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Livro do 1.º Centenário do Liceu de Aveiro (1851-1951)


i) – Poesia composta para o Sarau pelo Dr. Eduardo

Vaz Craveiro e por ele recitada:

 

Senhoras e Senhores!

Vou comunicar a minha mensagem.

Meditei-a evocando aqueles mais velhos e mais novos da minha e outras gerações, quantos rumámos os primeiros passos escolares no Panorama Geo-humano do Liceu desta Cidade de Aveiro. E, do coração, a oferto aos presentes e aos ausentes; / 99 / a todos quantos – Professores e Alunos, vivos e mortos, – na Paz ou na Guerra lutaram em prol do amor da Pátria, do Povo e da Cultura.

Vou comunicar: interpretarei, no princípio, à laia de legenda evocativa, estes dois tercetos de Antero:

 

«Escutai ! é a voz das multidões!

São teus irmãos que seguem! São canções

Mas de Guerra... e são Vozes de combate!

 

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,

E dos raios de luz do sonho puro,

Sonhador, faze espada de combate! –»

Antero do Quental

 

 

De quando eu era pequenino

(Como tantos pequeninos)

Ficaram na memória

Lembranças que não se esquecem.

E, uma delas,

É aquela maravilhosa história

Da candeia de Aladino...

 

A sua lâmpada maravilhosa e mágica

– Que resolvia tudo o que se queria,

Atormentou-me a ideia largo tempo.

 

Depois... (– no Tempo é mesmo assim!...)

– Dela me esqueci...

 

E aconteceu,

Mais tarde,

– Já era um homenzinho,

Por motivo d'amor lembrar-me dela!...

 

Tenho viva na lembrança

Desejar o milagre de obtê-la!...

 

– Mas, o tal amor passou,

Morreu, (morreu o pobre amor!...)

E a lembrança da lâmpada esqueceu.                                 / 100 /

 

 E o homenzinho foi crescendo; – já maior

Sofreu por novo amor,

E viu, cheio de mágoa,

Que a alma lhe ficava a soluçar com dor!...

 

Também sentiu, pela primeira vez,

Seus olhos se tornarem rasos de água!

 

Então, inda maior,

Esquecida também essa amargura,

Entrou na vida.

 

Tinha a alma dolorida

E no rosto uma nénoa de tristura...

 

E começou:

 

Como tantos que começam,

Tinha de ganhar o pão de cada dia;

Mas logo do início constatou

Que, pra vencer na luta começada,

Teria ser diferente do que era:

 

– Que histórias de Aladino e outros mais,

Bem como a própria dor da alma lacerada

E tudo quanto a infância lhe dissera,

Era preciso esquecer...

 

Era preciso, era!...

 

E, assim, saudades e lembranças enfiou

No bornal da memória

Que fechou!...

 

– E partiu a combater!...

Batalhou, feriu, espezinhou, (tinha que ser,

Para ganhar o seu comer!... )

E sofreu e chorou calado e revoltado,

Umas vezes vencendo, outras perdendo,

Que eu nem sei

Como escapou desses combates.                                  / 101 /

 

Começava a fazer a sua história

Rude e verdadeira.

 

Quantas vezes tombara e se ferira

Na luta traiçoeira?

 

Quanta verdade disse por mentira,

– Quanta mentira impôs por verdadeira?

 

Agora (agora

Toda a gente tem um agora!...),

Afeito ao batalhar que o encaneceu,

O tal menino, às vezes, rememora:

 

– Como foi tudo isto aconteceu?

 

E fica longas horas pensativo

Numa grande tortura que o invade,

Sentindo martelar-lhe, no ouvido,

A voz da Mocidade!...

 

– E assim, qual outra dobadoira nova

Que no Tempo e no Espaço vai dobando

Novelos de sentir;

E as horas do passado desfiando

Em fusos de saudades – faz surgir;

 

Essa voz fia e novela!...

 

Que montão de novelos vai surgindo?!!!...

 

Por milagre da voz, – a minha Vida

Com eles embrulhei… Com eles fui vestindo

A alma desta voz viva e sentida!...

 

– Constantemente a dobadoira corre!...

