h) –
Oração do Dr. Francisco de Assis Ferreira da Maia:
Monsenhor
Raul Mira, Rev.mo Vigário Geral da Diocese,
Ex.mo
Senhor Governador Civil,
Ex.mas
Autoridades Civis e Militares,
Ex.mo
Senhor Prof. Doutor Egas Moniz
(1),
Vim a
este lugar para só deixar falar o coração. E o meu coração de português
manda-me, antes de tudo, apresentar ao ilustre Sábio, honra e glória de
Portugal, os mais respeitosos e afectuosos cumprimentos. Fui recebido
por S.ª Ex.ª, em Lisboa já vão decorridos vinte e sete anos, mas ainda o
não esqueci! –, com uma fidalguia, que nunca mais encontrei igual, na
vida.
Minhas
Senhoras e Meus Senhores,
Como
tantos que vieram de longada à minha querida Terra, como todos os
Antigos Alunos do nosso Liceu, a quem saúdo cordialmente, eu venho
trazer o melhor da minha alma, as recordações de um passado já distante,
– singelo ramo de flores de um coração agradecido.
Enternecidamente, a minha saudade evoca os companheiros queridos – Pedro
Bernardo Camelo, António Barbosa, António Chaves Maia, Antero Machado,
Luís Vieira dos Santos, Samuel Maia, João Joaquim Pires, nobre carácter
que, dirigindo o Liceu com o melhor aprumo, tão galhardamente lutou,
como eu vi em horas difíceis, conseguindo legar-nos, intactas, as suas
gloriosas e honrosas tradições, e Horácio Seabra Rodrigues,
/
95 / Angelina Férrer
Antunes, tão gentil e tão distinta – «infeliz do homem, disse Júlio
Dantas, pelo qual nunca passou um sorriso de mulher» –, e outros ainda,
que o Destino impiedosamente foi tombando pelo caminho.
Na mesma
saudosa lembrança, respeitosamente e com gratidão, envolvo os
Professores falecidos, que naquela Casa trabalharam nos ditosos tempos
em que, descuidados, nela vivemos talvez os melhores anos da nossa vida.
E passam
diante de nós – oh doce e amarga ilusão! – vultos que conhecemos há
quase meio século:
– A
figura máscula do Reitor Francisco Regala, antigo e distinto oficial da
Armada;
o
enérgico e dinâmico Reitor Dr. Álvaro de Moura, que sabia dizer a tempo
uma frase de espírito;
o Dr.
Elias, octogenário, de barbas à Sócrates, inteligência privilegiada, que
manejava a língua materna com a mesma desenvoltura com que aplicava o
rigor da lógica no ensino da Matemática, e cujo rosto estranhamente se
iluminava de alegria quando obtinha do aluno a resposta exacta;
o Padre
Vieira, espírito travesso, que espalhava a esmo, nas aulas e fora delas,
a graça das suas pitorescas anedotas, que provocavam sempre as mais
francas gargalhadas;
o Dr.
Soares, em cujas aulas, por contraste, o riso parecia racionado, e que
se empenhou em nos deixar aptos a dominar as dificuldades do francês
(especialmente da gramática) e da pronúncia inglesa;
o Dr.
Eduardo Silva, profundo conhecedor da língua de Virgílio, em que chegou
a compor Versos dignos de apreço;
o Dr.
Ferreira da Cunha, que sabia seleccionar, para traduzir do francês, os
trechos que melhor falassem ao nosso coração infantil;
o Dr.
Brito Guimarães, a quem o Liceu oportunamente pagou a dívida de
gratidão, inaugurando o seu retrato no gabinete de Física, para cujo
enriquecimento notavelmente contribuiu, quando Ministro do Trabalho.
Quantas vezes tenho lembrado o que lhe ouvi um dia: – «Está aí um
menino, que é como as perdizes; as perdizes escondem a cabeça na terra,
e como não vêem ninguém, julgam que ninguém as vê!» (Já se sabe... era
comigo...)
A minha
saudade não pode esquecer os professores provisórios – o capitão Mário
Gamelas, os médicos Dr. José Maria Soares e Dr. Lourenço Peixinho,
sempre indulgentes, o advogado Dr. Teixeira Neves, de palavra fácil e
fluente, que nos iniciou na Filosofia, e o Dr. Barjona de Freitas, com
quem estudámos
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o cruciante dilema shakespeariano – (To be or not to be...), que
tanto me impressionou.
Felizmente, vivem ainda os Srs. António Felizardo e os Drs. Álvaro
Ataíde e Agostinho de Sousa, já aposentados, Dr. José Duarte Carrilho
(do Liceu de Braga) e Dr. Carlos Negrão (do Liceu de Huíla), aos quais
dirijo as minhas respeitosas saudações.
* * *
O tempo
passou e fez cair a neve sobre a minha cabeça. Mas julgo. estar ainda a
ouvir o inconfundível som festivo dos sinos da Câmara e os vivas
entusiásticos com que, alvoroçados, atroámos os ares, por ocasião de
excursões vindas doutros liceus; as vozes cheias de alacridade «de duas
centenas de estudantes que se movimentavam no único recreio da época – a
actual Praça da República; a algazarra verdadeiramente infernal que, nos
intervalos, enchia o átrio, em dias de chuva; os arautos da Academia, os
Cabritas e os Vilhenas, os Rebochos e os Canelhas, os Vidais, de Vagos,
e os Guerras, de Ílhavo; as intermitentes e secas badaladas da sineta, a
anunciar as aulas...
E estou a
ver o contínuo Sousa Maia, ajoujado ao peso dos vários livros de ponto,
fazendo a chamada, processo obsoleto que ia às vezes tirar de apuros
alunos que claudicavam e, até, quebrar a monotonia de algumas lições.
