Acersso à hierarquia superior
 

Livro do 1.º Centenário do Liceu de Aveiro (1851-1951)

h) – Oração do Dr. Francisco de Assis Ferreira da Maia:

Monsenhor Raul Mira, Rev.mo Vigário Geral da Diocese,

Ex.mo Senhor Governador Civil,

Ex.mas Autoridades Civis e Militares,

Ex.mo Senhor Prof. Doutor Egas Moniz (1),

Vim a este lugar para só deixar falar o coração. E o meu coração de português manda-me, antes de tudo, apresentar ao ilustre Sábio, honra e glória de Portugal, os mais respeitosos e afectuosos cumprimentos. Fui recebido por S.ª Ex.ª, em Lisboa já vão decorridos vinte e sete anos, mas ainda o não esqueci! –, com uma fidalguia, que nunca mais encontrei igual, na vida.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Como tantos que vieram de longada à minha querida Terra, como todos os Antigos Alunos do nosso Liceu, a quem saúdo cordialmente, eu venho trazer o melhor da minha alma, as recordações de um passado já distante, – singelo ramo de flores de um coração agradecido.

Enternecidamente, a minha saudade evoca os companheiros queridos – Pedro Bernardo Camelo, António Barbosa, António Chaves Maia, Antero Machado, Luís Vieira dos Santos, Samuel Maia, João Joaquim Pires, nobre carácter que, dirigindo o Liceu com o melhor aprumo, tão galhardamente lutou, como eu vi em horas difíceis, conseguindo legar-nos, intactas, as suas gloriosas e honrosas tradições, e Horácio Seabra Rodrigues, / 95 /  Angelina Férrer Antunes, tão gentil e tão distinta – «infeliz do homem, disse Júlio Dantas, pelo qual nunca passou um sorriso de mulher» –, e outros ainda, que o Destino impiedosamente foi tombando pelo caminho.

Na mesma saudosa lembrança, respeitosamente e com gratidão, envolvo os Professores falecidos, que naquela Casa trabalharam nos ditosos tempos em que, descuidados, nela vivemos talvez os melhores anos da nossa vida.

E passam diante de nós – oh doce e amarga ilusão! – vultos que conhecemos há quase meio século:

– A figura máscula do Reitor Francisco Regala, antigo e distinto oficial da Armada;

o enérgico e dinâmico Reitor Dr. Álvaro de Moura, que sabia dizer a tempo uma frase de espírito;

o Dr. Elias, octogenário, de barbas à Sócrates, inteligência privilegiada, que manejava a língua materna com a mesma desenvoltura com que aplicava o rigor da lógica no ensino da Matemática, e cujo rosto estranhamente se iluminava de alegria quando obtinha do aluno a resposta exacta;

o Padre Vieira, espírito travesso, que espalhava a esmo, nas aulas e fora delas, a graça das suas pitorescas anedotas, que provocavam sempre as mais francas gargalhadas;

o Dr. Soares, em cujas aulas, por contraste, o riso parecia racionado, e que se empenhou em nos deixar aptos a dominar as dificuldades do francês (especialmente da gramática) e da pronúncia inglesa;

o Dr. Eduardo Silva, profundo conhecedor da língua de Virgílio, em que chegou a compor Versos dignos de apreço;

o Dr. Ferreira da Cunha, que sabia seleccionar, para traduzir do francês, os trechos que melhor falassem ao nosso coração infantil;

o Dr. Brito Guimarães, a quem o Liceu oportunamente pagou a dívida de gratidão, inaugurando o seu retrato no gabinete de Física, para cujo enriquecimento notavelmente contribuiu, quando Ministro do Trabalho. Quantas vezes tenho lembrado o que lhe ouvi um dia: – «Está aí um menino, que é como as perdizes; as perdizes escondem a cabeça na terra, e como não vêem ninguém, julgam que ninguém as vê!» (Já se sabe... era comigo...)

A minha saudade não pode esquecer os professores provisórios – o capitão Mário Gamelas, os médicos Dr. José Maria Soares e Dr. Lourenço Peixinho, sempre indulgentes, o advogado Dr. Teixeira Neves, de palavra fácil e fluente, que nos iniciou na Filosofia, e o Dr. Barjona de Freitas, com quem estudámos / 96 / o cruciante dilema shakespeariano – (To be or not to be...), que tanto me impressionou.

Felizmente, vivem ainda os Srs. António Felizardo e os Drs. Álvaro Ataíde e Agostinho de Sousa, já aposentados, Dr. José Duarte Carrilho (do Liceu de Braga) e Dr. Carlos Negrão (do Liceu de Huíla), aos quais dirijo as minhas respeitosas saudações.

* * *

O tempo passou e fez cair a neve sobre a minha cabeça. Mas julgo. estar ainda a ouvir o inconfundível som festivo dos sinos da Câmara e os vivas entusiásticos com que, alvoroçados, atroámos os ares, por ocasião de excursões vindas doutros liceus; as vozes cheias de alacridade «de duas centenas de estudantes que se movimentavam no único recreio da época – a actual Praça da República; a algazarra verdadeiramente infernal que, nos intervalos, enchia o átrio, em dias de chuva; os arautos da Academia, os Cabritas e os Vilhenas, os Rebochos e os Canelhas, os Vidais, de Vagos, e os Guerras, de Ílhavo; as intermitentes e secas badaladas da sineta, a anunciar as aulas...

E estou a ver o contínuo Sousa Maia, ajoujado ao peso dos vários livros de ponto, fazendo a chamada, processo obsoleto que ia às vezes tirar de apuros alunos que claudicavam e, até, quebrar a monotonia de algumas lições.

