sulcada por um fio de prata que
une a lua indiferente à água inquieta, sinto que uma paz suave se
vai derramando gota a gota sobre o meu coração dolorosamente
contraído sob as angústias de um dia que me soube a fel,
dilatando-o e fazendo-me
sentir em paz com Deus e com os homens.
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