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Mar ao Norte

de Henrique Madeira

"Sol XXI", n.º 21/22, Jul./Set.. 1997

 

 

Mar ao Norte constitui até pelo seu título uma clara opção: a de contrastar uma geografia oposta à mediterrânica como bem salienta Manuel Simões no inteligente prefácio com que abre mais este livro de Henrique Madeira.

Se em Mozart, HM fazia a viagem ao coração da música (os nomes de cidades como Salzburgo são mais metáforas dessa música do que propriamente locais com uma topografia bem definida, embora também o seja) e se em Viagem Maior fazia a viagem do sonho a caminho de um mundo melhor ou daquilo a que Elsa Rodrigues dos Santos chamou no prefácio (e bem) a excelsa utopia do abraço universal, em Mar ao Norte Henrique Madeira aborda a viagem aos Países Baixos que é simultaneamente uma viagem ao passado e uma viagem ao futuro, entendido este como projecção de experiências.

E esta abordagem, apesar de todo o entusiasmo nela contido não consegue esconder o que há aqui de regresso a um tempo passado: quando os portugueses não tinham encontrado ainda os caminhos para as Índias e para os Brasis e a ligação entre Veneza e Bruges (isto é, entre a bacia mediterrânica e o plat pays) era mais íntima.

Não é certamente por acaso que o tempo verbal mais frequente neste livro é o pretérito imperfeito (vinham, expressavam, revelavam, eram, envergavam-se, aconteciam, etc.).

É verdade também que este regresso se faz quando as perseguições dos alquimistas (p.36) são apenas um registo na memória; é um regresso a uma Grand Place longe das guerras religiosas (p.36) mas simultaneamente próximas quer pela importância política actual de Bruxelas quer por alguns revivalismos de mau agouro que, um pouco por toda a parte e com especial incidência nos países islâmicos, vão aparecendo.

Poesia de claro-escuro a reflectir o espaço barroco do norte, as contradições de um tempo que se apega à fé e simultaneamente a nega, eco da luta entre Apolo e Diónisos.

Talvez, por isso mesmo, Na Grand Place de Bruxelas / queremos alcançar / as exaltantes inocências, (p. 36) porque elas são a condição sine qua non para uma nova utopia.

É uma utopia que o poeta constrói pela viagem, pela memória (que é um caso particular de viagem), pela cultura. Toda a obra de HM está cheia de referências intertextuais, algumas delas demasiado explícitas para nosso gosto (por exemplo, o episódio da Duquesa de Brabante de Gomes Leal a p. 56 que, sem quebra da intenção narrativa, poderia ter sido mais abreviado).

E aqui toco numa tecla sensível da poesia de Henrique Madeira: é uma poesia jorrante (e por isso a sua autenticidade não pode ser posta em dúvida) onde as metáforas nos aparecem em grande profusão (algumas de muito bom gosto) mas essa frequência corre o risco de debilitar algumas por um óbvio efeito de diluição. E este seria talvez o nosso senão.

De notar ainda as referências à obra pictórica de Brueghel, referências que vão no sentido de cantar um mundo mais simples e mais puro onde o leitor se cruza com os moleiros, ceifeiros, lenhadores, condutores de rebanhos (p. 62), com A ironia e a ternura / na época dos anjos e dos demónios (p. 66), mundo que se cruzava com os cadafalsos (p. 62), os pernas decepadas (p. 65), o tempo da Inquisição / seus fantasmas do séc. XVI (p. 64), ou aquilo a que se pode chamar a condição humana (triste ou alegre ou nem uma coisa nem outra), condição humana que, no fundo, é a grande preocupação do poeta Henrique Madeira.

A estética subjacente a esta poética está ao serviço desse compromisso do homem que persegue a perfeição e escolhe para seu caminho (refiro-me ao caminho da reflexão sobre os problemas da humanidade) a arte como tema fulcral e o vasa no cadinho da poesia se é que ela própria, a arte, não é mesmo a sua última escapatória.

Luís Serrano, Set. 1997. 

 


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