Para lhes dar vida, é indispensável saber criar o interesse, despertar o apetite, indispensável é também utilizar material didáctico adequado. Do primeiro ao quinto ano (1909-1914), lembro-me de ter visto, além de alguns mapas, a experiência do «Looping the Loop», um esqueleto mais ou menos desconjuntado, uma gaivota e... pouco mais. Realmente, não se podem fazer morcelas sem sangue, a não ser as de Arouca.

Poderia o pensamento ser agora tentado a resvalar para o ingrato campo da crítica – a métodos, processos de ensino e sistemas de classificação e de disciplina. Mas a capa, que tão gentilmente colocaram sobre os meus ombros, embargaria a minha voz, impedindo-me de pronunciar uma palavra que pudesse ferir susceptibilidades, porque debaixo das capas dos estudantes só devem pulsar corações nobres e generosos.

E nós, os que estamos no inverno da vida e damos agora razão ao imortal João de Deus, devemos saber viver o intenso encanto espiritual destes momentos fugazes, gozar a felicidade de recordar os tempos em que fomos novos e fortes e felizes, sem perturbar a serena paz religiosa dos que jazem no túmulo, a dormir o último sono. / 97 /

* * *

Mais tarde (1916-1917) voltei ao Liceu, que, para nós, aveirenses, lembrará sempre o gigante da oratória parlamentar, o famoso José Estêvão, quando começaram a funcionar os cursos complementares de letras e ciências e nele foi colocado o meu velho e querido Mestre, sr. Dr. José Pereira Tavares, seu ilustre Reitor há quase onze anos consecutivos, a quem, pelos relevantes serviços prestados à causa da educação e à cultura, aquela Casa, a cidade e o País muito devem. Deste lugar lhe apresento as sinceras homenagens da minha admiração e do meu respeito.

E não será dever nosso tributar-lhe aqui, e de pé, os mais veementes aplausos por esta magnífica jornada das comemorações centenárias, produto, em grande parte, da sua infatigável actividade e do seu prestígio?

Não é sem emoção que recordo o tempo, em que o sr. Dr. Tavares – e nem ele, nem eu tínhamos cabelos brancos – me prometia (dez reis por cada cinco minutos que eu estivesse calado». Como nunca se verificou a condição, a promessa – escusado seria dizê-lo –, nunca pôde ser cumprida!

Mal diria eu que, mais tarde, quando passei a fazer parte do corpo docente, quantas vezes me mandaria falar… E agora mesmo, em que, como antigo aluno, eu preferiria sentir... em silêncio.

À sua firme amizade, que muito me desvanece, devo a imerecida honra, que penhoradamente agradeço, de me encontrar aqui, apesar de condenado, mau grado meu, a dizer, descoloridamente, o que porventura, terá sido dito por outros e com maior brilho.

* * *

Forte rajada de ar novo entrou então por aquela Casa, para a qual, pelo seu esforço inteligente, tenaz e metódico, se abriu uma fase de progressivo desenvolvimento.

Animado por decidida vocação, possuindo, além de sólida cultura, a melhor preparação pedagógica, adquirida nas lições de Mestres de fama, como o grande camonianista Dr. José Maria Rodrigues, que nele via um dos seus discípulos dilectos – ofereceu-lhe todos os livros que publicou e, com expressiva dedicatória, o seu retrato –, o sr. Dr. Tavares, exemplo vivo de amor à profissão e ao trabalho, pode legitimamente orgulhar-se de deixar em cada aluno um admirador e um amigo.

Estou a vê-lo – já lá vão trinta e quatro anos! – ora de / 98 / pé, ora sentado num banco (nunca subiu os estrados sobre que se erguiam então as secretárias), mas sempre junto a nós, lendo ou comentando, com ardor transparente, passos das várias obras literárias exigidas pelo programa, provocando a nossa colaboração, esforçando-se por, carinhosamente, desenvolver o nosso incipiente espírito crítico, e afervorando em nós o amor à língua materna e o culto dos grandes ideais.

Para o sr. Dr. Tavares – e «os professores mostram a sua alma para que todos a vejam bem» –, a educação é uma obra de amor, implica ternura.

Se o professor, como alguém notou, é um artista que não chega a ver completamente a sua obra – quantas sugestões terão os Mestres fornecido, sem o pressentir, sem o saber! –, pode afirmar-se, sem hipérbole, que a bondade do sr. Dr. Tavares, modelo de paciência, deu a todos o permanente exemplo da afabilidade no trato, de modo a ser – reconhecido pelos pais que o sabem reconhecer – o interesse, o cuidado e o carinho com que, ali, lhes educam os filhos.

Ei-los aqui, ao lado dos Antigos Alunos, a assistir a este eloquente testemunho de amor à Casa onde primeiro se formou o nosso espírito, a receber esta indelével e admirável lição.

A vós, jovens – elos de uma cadeia que nunca deverá ser interrompida –, entregamos o facho ardente do nosso entusiasmo, deste fogo sagrado, que, de lança em riste, com fé e com orgulho, devereis segurar bem, através da vossa vida, vós, a quem damos os louros, as palmas e as flores, vós, jovens, a quem, sentidamente, estendemos as mãos (2).

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(1) Imediatamente, a assistência, palmeou, de pé, o eminente Sábio, que da frisa onde estava agradeceu ao Dr. Assis a referência à sua pessoa.

(2) E apertou a mão aos alunos que se encontravam no palco, a seu lado. – Em seguida, leu os nomes dos antigos alunos, que aderiram às festas enviando importantes donativos em dinheiro.
 

 

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