José Teixeira Valente
2.° Prémio – Prosa – 3.° Ciclo
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O
tenente Óscar tinha acabado de chegar ao recinto de estacionamento.
Após os últimos procedimentos levantou a máscara com lentidão,
respirou fundo, olhou em volta e, de um salto, deixou o seu F-84.
Caminhava devagar, quase
cansado, e os óculos escuros tentavam ocultar qualquer coisa que a
crispação das faces denunciava.
Era um homem novo, a
roçar pelos trinta anos, tisnado, energicamente esguio, esquivo e
talvez melancólico. Jovem ainda, seduzira-o de uma maneira estranha
a aventura, o heroísmo daqueles que diariamente jogavam a vida ao
serviço de um ideal que lhe parecia sublime. E tornara-se
aviador....
Foi com enleio e
garbosidade que se aprumou em frente de um espelho ao envergar pela
primeira vez o uniforme de Cadete-Piloto-Aviador.
Era uma quinta-feira...
Dois dias depois, no fim da semana, entrou em casa imponente,
marcial, com um sorriso altivo a brincar-lhe nos lábios. Sua mãe
chorava....
Onze anos tinham rolado.
O tenente Óscar era hoje o mais intrépido sacerdote do ar. Nas suas
quase diabólicas excursões, acumulava cada dia arrepiantes
temeridades.
Ao desposar Ângela
aventou-se que o velho leão iria finalmente baixar a juba. Mas não.
Nem quando nasceu a Nelita diminuíram as suas arrojadas temeridades.
Hoje o tenente Óscar,
com a Pátria em perigo, era o amigo inseparável daquele F-84,
sinistro companheiro dos espaços. Abandonou-o naquela tarde com ar
sombrio, agourento.
Conquanto tivesse em
casa uma boquita rosada, ansiosa por lançar-lhe os braços em volta
do pescoço e chamar-lhe Papá, sentia que amava um tanto aquele
abutre cinzento.
– Meu tenente, dá-me
licença – cumprimentou, perfilando-se, o sargento Santos.
– Diga – respondeu o
tenente Óscar, sem se voltar.
– O nosso Coronel
aguarda-o.
/ 18 /
– Na torre?
– No gabinete.
Momentos depois o
tenente Óscar entrava no gabinete do Coronel Martins.
– Ora entre, entre –
convidou o velho Coronel a quem a nuca rapada e um bigode portentoso
emprestava um ar lendário.
– Ora queira sentar-se.
– Ficarei de pé, se me
permite.
– Como queira, tenente
Óscar! É pouco o que devo dizer-lhe. Procurarei ser breve e claro. O
senhor ama a sua Pátria? O tenente franziu o sobrolho e tomou uma
posição rígida.
– Exprimi-me mal, talvez – acrescentou o Coronel
sorrindo, a desencavalitar os óculos. – O tenente Óscar não precisa
de responder-me porque vai demonstrar-mo.
E vincando as palavras
intencionalmente:
– O Comando Central indicou-o para executar o plano Z-3!
O tenente tornou-se
pálido, pálido, cadavericamente pálido.
– Compreendido? –
inquiriu o Coronel.
– Quando devo partir,
meu Coronel?
– Apresente-se à hora
habitual. O resto ser-lhe-á comunicado amanhã.
– Às suas ordens, meu
Coronel.
– Bons sonhos, amigo!
O tenente Óscar negou-se
a pensar. Caminhou errante alguns minutos como um ébrio, como um
sonâmbulo e foi encerrar-se no seu quarto.
Sobre a mesinha de
cabeceira estava uma carta. Abriu-a como um autómato e soletrou alto
com um sorriso muito amargurado, quase cínico a morrer-lhe nos
cantos da boca.
«... Não te esqueças,
Óscar, que a Nelita faz anos amanhã. Está doidinha que tu chegues.
Ontem, ao passar na rua do Lago vi-a olhar tão significativamente
para uma boneca... Bem, mas faz o que entenderes.
P. S: – Não venhas
tarde, não?»
Amarfanhou aquele papel
querido e acendeu um cigarro. Lentamente, muito lentamente, as horas
foram expirando.
Desgrenhado, vestido,
atirado sobre a cama, queimando cigarro sobre cigarro, o tenente
Óscar aguardava espavorido a hora de se tornar um herói... um
criminoso. Estas duas palavras baralhavam-se, conjugavam-se,
gargalhavam no seu cérebro como dois espíritos do mal.
Cinco horas!...
Uma modorra grande
invadiu-o todo e adormeceu.
/ 19 /
Traquinava já o sol no quarto quando ao longe soou um clarim. O
tenente Óscar precipitou-se para a pista. Erecto, aprumado, lá
estava o Coronel junto do seu F-84.
– Bem disposto, tenente?
– Sim, meu Coronel.
– Sabe o que se aloja na fuselagem do seu aparelho?
– Perfeitamente, meu
Coronel.
– Conhece o plano?
– Muito bem, meu
Coronel.
– Pois às onze horas em
ponto X2 deve ser arrasada. Tente lançar a bomba no coração da
cidade. Em caso de perigo, alavanca de emergência e S. O. S.. E é
tudo! Pode descolar e... boa sorte!
Rugiram estrondosamente
as turbinas e segundos depois, um ponto pequenino sulcava os
espaços.
À última hora uma
mensagem emitida da Torre; o tenente Óscar apenas respondeu, dentes
cerrados, sibilando:
– O.K.!
Era um anjo ou um
demónio? Era ambas as coisas aquele homem com uma chispa de loucura
a fulgurar-lhe nos olhos.
– «Não venhas tarde» –
pareciam segredar-lhe a cada momento aqueles auscultadores malditos.
Pelo cérebro do tenente 'perpassavam em fantasmagórica procissão de
alegorias, as palavras: vida, morte, Deus, inferno, bem, justiça,
ódio...
A um movimento das suas
mãos abrir-se-iam as entranhas daquele monstro dentro do qual ele
próprio parecia submerso.
10 horas e 45 minutos!
Uns momentos mais, e das mãos daquele homem sairia a cinza para
sepultar aquela cidade eternamente. Talvez cortasse a meio a oração
de uma criança...
«Está doidinha que tu
venhas!»
10 horas e 50 minutos!
Serenamente, levou a mão a uma das alavancas de comando e picou
vertiginosamente. O ponteiro do altímetro girou rápido. Umas
centenas de metros e... aquela mão nervosa, máscula, esguia,
recusou-se a premir o botão fatal!
– Não! Não! e não! –
foram as suas últimas palavras.
O aparelho descreveu um
arco acentuado e subiu deliberadamente.
5.000 metros, 6.000,
7.000, 9.000... Era a primeira evasão do homem que jamais
capitulara.
Um cogumelo enorme,
monstruoso, evoluiu lá nos espaços sem fim, lento, enovelando-se,
comprimindo-se, distendendo-se como algodões irreais...
RINO VALDEZ |