Acabo de receber dois livros de Orlando Neves com quem já
não contactava há muito tempo: um de ensaios, Ensaios Mínimos,
e o outro de poesia, Página Branca, ambos editados pela
Editora Matéria Escrita, e ambos com data de 2003.
Do primeiro, direi que vem a propósito, muito a propósito
mesmo, este conjunto de reflexões sobre problemas importantíssimos
do nosso tempo. São eles a aceleração desmedida que foi impressa
às nossas vidas (As Mutações), as implicações das religiões
em todas as sociedades e em especial nas ocidentais (As Religiões),
o papel da Igreja Católica enquanto instituição face aos desafios
cada vez mais dramáticos deste tempo (As Trevas), Globalização,
Valores (cada dia mais confundidos), Comunicação
(essa caixa de Pandora de que todos ou quase todos estamos
dependentes), Memória, Prostituição, etc., etc num
conjunto de dezassete pequenos artigos (pequenos apenas no tamanho
mas ambiciosos no que respeita a enfrentar sem ambiguidades e com a
coragem que se impõe, alguns dos muitos problemas com que já
vivemos e outros com que terão de viver as gerações futuras, se lá
chegarem). Isto é, se tudo isto que a humanidade andou construindo
com determinação e com erros, (mas não se afastando demasiado da
natureza até um certo momento histórico), não for tudo por água
abaixo, como diz o nosso povo, pela ambição desmedida, pela
loucura que rapidamente se vai apossando, de forma cega, do homem.
Trata-se de reflexões e também de avisos que é como
quem diz: talvez ainda seja possível evitar a catástrofe. Um livro
cuja leitura vivamente recomendamos, sobretudo aos mais novos, tanto
mais que ele tem apenas 54 páginas. Quem não tem tempo para ler
meia centena de páginas? Talvez venha a sentir-se mais esclarecido
e é esse o objectivo do autor: esclarecer, iluminar.
De Página Branca reconhecemos o poeta na
continuidade da sua obra (esta é, se me não enganei na conta, o
seu 25º livro de poesia).
Logo o seu título nos recorda o grande drama do escritor
que tem à sua frente uma página em branco e que tem de a preencher
com palavras. Sobre este desafio que diariamente se coloca ao
escritor podemos relembrar alguns escritores que reflectiram sobre
isso: Alexandre O’Neill (A mosca Albertina ou o insecto insulto
recebido como mosca), Carlos de Oliveira (Papel), António
Ramos Rosa (O papel, a mesa. o sol, a pena...), etc.
Logo no primeiro poema, Orlando Neves, nos justifica o título:
A página branca. / As palavras. / A solidão sinistra / de
pensar. // (p. 7) e mais adiante o branco é um abismo
(p. 10).
Mas este não é apenas um livro sobre o acto de criar, é
também um livro sobre a degradação, sobre a passagem inexorável
do tempo. A criação é assim, e por certo, uma forma de lutar
contra o tempo e contra a clausura do espaço; atente-se na frequência
com que o autor fala do quarto, essa porção de casa, constituída
por quatro paredes que fecham um espaço, limitam o desejo
libertador. O quarto acaba por ser assim uma metáfora da morte,
morte à qual alude explicitamente numerosas vezes.
E para este tempo sem regresso e para este espaço
claustrofóbico, os versos, as palavras, pouco valem: Mas só em
mim existe o tempo./ Eu sou a sua casa, indiferente ao que dura/ e
tem um destino. Tudo está em queda./ Não se ordena o vazio. (...)
Não/ posso suster a ruína do quarto. Nenhuma palavra/ possuo para
o reerguer. (p. 12).
No entanto, a p. 21 explicita uma pequena distinção
entre existir e possuir. Vejamos: Este quarto e o seu espaço / são
a verdadeira margem de estar. Algures, / por aqui, guardo a
nostalgia da infância, (só na infância possuí o tempo) /
(...) O quarto é a minha última/ companhia.
A p. 23 reforça as ideias já avançadas com os seguintes
versos: Nada explica o quarto, (...) princípio eterno/ da
clausura, geometria exígua para a alma.
A esta clausura somem-se as demais contradições da vida
que Orlando Neves sintetiza metaforicamente em vários oximoros (p.
35): É o instante de ausência de espaço/ na brancura da noite.
A longa queda/ pelo musical silêncio, escasso/ repouso da voz onde
o som se enreda.
Apesar de todo este olhar desencantado e magoado que se
percebe (ou que se pressente, melhor dizendo) ao longo do livro, o
poeta ainda admite (com algumas reticências, é certo), que vale a
pena Acender, uma a uma, as palavras./ Mancharão de rigor e
leveza/ a feroz brancura do papel? Levarei/ tão pouca coisa – as
palavras de sangue/ jamais ditas a alguém. (p. 39). E ainda faz
parte do papel do poeta acrescentar quase no final do livro (p. 43):
Alguém quer falar/ pela minha voz. O som morre nos dentes.
E vou terminar esta curta nota com os últimos quatro
versos desta obra belíssima e que exprimem, muito melhor do que eu
o poderia fazer, o pensamento do poeta: Continuo a esquecer. / A
página enegrece. Já não há estrelas. / Nada posso fazer. Este é
outro silêncio. /
Onde jamais a palavra explodirá.
O autor destas linhas não resiste a exclamar: Que bom ler
um livro assim, nem que seja só de vez em quando!
Luís Serrano, Maio 2004.
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