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A Árvore do Sábado

de António Barbedo

"Região Bairradina", n.º 807, Maio 2004

 

 

Este é o sétimo livro de António Barbedo, poeta que é também médico psiquiatra. Há nele (no livro, entenda-se) uma regularidade que não parece ser devida ao acaso, quer no número de poemas por cada uma das seis partes onde encontramos esta sequência: 8-6-6-8-8-3, quer no número de versos por poema. Apenas a última parte (Três Sábados) contém apenas 3 poemas o que é de algum modo compensado por um número maior de versos por poema (13, 11 e 14, respectivamente). De uma maneira geral os poemas são constituídos por um número reduzido de versos (em média e por parte 5, 4, 7, 5, 8 e 13) lembrando alguns os conhecidos haikai japoneses.

Esta regularidade traduz uma grande preocupação de rigor e de contenção conseguindo comprimir em pouquíssimas palavras um pensamento, um instantâneo, um acontecimento, um gesto do quotidiano.

O título sugere-nos a referência a um lugar (o lugar onde está situada a árvore) e a um tempo, um tempo que se repete (o sábado, dia de descanso). A árvore não é uma apenas, há referências a várias: o diospir(eiro), a buganvília, a japoneira, o cedro, o tulipeiro. A todas elas está subjacente uma ideia que é a ideia de árvore. Ora, como se sabe, a árvore assume simbolicamente as duas vertentes, a feminina e a masculina. Pela sua ligação à terra através das raízes, ela adquire um carácter matricial, feminino, portanto; pela sua posição erecta, vertical, ela transforma-se num símbolo fálico, masculino. Uma tal ambiguidade casa bem com a linguagem poética que é, por natureza, ambígua, polissémica ou plurissignificativa.

Leia-se a título de exemplo o primeiro poema da obra: O sol / varre as folhas vermelhas / afasta a teia os ramos / envolve o diospiro / e o estorninho // o sol enfermo de Dezembro.

Estamos claramente num dia de inverno mas há sol e esse sol é o motor de tudo o que é dito no poema através de um processo metafórico que se socorre do verbo varrer. É o sol débil de Dezembro (que) varre as folhas vermelhas, (que) afasta a teia, (que) afasta os ramos, (que) envolve o diospiro, (que) envolve o estorninho. E tudo isto é dito com muito menos palavras do que as que eu tive de usar para dar alguma explicitação ao poema (de resto escusada). E é neste poder de contenção que reside o segredo desta poesia: simples, luminosa, transparente.

A segunda parte do livro As Mãos de Argila refere aquilo que fez do homem um ser à parte: aquilo a que chamamos civilização resulta fundamentalmente do poder transformador da mão. (É a mão que) Molda em barro preto / o cinzeiro / para pousar moedas pétalas secas

como se diz logo no primeiro poema desta segunda parte. Chamo de novo a atenção do leitor para o carácter ascético desta poesia. Não há aqui concessões a certos efeitos fáceis tão do agrado de certos poetas e que, parafraseando Alexandre O’Neill, são o pão-de-ló dos tolos.

Na terceira parte De Outro Modo reúnem-se poemas que remetem para “O Elogio da Loucura”, evento que decorreu no Hospital do Conde de Ferreira no âmbito do “Porto 2001” e é constituída por 6 poemas. De Refúgio de Baltazar Torres retiro estes dois versos belíssimos: A poesia é um lugar / onde se chega ao anoitecer.

Da quarta parte Área de Serviço destaco o poema Roda de Escape que pode perfeitamente ser visto como uma metáfora do conhecimento: desmontamos a realidade e quando julgamos que já sabemos tudo, descobrimos que afinal há sempre uma qualquer coisa que nos escapa. Vejamos o poema em questão: Desmonta o relógio de bolso / solta a corda no tambor a âncora / e o cabelo do volante / a lupa colada às pálpebras / conta as sílabas os rubis // um segredo / as iniciais na caixa de prata.

Segue-se a quinta parte que tem curiosamente o título da rua em que mora o poeta Rua Vitorino Nemésio : são um conjunto de memórias onde se insere entre outras a Igreja românica de Rio Mau (Vila do Conde) num brevíssimo apontamento. Assim: De Rio Mau / guarda a fotografia / as mãos que elevam a cabeça / até ao cordeiro / no tímpano. Da própria Rua Vitorino Nemésio e em dez simples versos António Barbedo traça um quadro do que guarda dessa rua e que não resisto à tentação de transcrever: Muito cedo / grasnam os gansos / e a névoa senta-se no regato / são mais nítidas as árvores / as sombrias gruas do horizonte / as carruagens vermelhas do comboio / muito cedo / quando as luzes deixam as casas / e cintilam pela estrada / um café curto chávena fria. É uma recordação forte dos primeiros alvores da manhã. Chamo a atenção para o verso tão belo e a névoa senta-se no regato. São versos destes que fazem a diferença entre a linguagem poética e outro qualquer tipo de linguagem (refiro-me à linguagem escrita). A poesia de Barbedo tem destas coisas: pequeninas pérolas deixadas aqui e ali mas sem abusar delas para que o seu efeito resulte plenamente. Chamo eu a isto domínio do ofício, consciência oficinal.

O livro termina com Três Sábados, dos quais me permito destacar Com os Pais em Junho; é um poema em que o poeta relembra um tempo da infância na proximidade da adolescência:

Pousa o cesto / com framboesas no mirante / os livros de Salgari / a espingarda de pressão de ar // lembra / o pai na oficina dos relógios / a mãe / ao volante do poço / regando a horta e as roseiras // magoa / como arrancar os selos ao álbum / sábado / na fábrica dos fósforos.

Que mais se pode dizer desta poesia que não seja redundante? Há nela um aticismo tão assumido que se tivesse de eleger uma cor para a caracterizar, escolheria o branco dos países e das regiões do sul, aquele de que várias vezes nos falou já Eugénio de Andrade.

E não esqueça: A poesia é um lugar / onde se chega ao anoitecer.

É uma edição da Editora Campo das Letras .  

Luís Serrano, Maio 2004
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