Horas boas e más vai novelando;

No bornal da memória – o que nos morre,

Deixa ficar, em nós, algo falando...

 

– Somatório de instintos, de lembranças,

Estrutura verbal, querer de vontade,

E linguagem que nos fala esperanças

Num misto de futuro e de saudade!...                           / 102 /

 

E a minha dobadoira eterna e rude,

Desfia a teia em sonhos que lá vão!...

Quanta vez suas vozes de alaúde

Me fazem 'stremecer o coração?

 

Quem aja, ouvindo-a, que se não comova?!!!

 

– Fala dos mortos (entes mais amigos);

Fala das filhos, – jovens que serão

Esperança ou desconsolo pelos perigos

Da luta, que na vida encontrarão...

 

E não se cala nunca!... Ora baixinho

Em giro compassado; outros momentos

Rodopia veloz, em torvelinho,

A desfiar-me atrozes pensamentos...

 

Que montão de novelos! Neste cesto

Tenho a Vida presente e a que passei;

Tenha tudo o que amo e o que detesto,

O que fui, o que sou e... o que serei.

 

Novelo estranho fiava: e foi há pouco

Num estertor, profundo, de batalha

Que ela me gritava

Que a Vida dum Poeta não é dele!...

 

E porque assim é

– Mandava olhar-me para a Mundo, louco,

E em frente da fornalha e da voragem

Sem arredar um pé,

 

– Gritar a esse Mundo esta Mensagem!...

 

Lembrava a voz das multidões, em vaga

Insubmissa, ululante, a praguejar!...

E acusava que o Mundo ardia, ardia

Num enorme clarão vermelho!...

 

– Que era tão grande e violento o Fogo

Que até parecia

(Em seu deslumbramento) a noite ser o dia!...                / 103 /

Que no céu a labareda vai subindo sempre;

Ela é tão alta, volumosa e rubra,

Que não permite, já que o Sol descubra

E vaze aquele toam de cinza e sangue

Que a encobre!...

 

– Tristíssimo momento

Que ficará na História e na memória

Da humanidade,

Que nunca como hoje se tornou tão pobre

Em sua Fé no Amor, na Crença e na Verdade!...

 

E a mesma voz alastra acusatória

Dizendo-me que alguns dos homens bons

Andavam a apagá-lo – (ao grande fogo,

Sofrendo e até morrendo no combate)

Enquanto às escondidas e seguros

Por detrás dos muros,

Das grandes multidões,

Outros mais se esforçavam a ateá-lo

(Num desumano e calculista jogo,)

Soprando a toda a força dos pulmões!...

 

Por esta causa e modo o lume ardia

De noite e de dia

Feito Guerra.

No campo e na cidade,

A chama se alastrava e corria

Como fatal calamidade a incinerar a Terra!...

 

– Que monstruosa e sanguinária guerra?!...

 

Até o céu ardia, às vezes de tal modo,

Que a terra, o ar e o céu eram tudo um fogo!...

 

No meio deste horror que não se esconde,

(E dentro ainda maior em perspectiva

Que será uma hecatombe...)

– O mal não foi dos que morreram na fogueira

Lutando pra apagá-lo.

 

Não! O pior não foi daquelas, não!...                               / 104 /

 

Eles tombaram resignados

E convencidos

Que não seria em vão que foram metralhados,

Fuzilados e enforcados

Ou vencidos, em combate leal ou à traição!...

 

Porque assim fora

E se tem uma certeza,

(Quando se não sabe a hora da partida,)

– É sempre boa qualquer hora!...

 

Para estes,

Seus trabalhos da carne miseranda

Já findaram...

 

Seus pobres esqueletos mal lembrados,

(De tantos, empilhados e envalados

Como sucata inútil e perigosa!...)

Nada são e tão pouco representam

No lume que os queimou!

 

Fecharam-se-lhe com a morte as bocas

Que poderiam vir falar seu nojo...

Eles, decerto, nem sequer sonharam

Que seriam iludidos,

Ou que o poderiam ser!...

Se tivessem pressentido

Que o dito lume continuaria a arder

Na actual fogueira.

E, todo o seu martírio e esforço parecer

Que resultasse inutilmente vão,

– Ah!... talvez, talvez

Que as suas mãos se recusassem

A segurar as armas que empunharam!...

