Acesso à página inicial.


Artigos Publicados


Dois livros de Orlando Neves:

Ensaios mínimos e Página branca

"Região Bairradina", n.º 805, Maio 2004

 

 

Acabo de receber dois livros de Orlando Neves com quem já não contactava há muito tempo: um de ensaios, Ensaios Mínimos, e o outro de poesia, Página Branca, ambos editados pela Editora Matéria Escrita, e ambos com data de 2003.

Do primeiro, direi que vem a propósito, muito a propósito mesmo, este conjunto de reflexões sobre problemas importantíssimos do nosso tempo. São eles a aceleração desmedida que foi impressa às nossas vidas (As Mutações), as implicações das religiões em todas as sociedades e em especial nas ocidentais (As Religiões), o papel da Igreja Católica enquanto instituição face aos desafios cada vez mais dramáticos deste tempo (As Trevas), Globalização, Valores (cada dia mais confundidos), Comunicação (essa caixa de Pandora de que todos ou quase todos estamos dependentes), Memória, Prostituição, etc., etc num conjunto de dezassete pequenos artigos (pequenos apenas no tamanho mas ambiciosos no que respeita a enfrentar sem ambiguidades e com a coragem que se impõe, alguns dos muitos problemas com que já vivemos e outros com que terão de viver as gerações futuras, se lá chegarem). Isto é, se tudo isto que a humanidade andou construindo com determinação e com erros, (mas não se afastando demasiado da natureza até um certo momento histórico), não for tudo por água abaixo, como diz o nosso povo, pela ambição desmedida, pela loucura que rapidamente se vai apossando, de forma cega, do homem.

Trata-se de reflexões e também de avisos que é como quem diz: talvez ainda seja possível evitar a catástrofe. Um livro cuja leitura vivamente recomendamos, sobretudo aos mais novos, tanto mais que ele tem apenas 54 páginas. Quem não tem tempo para ler meia centena de páginas? Talvez venha a sentir-se mais esclarecido e é esse o objectivo do autor: esclarecer, iluminar.

De Página Branca reconhecemos o poeta na continuidade da sua obra (esta é, se me não enganei na conta, o seu 25º livro de poesia).

Logo o seu título nos recorda o grande drama do escritor que tem à sua frente uma página em branco e que tem de a preencher com palavras. Sobre este desafio que diariamente se coloca ao escritor podemos relembrar alguns escritores que reflectiram sobre isso: Alexandre O’Neill (A mosca Albertina ou o insecto insulto recebido como mosca), Carlos de Oliveira (Papel), António Ramos Rosa (O papel, a mesa. o sol, a pena...), etc.

Logo no primeiro poema, Orlando Neves, nos justifica o título: A página branca. / As palavras. / A solidão sinistra / de pensar. // (p. 7) e mais adiante o branco é um abismo (p. 10).

Mas este não é apenas um livro sobre o acto de criar, é também um livro sobre a degradação, sobre a passagem inexorável do tempo. A criação é assim, e por certo, uma forma de lutar contra o tempo e contra a clausura do espaço; atente-se na frequência com que o autor fala do quarto, essa porção de casa, constituída por quatro paredes que fecham um espaço, limitam o desejo libertador. O quarto acaba por ser assim uma metáfora da morte, morte à qual alude explicitamente numerosas vezes.

E para este tempo sem regresso e para este espaço claustrofóbico, os versos, as palavras, pouco valem: Mas só em mim existe o tempo./ Eu sou a sua casa, indiferente ao que dura/ e tem um destino. Tudo está em queda./ Não se ordena o vazio. (...) Não/ posso suster a ruína do quarto. Nenhuma palavra/ possuo para o reerguer. (p. 12).

No entanto, a p. 21 explicita uma pequena distinção entre existir e possuir. Vejamos: Este quarto e o seu espaço / são a verdadeira margem de estar. Algures, / por aqui, guardo a nostalgia da infância, (só na infância possuí o tempo) / (...) O quarto é a minha última/ companhia.

A p. 23 reforça as ideias já avançadas com os seguintes versos: Nada explica o quarto, (...) princípio eterno/ da clausura, geometria exígua para a alma.

A esta clausura somem-se as demais contradições da vida que Orlando Neves sintetiza metaforicamente em vários oximoros (p. 35): É o instante de ausência de espaço/ na brancura da noite. A longa queda/ pelo musical silêncio, escasso/ repouso da voz onde o som se enreda.

Apesar de todo este olhar desencantado e magoado que se percebe (ou que se pressente, melhor dizendo) ao longo do livro, o poeta ainda admite (com algumas reticências, é certo), que vale a pena Acender, uma a uma, as palavras./ Mancharão de rigor e leveza/ a feroz brancura do papel? Levarei/ tão pouca coisa – as palavras de sangue/ jamais ditas a alguém. (p. 39). E ainda faz parte do papel do poeta acrescentar quase no final do livro (p. 43): Alguém quer falar/ pela minha voz. O som morre nos dentes.

E vou terminar esta curta nota com os últimos quatro versos desta obra belíssima e que exprimem, muito melhor do que eu o poderia fazer, o pensamento do poeta: Continuo a esquecer. / A página enegrece. Já não há estrelas. / Nada posso fazer. Este é outro silêncio. /

Onde jamais a palavra explodirá.

O autor destas linhas não resiste a exclamar: Que bom ler um livro assim, nem que seja só de vez em quando!

Luís Serrano, Maio 2004. 

 


Página inicial Página seguinte