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Passeando pela laguna de Aveiro

"Região Bairradina", n.º 720, Julho 2002

 

 

A luz aqui estremece antes de pousar...
Raul Brandão, Os Pescadores

A laguna de Aveiro, mais conhecida por Ria de Aveiro, constitui um acidente geomorfológico semelhante a outros que existem pelo mundo: a foz do Brenta e do Piave que com o Adige e o Pó acabam por enquadrar a laguna de Veneza, a foz do Ródano cujo delta, na extremidade da Provença, dá origem à bela região da Camarga, a dos cavalos selvagens, com o seu vértice Norte em Avignon, a do Guadalquivir que possui vértices em Sevilha e Cádiz, isto para não citar senão alguns bem conhecidos e relativamente próximos.

Esta laguna desenvolveu-se através de um jogo onde por certo tiveram um papel importante  o mar, a terra e até o próprio rio Vouga. Porventura, a laguna já foi uma ria quando por efeito da subida do nível das águas do oceano, o mar terá entrado terra adentro através dos vales. Mas isso foi já há muito tempo, uns largos milhões de anos atrás, pois que toda esta zona apresenta características de pântano desde os últimos tempos cretácicos (cerca de 65 milhões de anos). O estudo das argilas que se encontram na vizinhança de Aveiro têm mostrado fósseis de crocodilos e de tartarugas além de outros seres vivos animais que atestam condições climáticas semelhantes às que encontramos hoje em clima tropical. O mesmo se diga da flora. São conhecidos vestígios de árvores descobertas em vários locais das proximidades de Águeda (Aguada de Cima, p. ex.) aquando da exploração das chamadas argilas negras e noutros pontos onde foram abertos poços para extracção de água.

Vem tudo isto a propósito de um passeio de barco que há pouco tempo dei com alguns amigos.

Em boa hora se puseram a funcionar velhos moliceiros que com um pequeno motor e no intervalo de uma hora nos levam do centro de Aveiro (em frente ao Turismo) e através de canais, até próximo da Empresa do bacalhau e nos trazem de regresso ao local de partida mas por outro caminho. Um itinerário alternativo leva-nos a S. Jacinto (ida e volta, cerca de duas horas). É um passeio que nos faz mudar o ponto de vista sem por isso deixar de nos permitir abraçar de uma só vez a montanha (para os lados de Sever do Vouga) e o mar do lado da Barra e da Gafanha da Nazaré.

É muito difícil dizer sobre a Ria alguma coisa de novo. Raul Brandão já falou da luz, desses reflexos tremendos que os fotógrafos conhecem bem e que os leva a ter cautelas acrescidas.

A própria região de turismo não é por acaso que se chama Rota da Luz.

Em qualquer dos casos, a sensação que se tem é de que está tudo ao mesmo nível: água e terra num casamento tão íntimo que por vezes se torna difícil estabelecer uma fronteira. A sublinhar essa indefinição  dizia Raul Brandão: Bois pastam na água, um barco navega no interior das terras... A ria é mágica e possui uma luz própria que a veste. (p.70 de Os Pescadores).

É tremendamente difícil dar em palavras esse clima de sonho, de irrealidade, que a Ria oferece a quem a olha. Por isso, o mesmo Raul Brandão, que tão bem sabia utilizar as palavras, sugeria que só a pintura era susceptível de traduzir sem trair, essa realidade por onde circulava o sal, o moliço, o sangue, digamos assim, o sangue que desde sempre alimentou uma grande comunidade. Dizia ele a propósito: O que eu queria dar só o podem fazer os pintores – os tons molhados, os reflexos verdes, o galopar das nuvens fugindo sobre a imensa superfície polida, e, por fim, ao cair da tarde, a agonia dolorosa da luz.

Toda a vida destas comunidades tem estado, ao longo dos séculos, na dependência da laguna. Se a sua saída para o mar fecha, as populações têm de procurar o seu sustento noutras paragens. Se ela funciona, então, os barcos entram e saem, levando louça e outras peças cerâmicas (como ficou provado com o estudo de um barco naufragado junto à ponte da Costa Nova de meados do século XV), e trazendo de volta coisas necessárias para as pessoas que aqui vivem. A vida da Ria é um barómetro sensível: a sua saúde transmite-se à comunidade, a sua instabilidade tem reflexos negativos na vida social.

Curiosamente, ao ler-se Raul Brandão, o celebrado escritor de Húmus, falecido em 1930 (há, portanto, 72 anos), não podemos deixar de ter uma sensação de grande actualidade sobre esta paisagem, única do nosso país, que ele descreveu com grande rigor em Os Pescadores e cuja leitura recomendo vivamente. Para o fazer andou dias e dias metido nos moliceiros com os pescadores (Há três dias que ando metido na ria, com a barba por fazer, sujo como um ladrão de estrada, e fora de toda a realidade. Afigura-se-me que vivo num país estranho – amplidão, água e sonho dizia ele).

Deste espelho de luz onde a água alterna uma certa transparência com a opacidade da nata fique-nos ainda e a terminar esta passagem de Os Pescadores: Sinto que a tinta que envolve a paisagem morre a muito custo, e que toda esta humidade se quer fartar de luz, transformando-se como numa mágica em explosões e cores desgrenhadas pelos ares e em cenários irreais na terra cheia de mistério, até que um único risco de oiro ao cimo de água, oscila, serpenteia e acaba por desaparecer num último arabesco...

Luís Serrano, Julho 2002. 

 


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