 

Talvez que nem lutassem;

E, se o tivessem feito,

Seria que fosse outro o campo onde ofertassem

A ara do seu peito!...

 

Se eles pudessem ver e ouvir, de onde estão,

O clamor que se escuta a toda a hora

Por esse mundo fora!...                                                 / 105 /

A mentira que reina e o mar de ficções

No desumano cada vez maior!...

A fome e a miséria a roer os corações

Cheios de luto, de ódio e dor!...

 

Se pudessem ouvir

A legião das viúvas e seus filhos magros,

Rotos, descalços, esfaimados,

À neve, ao frio e às chuvas,

Sabendo esperar a hora de resgate e de vingança

De tal modo,

– Que até parecem indiferentes ao crepitar do fogo!!!

 

O que vai ser de tantos órfãos de olhos tristes

Secos e espantados,

Crescendo ao Deus dará, desamparados,

Deslocados ou concentrados,

Sem um afago ou um carinho que os embrulhe na alma?

 

Quem não sente o marulhar da vaga

Impiedosa, materializante e bruta,

Da revolta infantil que os alaga,

Calada e à perscruta?

 

Quando a hora soar

De quebrar-lhe as algemas e mordaças,

Como serão seus instintos nessa luta?

 

… Se os mortos escutassem (pois os vivos

Parece que perderam os sentidos...)

A grande e dolorosa litania

Dos encarcerados!...

 

Se eles ouvissem e presenciassem

A lenta agonia

Daqueles que sabiam vão morrer

A prazo mais ou menos certo!...

 

O praguejar dos doentes e esfaimados,

Roídos nas entranhas, por saberem

Que muitos são fartuns... deles tão perto!...               / 106 /

 

 Se eles vissem

Os que morrem abandonados, com dores,

E pudessem escutar os seus dizeres!...

 

Se pudessem olhar

Os cegados p’la metralha

A gritar e clamarem,

Contra a noite dos seus olhos sempre escura!...

 

Os estropiados, vagabundeando

Ao acaso

– Como espectros pelo meio das ruínas

E como estas acusando!

 

Se viessem ver

Os muitos doidos que ficaram soltos e armados

E vão, durante a noite, assassinando

Os que inda têm de ser pobres soldados!...

 

Ah! – creio bem

Que o mal maior não foi dos que morreram

A apagar aquele lume.

Bem pior é o que nos diz esse queixume

De quem ficou pra o rescaldo da fogueira!...

 

Aqueles tombaram

Iludidos

Que, pio sangue derramado, de algum modo

Se iniciava o Mundo desejado,

Livre e purificado pelo fogo!...

 

– Não mais seria o Homem, – para o Homem, lobo!!!...

 

Por isto eles lutaram a cantar,

E a praguejar,

Uns na terra, outros no mar, muitos no ar,

A morrer e a matar,

Convencidos

Que não seriam enganados ou traídos!...

 

E porque assim fora

– Quando se tem um ideal, uma certeza,

A hora em que se tomba é sempre boa hora!...            / 107 /

 

Quem sopra ao lume

E ateia consciente esta fogueira?

 

Que grande legião feita de escravos

É mandada como lenha a incinerar?

 

Para, quando virá a hora verdadeira

Do resgate,

E a traição feita aos mortos se vingar?

 

E a dobadoira corre, nunca pára;

Novelos de sentir vai novelando;

 

Aquela sua voz me soluçava

A desfiar-me anseios de justiça;

Nua e crua

A teia vai tornar-se quebradiça,

Enquanto o mundo arde e o fumo evola

Do brasido aceso, cada vez mais rubro!...

 

Mortos! – Donde estais não escutais?

 

Que lume é este, meu Senhor, meu Deus?

 

Que horror, que horror!...

 

Quando é que surge a esmola

De a vossa piedade

Mandar os homens bons ir apagar

A chama àlacre que se alteia aos céus?

 

E neste implorar

Ouvi dizer à mesma voz, com ira:

– É este o Mundo Novo?

         – E isto é que é a Paz?

Que negra e vil mentira!!...

Natal de 1946

Outubro de 1951.

 

 

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