Entre a obra, vasta, de José Régio assume indiscutível
importância o poema Toada de
Portalegre do livro Fado,
cuja 1ª edição é de 1941. O poema adquiriu uma grande
popularidade, em boa parte, graças à divulgação que lhe foi dada
pelo declamador João Villaret.
Mas, sinceramente, não cremos que a sua popularidade seja
devida unicamente a essa divulgação.
O carácter narrativo do poema que o aproxima de uma romanza, a estrutura rítmica com forte incidência de repetições
anafóricas de vário tipo, o crescendo que termina num hino de amor
a uma pequena acácia, tudo isso constitui um conjunto de
ingredientes que fizeram deste poema uma obra-prima da nossa poesia
do séc. XX.
Vejamos, com algum detalhe, como esta toada
foi construída.
São, no seu todo, 246 versos distribuídos por 15
estrofes.
No entanto, destes 246 versos, 152 repetem-se duas, três
e mais vezes. Curiosamente, diga-se desde já, que 152 é o produto
de 246 por 0,618, o célebre número
de ouro que teve larga aplicação em toda a arte desde a
arquitectura à literatura (ver Jorge de Sena a propósito de Camões)
e que constituía a chave da proporção harmoniosa. Apenas 94
versos aparecem uma única vez. Esta constatação põe-nos em evidência,
de imediato, o carácter fortemente repetitivo do poema. Deve, no
entanto, dizer-se que este carácter repetitivo se processa de uma
forma complexa, sendo as unidades ou núcleos repetitivos conjuntos
de 1, 2, 3, 4, 5, e 11 versos, núcleos que se alternam, conjugam ou
imbricam das mais variadas maneiras.
No sentido de melhor compreender este mecanismo, considerámos
a existência de 9 núcleos assim distribuídos:
núcleo A -
versos 1 a 4 (repetição em 46-48, 75-78, 158-160 e 220-223);
núcleo B - v.5
a 7 (repetição em 34-36, 137-139 e 179-181);
núcleo C - v.8
a 18 (repetição em 79-81 e 224-231);
núcleo D -
v.23 a 33 (repetição em 91-103, 98, 104, 140-150, 155-156 e
203-204);
núcleo E -
v.39-40 (repetição em 49-50, 69-74, 107-112, 131-136 e 176-178);
núcleo F -
v.43-44 (repetição em 122-123 e 171-172);
núcleo G -
v.99 (repetição em 105);
núcleo H -
v.118 a 125 (repetição em 129-130, 173-174 e 182-184);
núcleo I -
v.147 (repetição em 151, 157 e 161).
A repetição processa-se quer com versos de estrofes
diferentes, quer com versos da mesma estrofe.
Os
núcleos vão-se alternando de uma forma variada e não monótona, o
que confere ao poema uma estrutura rítmica rica, apresentando-se
esses núcleos, quer na sua totalidade quer parcialmente.
Se
designássemos os núcleos por letras de A
a I (como atrás fizemos)
e designássemos por um traço todos os versos ou conjuntos de
versos que aparecessem apenas uma única vez, a Toada
de Portalegre poderia ser simbolizada por uma sucessão de
letras que mostraria uma distribuição praticamente aleatória dos
núcleos, frequentemente separados por versos não repetitivos. Tal
representação seria a seguinte:
ABCA-DB-E-F-AE-EAC-DGDG-E-HF-H-EBDIDI-DIAI-FH-EBH-D-AC
em
que AE-EA constitui uma
simetria por reflexão e por outro lado DGDG
e DIDI-DI podem ser
encaradas como simetrias por translação. Esta expressão mostra, a
nosso ver, a existência de distribuições complexas de ritmo.
Também
o tamanho dos núcleos mostra tendência para diminuir à medida que
nos aproximamos do final do poema.
Alguns
núcleos mantêm quase sempre a mesma extensão (o núcleo A, por exemplo, apresenta-se 5 vezes com extensões alternadas de 4
e 3 versos; o núcleo B
apresenta sempre a mesma extensão; o C
apresenta sucessivamente 11, 11 e 8 versos; o núcleo D tem uma clara tendência para o desaparecimento, pois o número
dos seus versos vai decrescendo de 11 para 8 para passar depois a 5,
7, 3, 2 e 2. Os restantes núcleos mantêm-se sensivelmente
constantes na sua extensão.
Há
que referir, no entanto, que os versos que se repetem, nem sempre o
fazem de modo textual. Régio, ao longo do poema, não raro lhe
introduziu pequenas variantes. Isso é tão interessante que delas
damos conta nas linhas que seguem. Assim:
Variantes
Em Portalegre,
cidade (v.1,19,46,75 e 158)
|
Que em Portalegre,
cidade (v.
