Mar ao Norte
constitui até pelo seu título uma clara opção: a de contrastar uma
geografia oposta à mediterrânica como bem salienta Manuel Simões
no inteligente prefácio com que abre mais este livro de Henrique
Madeira.
Se em Mozart, HM
fazia a viagem ao coração da música (os nomes de cidades como
Salzburgo são mais metáforas dessa música do que propriamente
locais com uma topografia bem definida, embora também o seja) e se
em Viagem Maior fazia a
viagem do sonho a caminho de um mundo melhor ou daquilo a que Elsa
Rodrigues dos Santos chamou no prefácio (e bem) a excelsa utopia do abraço universal, em Mar ao Norte Henrique Madeira aborda a viagem aos Países Baixos
que é simultaneamente uma viagem ao passado e uma viagem ao futuro,
entendido este como projecção de experiências.
E esta abordagem, apesar de todo o entusiasmo nela contido
não consegue esconder o que há aqui de regresso a um tempo
passado: quando os portugueses não tinham encontrado ainda os
caminhos para as Índias e para os Brasis e a ligação entre Veneza
e Bruges (isto é, entre a bacia mediterrânica e o plat
pays) era mais íntima.
Não é certamente por acaso que o tempo verbal mais
frequente neste livro é o pretérito imperfeito (vinham, expressavam, revelavam, eram, envergavam-se, aconteciam, etc.).
É verdade também que este regresso se faz quando as
perseguições dos alquimistas (p.36) são apenas um registo na
memória; é um regresso a uma Grand Place
longe das guerras religiosas (p.36) mas simultaneamente próximas
quer pela importância política actual de Bruxelas quer por alguns
revivalismos de mau agouro que, um pouco por toda a parte e com
especial incidência nos países islâmicos, vão aparecendo.
Poesia de claro-escuro a reflectir o espaço barroco do
norte, as contradições de um tempo que se apega à fé e
simultaneamente a nega, eco da luta entre Apolo e Diónisos.
Talvez, por isso mesmo, Na Grand Place de Bruxelas / queremos alcançar / as exaltantes inocências,
(p. 36) porque elas são a condição sine qua non para uma nova utopia.
É uma utopia que o poeta constrói pela viagem, pela memória
(que é um caso particular de viagem), pela cultura. Toda a obra de
HM está cheia de referências intertextuais, algumas delas
demasiado explícitas para nosso gosto (por exemplo, o episódio da
Duquesa de Brabante de Gomes Leal a p. 56 que, sem quebra da intenção
narrativa, poderia ter sido mais abreviado).
E aqui toco numa tecla sensível da poesia de Henrique
Madeira: é uma poesia jorrante (e por isso a sua autenticidade não
pode ser posta em dúvida) onde as metáforas nos aparecem em grande
profusão (algumas de muito bom gosto) mas essa frequência corre o
risco de debilitar algumas por um óbvio efeito de diluição. E
este seria talvez o nosso senão.
De notar ainda as referências à obra pictórica de
Brueghel, referências que vão no sentido de cantar um mundo mais
simples e mais puro onde o leitor se cruza com os moleiros,
ceifeiros, lenhadores, condutores de rebanhos (p. 62), com A
ironia e a ternura / na época dos anjos e dos demónios (p.
66), mundo que se cruzava com os cadafalsos (p. 62), os pernas
decepadas (p. 65), o tempo
da Inquisição / seus fantasmas do séc. XVI (p. 64), ou aquilo
a que se pode chamar a condição humana (triste ou alegre ou nem
uma coisa nem outra), condição humana que, no fundo, é a grande
preocupação do poeta Henrique Madeira.
A estética subjacente a esta poética está ao serviço
desse compromisso do homem que persegue a perfeição e escolhe para
seu caminho (refiro-me ao caminho da reflexão sobre os problemas da
humanidade) a arte como tema fulcral e o vasa no cadinho da poesia
se é que ela própria, a arte, não é mesmo a sua última escapatória.
Luís Serrano, Set. 1997.
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