Acesso à hierarquia superior.

farol n.º 1 - mil novecentos e cinquenta e sete ♦ cinquenta e oito, págs. 17-19.

O tenente Óscar

José Teixeira Valente
2.° Prémio – Prosa – 3.° Ciclo


. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

O tenente Óscar tinha acabado de chegar ao recinto de estacionamento. Após os últimos procedimentos levantou a máscara com lentidão, respirou fundo, olhou em volta e, de um salto, deixou o seu F-84.

Caminhava devagar, quase cansado, e os óculos escuros tentavam ocultar qualquer coisa que a crispação das faces denunciava.

Era um homem novo, a roçar pelos trinta anos, tisnado, energicamente esguio, esquivo e talvez melancólico. Jovem ainda, seduzira-o de uma maneira estranha a aventura, o heroísmo daqueles que diariamente jogavam a vida ao serviço de um ideal que lhe parecia sublime. E tornara-se aviador....

Foi com enleio e garbosidade que se aprumou em frente de um espelho ao envergar pela primeira vez o uniforme de Cadete-Piloto-Aviador.

Era uma quinta-feira... Dois dias depois, no fim da semana, entrou em casa imponente, marcial, com um sorriso altivo a brincar-lhe nos lábios. Sua mãe chorava....

Onze anos tinham rolado. O tenente Óscar era hoje o mais intrépido sacerdote do ar. Nas suas quase diabólicas excursões, acumulava cada dia arrepiantes temeridades.

Ao desposar Ângela aventou-se que o velho leão iria finalmente baixar a juba. Mas não. Nem quando nasceu a Nelita diminuíram as suas arrojadas temeridades.

Hoje o tenente Óscar, com a Pátria em perigo, era o amigo inseparável daquele F-84, sinistro companheiro dos espaços. Abandonou-o naquela tarde com ar sombrio, agourento.

Conquanto tivesse em casa uma boquita rosada, ansiosa por lançar-lhe os braços em volta do pescoço e chamar-lhe Papá, sentia que amava um tanto aquele abutre cinzento.

– Meu tenente, dá-me licença – cumprimentou, perfilando-se, o sargento Santos.

– Diga – respondeu o tenente Óscar, sem se voltar.

– O nosso Coronel aguarda-o.
/ 18 /
– Na torre?

– No gabinete.

Momentos depois o tenente Óscar entrava no gabinete do Coronel Martins.

– Ora entre, entre – convidou o velho Coronel a quem a nuca rapada e um bigode portentoso emprestava um ar lendário.

– Ora queira sentar-se.

– Ficarei de pé, se me permite.

– Como queira, tenente Óscar! É pouco o que devo dizer-lhe. Procurarei ser breve e claro. O senhor ama a sua Pátria? O tenente franziu o sobrolho e tomou uma posição rígida.

– Exprimi-me mal, talvez – acrescentou o Coronel sorrindo, a desencavalitar os óculos. – O tenente Óscar não precisa de responder-me porque vai demonstrar-mo.

E vincando as palavras intencionalmente:
– O Comando Central indicou-o para executar o plano Z-3!

O tenente tornou-se pálido, pálido, cadavericamente pálido.

– Compreendido? – inquiriu o Coronel.

– Quando devo partir, meu Coronel?

– Apresente-se à hora habitual. O resto ser-lhe-á comunicado amanhã.

– Às suas ordens, meu Coronel.

– Bons sonhos, amigo!

O tenente Óscar negou-se a pensar. Caminhou errante alguns minutos como um ébrio, como um sonâmbulo e foi encerrar-se no seu quarto.

Sobre a mesinha de cabeceira estava uma carta. Abriu-a como um autómato e soletrou alto com um sorriso muito amargurado, quase cínico a morrer-lhe nos cantos da boca.

«... Não te esqueças, Óscar, que a Nelita faz anos amanhã. Está doidinha que tu chegues. Ontem, ao passar na rua do Lago vi-a olhar tão significativamente para uma boneca... Bem, mas faz o que entenderes.

P. S: – Não venhas tarde, não?»

Amarfanhou aquele papel querido e acendeu um cigarro. Lentamente, muito lentamente, as horas foram expirando.

Desgrenhado, vestido, atirado sobre a cama, queimando cigarro sobre cigarro, o tenente Óscar aguardava espavorido a hora de se tornar um herói... um criminoso. Estas duas palavras baralhavam-se, conjugavam-se, gargalhavam no seu cérebro como dois espíritos do mal.

Cinco horas!...

Uma modorra grande invadiu-o todo e adormeceu.
/ 19 /
Traquinava já o sol no quarto quando ao longe soou um clarim. O tenente Óscar precipitou-se para a pista. Erecto, aprumado, lá estava o Coronel junto do seu F-84.

– Bem disposto, tenente?

– Sim, meu Coronel.
– Sabe o que se aloja na fuselagem do seu aparelho?

– Perfeitamente, meu Coronel.

– Conhece o plano?

– Muito bem, meu Coronel.

– Pois às onze horas em ponto X2 deve ser arrasada. Tente lançar a bomba no coração da cidade. Em caso de perigo, alavanca de emergência e S. O. S.. E é tudo! Pode descolar e... boa sorte!

Rugiram estrondosamente as turbinas e segundos depois, um ponto pequenino sulcava os espaços.

À última hora uma mensagem emitida da Torre; o tenente Óscar apenas respondeu, dentes cerrados, sibilando:

– O.K.!

Era um anjo ou um demónio? Era ambas as coisas aquele homem com uma chispa de loucura a fulgurar-lhe nos olhos.

– «Não venhas tarde» – pareciam segredar-lhe a cada momento aqueles auscultadores malditos. Pelo cérebro do tenente 'perpassavam em fantasmagórica procissão de alegorias, as palavras: vida, morte, Deus, inferno, bem, justiça, ódio...

A um movimento das suas mãos abrir-se-iam as entranhas daquele monstro dentro do qual ele próprio parecia submerso.

10 horas e 45 minutos! Uns momentos mais, e das mãos daquele homem sairia a cinza para sepultar aquela cidade eternamente. Talvez cortasse a meio a oração de uma criança...

«Está doidinha que tu venhas!»

10 horas e 50 minutos! Serenamente, levou a mão a uma das alavancas de comando e picou vertiginosamente. O ponteiro do altímetro girou rápido. Umas centenas de metros e... aquela mão nervosa, máscula, esguia, recusou-se a premir o botão fatal!

– Não! Não! e não! – foram as suas últimas palavras.

O aparelho descreveu um arco acentuado e subiu deliberadamente.

5.000 metros, 6.000, 7.000, 9.000... Era a primeira evasão do homem que jamais capitulara.

Um cogumelo enorme, monstruoso, evoluiu lá nos espaços sem fim, lento, enovelando-se, comprimindo-se, distendendo-se como algodões irreais...

RINO VALDEZ

 

página anterior início página seguinte

04-06-2018