Para lhes
dar vida, é indispensável saber criar o interesse, despertar o
apetite, indispensável é também utilizar material didáctico
adequado. Do primeiro ao quinto ano (1909-1914), lembro-me de ter visto,
além de alguns mapas, a experiência do «Looping the Loop», um esqueleto
mais ou menos desconjuntado, uma gaivota e... pouco mais. Realmente, não
se podem fazer morcelas sem sangue, a não ser as de Arouca.
Poderia o
pensamento ser agora tentado a resvalar para o ingrato campo da crítica
– a métodos, processos de ensino e sistemas de classificação e de
disciplina. Mas a capa, que tão gentilmente colocaram sobre os meus
ombros, embargaria a minha voz, impedindo-me de pronunciar uma palavra
que pudesse ferir susceptibilidades, porque debaixo das capas dos
estudantes só devem pulsar corações nobres e generosos.
E nós, os que estamos no inverno da vida
e damos agora razão ao imortal João de Deus, devemos saber viver o
intenso encanto espiritual destes momentos fugazes, gozar a felicidade
de recordar os tempos em que fomos novos e fortes e felizes, sem
perturbar a serena paz religiosa dos que jazem no túmulo, a dormir o
último sono.
/ 97 /
* * *
Mais
tarde (1916-1917) voltei ao Liceu, que, para nós, aveirenses, lembrará
sempre o gigante da oratória parlamentar, o famoso José Estêvão, quando
começaram a funcionar os cursos complementares de letras e ciências e
nele foi colocado o meu velho e querido Mestre, sr. Dr. José Pereira
Tavares, seu ilustre Reitor há quase onze anos consecutivos, a quem,
pelos relevantes serviços prestados à causa da educação e à cultura,
aquela Casa, a cidade e o País muito devem. Deste lugar lhe apresento as
sinceras homenagens da minha admiração e do meu respeito.
E não
será dever nosso tributar-lhe aqui, e de pé, os mais veementes aplausos
por esta magnífica jornada das comemorações centenárias, produto, em
grande parte, da sua infatigável actividade e do seu prestígio?
Não é sem
emoção que recordo o tempo, em que o sr. Dr. Tavares – e nem ele, nem eu
tínhamos cabelos brancos – me prometia (dez reis por cada cinco minutos
que eu estivesse calado». Como nunca se verificou a condição, a promessa
– escusado seria dizê-lo –, nunca pôde ser cumprida!
Mal diria
eu que, mais tarde, quando passei a fazer parte do corpo docente,
quantas vezes me mandaria falar… E agora mesmo, em que, como antigo
aluno, eu preferiria sentir... em silêncio.
À sua
firme amizade, que muito me desvanece, devo a imerecida honra, que
penhoradamente agradeço, de me encontrar aqui, apesar de condenado, mau
grado meu, a dizer, descoloridamente, o que porventura, terá sido dito
por outros e com maior brilho.
* * *
Forte
rajada de ar novo entrou então por aquela Casa, para a qual, pelo seu
esforço inteligente, tenaz e metódico, se abriu uma fase de progressivo
desenvolvimento.
Animado
por decidida vocação, possuindo, além de sólida cultura, a melhor
preparação pedagógica, adquirida nas lições de Mestres de fama, como o
grande camonianista Dr. José Maria Rodrigues, que nele via um dos seus
discípulos dilectos – ofereceu-lhe todos os livros que publicou e, com
expressiva dedicatória, o seu retrato –, o sr. Dr. Tavares, exemplo vivo
de amor à profissão e ao trabalho, pode legitimamente orgulhar-se de
deixar em cada aluno um admirador e um amigo.
Estou a
vê-lo – já lá vão trinta e quatro anos! – ora de
/
98 / pé, ora sentado num
banco (nunca subiu os estrados sobre que se erguiam então as
secretárias), mas sempre junto a nós, lendo ou comentando, com ardor
transparente, passos das várias obras literárias exigidas pelo programa,
provocando a nossa colaboração, esforçando-se por, carinhosamente,
desenvolver o nosso incipiente espírito crítico, e afervorando em nós o
amor à língua materna e o culto dos grandes ideais.
Para o
sr. Dr. Tavares – e «os professores mostram a sua alma para que todos a
vejam bem» –, a educação é uma obra de amor, implica ternura.
Se o
professor, como alguém notou, é um artista que não chega a ver
completamente a sua obra – quantas sugestões terão os Mestres fornecido,
sem o pressentir, sem o saber! –, pode afirmar-se, sem hipérbole, que a
bondade do sr. Dr. Tavares, modelo de paciência, deu a todos o
permanente exemplo da afabilidade no trato, de modo a ser – reconhecido
pelos pais que o sabem reconhecer – o interesse, o cuidado e o carinho
com que, ali, lhes educam os filhos.
Ei-los
aqui, ao lado dos Antigos Alunos, a assistir a este eloquente testemunho
de amor à Casa onde primeiro se formou o nosso espírito, a receber esta
indelével e admirável lição.
A vós,
jovens – elos de uma cadeia que nunca deverá ser interrompida –,
entregamos o facho ardente do nosso entusiasmo, deste fogo sagrado, que,
de lança em riste, com fé e com orgulho, devereis segurar bem, através
da vossa vida, vós, a quem damos os louros, as palmas
e as flores, vós, jovens, a quem, sentidamente, estendemos as mãos
(2).
__________________________________________
(1) –
Imediatamente, a assistência, palmeou, de pé, o eminente Sábio, que da
frisa onde estava agradeceu ao Dr. Assis a referência à sua pessoa.
(2)
–
E apertou a mão aos alunos que se encontravam no palco, a seu lado. – Em
seguida, leu os nomes dos antigos alunos, que aderiram às festas
enviando importantes donativos em dinheiro.
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