220)
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De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros (v.
3, 48, 77, 160 e 222)
|
De montes e de oliveiras (v.
21)
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Morei numa casa velha
(v.4)
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Na casa em que morei,
velha (v.78)
Aos pés lá da casa
velha (v.223)
|
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Velha, grande, tosca e bela (v.5)
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Na tal casa tosca e bela
(v.34)
Da tal casa tosca e bela
(v.137 e 179)
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À qual quis como se fora
(v.6,35,87,138 e 180)
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Quis-lhe bem,
como se fora (v.16)
|
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Lá vem o vento soão!
(v.23)
|
Que havia o vento soão
(v.91,98 e 104)
Como é que o vento soão (v.140)
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Em Portalegre, dizia (v.30 e 100)
|
Em Portalegre sofria
(v.148)
Cidade onde então sofria (v.31 e 101)
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Coisas que terei pudor
(v.32,102,149 e 155)
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Que será bom ter pudor
(v.203 |
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De contar seja a quem for
(v.33,103,150 e 156)
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De as contar seja a quem
for (v.204)
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Uma pequena varanda
(v.39)
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Era uma bela varanda
(v.49)
Daquela/Bela/Varanda (v.69-71)
Àquela/Minha/Varanda (v.107-109)
Naquela/Bela/Varanda (v.131-133)
E o vento a traz à varanda (v.175)
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Diante duma janela (v.40)
|
Naquela bela janela!
(v.50)
Daquela/Minha/Janela (v.72-74,110-112,
134-136 e 176-178)
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E ao vento que anda, desanda (v.43)
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Que o vento que anda, desanda (v.122)
Ao vento que anda, desanda (v.171)
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Lá num craveiro que eu
tinha (v.118)
|
Lá no craveiro que eu
tinha (v.182)
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Onde uma cepa cansada
(v.119 e 182)
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Furando a cepa cansada
(v.129)
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Mal dava cravos sem vida
(v.120 e 184)
|
Que dava cravos sem vida
(v.130)
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Poisou qualquer
sementinha (v.121)
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Confia uma sementinha
(v.173)
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Errando entre terra e céus
(v.125)
|
Perdida entre terra e céus
(v.174)
|
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De se lembrar de fazer?
(v.99)
|
De fazer (v.105)
|
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Me trouxe a mim que,
dizia (v.147)
|
Me trouxe a mim essa
esmola (v.151)
|
|
A
profusão de variantes de cada
verso, aliada ao modo como se
articulam os núcleos é,
pois, responsável por um
ritmo não apenas bem marcado
como ainda suficientemente
complexo para evitar o tom
monocórdico de uma litania,
por exemplo.
Ao
mesmo tempo, Régio prepara
sabiamente com indiscutível
"suspense" o efeito
final dado pela salvação e
crescimento da pequena acácia:
Trazer [...]/O
testemunho maior (v.106
e 113)
Poisou qualquer
sementinha
(v.121)
Eis que uma folha
miudinha/Rompeu (v.127-128)
Me trouxe a mim essa
esmola
(v.151)
Ao vento [...]/Confia
uma sementinha (v.171-173)
E o vento a traz à
varanda
(v.175)
Nasceu essa acaciazinha
(v.185)
Que depois foi
transplantada/E cresceu (v.186 e 187)
A minha acácia crescia
(v.232)
E a cada raminho
novo/Que a tenra acácia
deitava
(v.237-238)
Como se fizera um
poema,/Ou se um filho me
nascera
(v.245-246)
Efeito
final que tem a força de um
poema (ou de um filho) e que
se contrapõe à solidão do
poeta ([...]obrigado
/
Pela
doce companhia, v.234-235
e Na
longa e negra apatia
/
Daquela
miséria extrema
/
Em
que eu vivia,
/
E
vivera, v. 241-244).
Enquanto
isso, o poeta, pela contínua
repetição, dá a imagem
obsessiva do Alentejo onde se
cruzam serras,
ventos, penhascos, oliveiras e
sobreiros e também essas
terríveis noites do vento soão, com seu cortejo de desgraça e desespero.
É
essa simples acaciazinha,
grito de amor e esperança
para quem desespera da
humanidade mas ainda não da
vida, a mensagem muito bela
contida neste poema porque
Quem desespera dos
homens,
Se a alma lhe não
secou,
A tudo transfere a
esprança
Que a humanidade
frustrou:
E é capaz de amar as
plantas,
[...]
(v.194-198)
Luís Serrano, 1995.
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