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Transire - Ventos no Casaco

de António Augusto Menano

"Região Bairradina", n.º 797, Março 2004

 

 

Transire ou transitar, passar de um lugar a outro, eis um título, desde já sugestivo porque apontando para um livro de viagens (e é-o seguramente), aponta também para o carácter efémero da nossa passagem (pelo mundo, já se vê).

A obra é precedida de um prefácio de 15 páginas da autoria de António Pedro Pita e intitula-se Onde está o livro das falas esquecidas? – Ensaio de releitura da obra de poética de António Augusto Menano e passa a ser um trabalho de referência sobre a evolução da escrita poética do autor.

A obra foi galardoada com o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2001.

Os poemas incidem, curiosamente, sobre uma série de lugares mediterrânicos se exceptuarmos Londres e Bordéus (Itália, Grécia, Sul de Espanha, Portugal, Sul de França, Egipto). Isto pressupõe, à partida, a importância que para o poeta assumem estes lugares míticos onde se desenvolveu a civilização que, mau grado alguns aspectos negativos, é ainda a nossa referência, é ainda para nós motivo de orgulho.

Logo no primeiro poema Galáxia de sangue, António Augusto Menano nos aborda falando da grande divisão do mundo que foi acordada através do Tratado de Tordesilhas (1494); a assinatura desse acordo teve lugar num palácio sito em Tordesilhas (pequena cidade próxima de Valladolid) e que ao tempo da escrita deste poema estava transformado em asilo de velhos. Este poema é um misto de recordações e de contradições onde luz e sombra se misturam (barroco / di luce e di ombri) ou como em Quando estás mais longe / estás mais perto,.

Em três poemas italianos (referem-se a Milão, Florença e Vaticano), o poeta aproveita os faits divers do quotidiano para dialogar com as grandes obras de arte (a catedral de Milão, símbolo do gótico flamejante, o Baptistério de Florença, a Pietá do Vaticano) e fá-lo com uma linguagem despida, ascética, como se recusasse esse barroco a que fazia referência no primeiro poema. Um exemplo desta contenção e desta elegância (digamos assim): Estar em Milão em Setembro à tarde/ é assim como sentir, na pele, a sombra/ e o silêncio (...).

Quase todos os poemas foram escritos, não nos locais visados mas muito longe deles. É o que acontece com Praça de S. Marcos escrito em Macau. Creio que não é por acaso que há neste poema uma chamada para os vários órgãos dos sentidos, tão forte é a impressão que nos causa a cidade de Veneza com o seu Palácio dos Doges e a sua Basílica de S. Marcos, que as nossas percepções se intersectam ou interferem umas com as outras (Um pássaro de asas azuis... A orquestra toca Vivaldi, / é doce beber café... passeamos o olhar e o corpo/ no poder gasto pelos anos.

Há referências muito significativas ao branco, à cal, à luz como também aos velhos mitos (Ariadne, o Minotauro), às oliveiras porque de tudo isso é feita a nossa cultura e o nosso entendimento com o mundo. E de repente o poeta abandona estes espaços para falar de Portugal, da serra do Buçaco onde o verde é apenas uma explosão de clorofila como que a contrapor-se à aridez da Grécia ou do Sul de Espanha. (Há, sempre, o verde./ Confirma, nos olhos,/ distâncias suspensas no tempo.// Quem fez estes minutos,/ de sons e musgo,/ vozes no húmus refrescadas? Permito-me chamar a atenção do leitor para a grande contenção dos versos transcritos onde é possível distinguir, não apenas a obsessão do olhar, mas também o ouvido que sinaliza de uma forma exemplar a passagem do tempo.

Dois poemas dedica António Menano a Buarcos, povoação onde reside; sente-se o sentimento da nostalgia de quem muito viu e viveu neste espaço tão belo e de algum modo se revê nalgumas imagens que recorda e termina (p.52) escrevendo estes versos dolorosos: Em barcos ancorados,/ frente à muralha, guarda-se a morte do tempo. De facto para o poeta e certamente para muitos pescadores (eventualmente seus antigos colegas nas brincadeiras da meninice) um certo tempo já morreu.

Regressa ao Mediterrâneo em Espelho, poema muito belo escrito na Tunísia, onde há cabras debaixo do calcário,/ poços secos (...).

Mas Portugal reaparecerá uma vez mais, agora na forma daqueles que partiram para as Franças e araganças à procura do pão que não encontravam no seu país. E eu vi-os às centenas nos bairros pobres de Bordéus.

E o livro acaba com O Terraço no Rio, escrito em Banguecoque e terminado 12 anos depois em Buarcos. Deve ter sido um poema difícil de escrever pois o poeta, ele próprio, se refere fundamentalmente a uma paleta de cores, a uma necessidade de transformar a realidade em pintura e não em poema (Na mão trago o sabor de tintas várias) mas nada disso (quero dizer a representação) impede que o poeta confesse a sua ignorância (Já não sei se sei se aquilo que digo/ é o acre sabor, da face da morte.)

Curiosamente, o poema e o livro fecham com estes três versos lapidares e significativos: Regresso sempre ao lugar onde nasci,/ aos lençóis brancos,/ ao terraço onde adormeço a ouvir o vento.

É uma edição Minerva Coimbra 2003 e representa o que de melhor escreveu este nosso amigo e regular colaborador do Região Bairradina.

Luís Serrano, Março 2004. 

 


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