Estória do Homem que Comeu a sua Morte,
editado pela Editorial Caminho (O Campo da Palavra) e que acabei de
ler há alguns dias, só não foi uma grande revelação para mim,
pois que deste autor já nada me espanta depois de ter lido O
Canto de Sangardata, uma das obras mais importantes da ficção
portuguesa dos últimos anos. Bem sei que este livro é feito
de contos pertencentes a outros livros mais antigos que eu
desconhecia, (mea tanta culpa), mas nem por isso deixa de ser
um belo mostruário das capacidades de Ascêncio de Freitas.
A primeira qualidade que vejo nele é a capacidade para
adaptar os aspectos formais à estória que se pretende contar
(aquilo a que o Eugénio Lisboa chamou, no prefácio, o estilo). Mas
então há que retirar as óbvias conclusões: o estilo de
Ascêncio de Freitas é um estilo multímodo, polifacetado com o
qual, porventura, mais facilmente e mais adequadamente vê o mundo,
um pouco, como se se tratasse de uma visão polifónica, passe a
comparação que é um pouco abusiva. Mas não sei se me faço
entender: é como se o autor mudasse de lentes para ver a realidade
ou mudasse de posição (de ponto de vista), como quando inclinamos
a cabeça para ver de um outro ângulo. A linguagem utilizada é
fundamental para isso. A arte é, de resto e fundamentalmente, um
processo formal, isto é, um processo que não pode descurar os
aspectos formais sob pena de se suicidar. Não basta ter uma boa estória
para contar, é preciso saber contá-la.
Falava da linguagem para pôr em destaque, neste livro, as
suas funções: a de traduzir a oralidade, no que se refere aos
contos que se debruçam sobre a realidade moçambicana (Noite
alumiada de vermelho; Amanhece, manhã, amanhecendo; Barro não
é pedra, não; Chove chuva, chuverando; Lukutúkue; Mainato Paulino
e sô Basilo) e aqui talvez não seja descabida uma aproximação
a Guimarães Rosa que teve decisiva influência em escritores que
vivem ou viveram nas ex-colónias portuguesas como Luandino Vieira,
por exemplo.
Noite Alumiada ... para falar do primeiro conto cuja acção se passa
em Moçambique, é de uma grande delicadeza pondo o acento tónico
no remorso que colhe cada homem no mais fundo de si próprio mesmo
quando se trata de mostrar as valentias de macho. No meio da exploração
de um povo miserável, há muitas vezes da parte do opressor (que às
vezes não passa de opressor oprimido, ou seja, opressor ao serviço
de terceiros) o desabrochar de sentimentos delicados que o levam a
envergonhar-se do seu comportamento. Digamos que não chega mas já
é alguma coisa, ou seja quando alguém se envergonha de uma feia acção,
nem tudo está ainda perdido.
Barro não é pedra, não é um conto notável, ou melhor, é uma verdadeira
novela, não apenas pelo tamanho mas sobretudo pela complexidade
narrativa que apresenta, narrativa da primeira pessoa dando largas a
um léxico variado e trabalhado, em que a reflexão e a narração
dos factos se alternam de uma forma equilibradíssima.
Chove chuva... é um conto que revela um aspecto sórdido das relações
entre brancos e pretos no tempo do colonialismo. Infelizmente, este
conto não é pura ficção. Aconteceram casos destes em que o
nativo foi julgado como uma coisa (e portanto, um escravo). O conto
tem uma força que nos tira a respiração, tal é a violência que
nos é lançada em rosto. É daquelas situações em que a vítima não
consegue perceber qual foi o seu erro ou o seu crime a menos
que seja contado como crime o facto de se existir.
De Lukutúkue direi que se trata de um canto de denúncia
do que foram os últimos tempos do colonialismo e do papel da polícia
política. Está muito bem construído alternando a narração dos
factos com o refrão das partes 1, 6 e11, como se de um poema se
tratasse: Lukutúkue morreu!...Mas tem mal assim, não, os
passarinho no mato, quando que está cantar, canta lukutúkue lukutúkue!...De
facto, toda a natureza canta lukutúkue porque esse é o
canto da vida e da solidariedade, não o do ódio. Excelente é o mínimo
que se pode dizer.
Não precisaria de mais exemplos para dizer que estamos
perante um grande livro de contos, essa arte da comprimir no espaço
um acontecimento, uma estória, mas a que não deve faltar o sentido
do exemplo e proveito.
Dos restantes contos, uma palavra ainda para Memória
Sobreposta. De facto, trata-se de um pequeno romance de cerca de
60 páginas. Na realidade, a estrutura narrativa é suficientemente
complexa para que lhe chamemos romance (com as suas analepses – os
flash-back do cinema). De resto, há uma verdadeira linguagem
fílmica, que nos recorda o processo de montagem cinematográfica
com alternância de lugares onde decorre a acção desta estória. A
África colonial e a metrópole surgem como as duas faces de uma
mesma moeda, a das contradições de lá e de cá, o sem sentido da
morte no teatro militar deixando órfãos de um lado e de outro.
Os contos Segunda Mentira, Quarta Mentira e
Quinta Mentira acordam na minha memória as histórias de caçadores
que sempre hiperbolizavam as suas façanhas venatórias e acordam em
mim algumas que vim a ler nos livros do Alphonse Daudet.
As últimas estórias são também deliciosas e até os títulos
dão bem conta da singularidade dos factos a que aludem: Estória
dos meninos que não quiseram repartir sua galinha que não tinham e
Estória do homem que comeu a sua morte.
Estão neste livro 18 contos que são todos contos dignos
de figurar em antologias. Digo-o com forte convicção, de tal modo
foi a impressão que me causaram.
Fico hoje, por aqui, caro leitor. Não digo nem mais uma
palavra sobre o livro. Quis apenas aguçar-lhe o apetite e
manhosamente, escondo-lhe a trama e o significado dos contos
restantes. Tenha um novo ano, o ano de 2003, à medida dos seus
desejos..
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Luís Serrano, Jan. 2003
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