i) – Poesia composta para o
Sarau pelo Dr. Eduardo
Vaz Craveiro e por ele recitada:
Senhoras e Senhores!
Vou comunicar a minha
mensagem.
Meditei-a evocando aqueles
mais velhos e mais novos da minha e outras gerações, quantos rumámos os
primeiros passos escolares no Panorama Geo-humano do Liceu desta Cidade
de Aveiro. E, do coração, a oferto aos presentes e aos ausentes;
/
99 / a todos quantos –
Professores e Alunos, vivos e mortos, – na Paz ou na Guerra lutaram em
prol do amor da Pátria, do Povo e da Cultura.
Vou comunicar:
interpretarei, no princípio, à laia de legenda evocativa, estes dois
tercetos de Antero:
«Escutai ! é a voz das
multidões!
São teus irmãos que seguem!
São canções
Mas de Guerra... e são Vozes
de combate!
Ergue-te, pois, soldado do
Futuro,
E dos raios de luz do sonho
puro,
Sonhador, faze espada de
combate! –»
Antero do
Quental
De quando eu era pequenino
(Como tantos pequeninos)
Ficaram na memória
Lembranças que não se
esquecem.
E, uma delas,
É aquela maravilhosa
história
Da candeia de Aladino...
A sua lâmpada maravilhosa e
mágica
– Que resolvia tudo o que se
queria,
Atormentou-me a ideia largo
tempo.
Depois... (– no Tempo é
mesmo assim!...)
– Dela me esqueci...
E aconteceu,
Mais tarde,
– Já era um homenzinho,
Por motivo d'amor lembrar-me
dela!...
Tenho viva na lembrança
Desejar o milagre de
obtê-la!...
– Mas, o tal amor passou,
Morreu, (morreu o pobre
amor!...)
E a lembrança da lâmpada esqueceu.
/ 100 /
E o homenzinho foi
crescendo; – já maior
Sofreu por novo amor,
E viu, cheio de mágoa,
Que a alma lhe ficava a
soluçar com dor!...
Também sentiu, pela primeira
vez,
Seus olhos se tornarem rasos
de água!
Então, inda maior,
Esquecida também essa
amargura,
Entrou na vida.
Tinha a alma dolorida
E no rosto uma nénoa de
tristura...
E começou:
Como tantos que começam,
Tinha de ganhar o pão de
cada dia;
Mas logo do início constatou
Que, pra vencer na luta
começada,
Teria ser diferente do que
era:
– Que histórias de Aladino e
outros mais,
Bem como a própria dor da
alma lacerada
E tudo quanto a infância lhe
dissera,
Era preciso esquecer...
Era preciso, era!...
E, assim, saudades e
lembranças enfiou
No bornal da memória
Que fechou!...
– E partiu a combater!...
Batalhou, feriu, espezinhou,
(tinha que ser,
Para ganhar o seu comer!...
)
E sofreu e chorou calado e
revoltado,
Umas vezes vencendo, outras
perdendo,
Que eu nem sei
Como escapou desses combates.
/ 101 /
Começava a fazer a sua
história
Rude e verdadeira.
Quantas vezes tombara e se
ferira
Na luta traiçoeira?
Quanta verdade disse por
mentira,
– Quanta mentira impôs por
verdadeira?
Agora (agora
Toda a gente tem um
agora!...),
Afeito ao batalhar que o
encaneceu,
O tal menino, às vezes,
rememora:
– Como foi tudo isto
aconteceu?
E fica longas horas
pensativo
Numa grande tortura que o
invade,
Sentindo martelar-lhe, no
ouvido,
A voz da Mocidade!...
– E assim, qual outra
dobadoira nova
Que no Tempo e no Espaço vai
dobando
Novelos de sentir;
E as horas do passado
desfiando
Em fusos de saudades – faz
surgir;
Essa voz fia e novela!...
Que montão de novelos vai
surgindo?!!!...
Por milagre da voz, – a
minha Vida
Com eles embrulhei… Com eles
fui vestindo
A alma desta voz viva e
sentida!...
– Constantemente a dobadoira
corre!...
Horas boas e más vai
novelando;
No bornal da memória – o que
nos morre,
Deixa ficar, em nós, algo
falando...
– Somatório de instintos, de
lembranças,
Estrutura verbal, querer de
vontade,
E linguagem que nos fala
esperanças
Num misto de futuro e de saudade!...
/ 102 /
E a minha dobadoira eterna e
rude,
Desfia a teia em sonhos que
lá vão!...
Quanta vez suas vozes de
alaúde
Me fazem 'stremecer o
coração?
Quem aja, ouvindo-a, que se
não comova?!!!
– Fala dos mortos (entes
mais amigos);
Fala das filhos, – jovens
que serão
Esperança ou desconsolo
pelos perigos
Da luta, que na vida
encontrarão...
E não se cala nunca!... Ora
baixinho
Em giro compassado; outros
momentos
Rodopia veloz, em
torvelinho,
A desfiar-me atrozes
pensamentos...
Que montão de novelos! Neste
cesto
Tenho a Vida presente e a
que passei;
Tenha tudo o que amo e o que
detesto,
O que fui, o que sou e... o
que serei.
Novelo estranho fiava: e foi
há pouco
Num estertor, profundo, de
batalha
Que ela me gritava
Que a Vida dum Poeta não é
dele!...
E porque assim é
– Mandava olhar-me para a
Mundo, louco,
E em frente da fornalha e da
voragem
Sem arredar um pé,
– Gritar a esse Mundo esta
Mensagem!...
Lembrava a voz das
multidões, em vaga
Insubmissa, ululante, a
praguejar!...
E acusava que o Mundo ardia,
ardia
Num enorme clarão
vermelho!...
– Que era tão grande e
violento o Fogo
Que até parecia
(Em seu deslumbramento) a noite ser o
dia!...
/ 103 /
Que no céu a labareda vai
subindo sempre;
Ela é tão alta, volumosa e
rubra,
Que não permite, já que o
Sol descubra
E vaze aquele toam de cinza
e sangue
Que a encobre!...
– Tristíssimo momento
Que ficará na História e na
memória
Da humanidade,
Que nunca como hoje se
tornou tão pobre
Em sua Fé no Amor, na Crença
e na Verdade!...
E a mesma voz alastra
acusatória
Dizendo-me que alguns dos
homens bons
Andavam a apagá-lo – (ao
grande fogo,
Sofrendo e até morrendo no
combate)
Enquanto às escondidas e
seguros
Por detrás dos muros,
Das grandes multidões,
Outros mais se esforçavam a
ateá-lo
(Num desumano e calculista
jogo,)
Soprando a toda a força dos
pulmões!...
Por esta causa e modo o lume
ardia
De noite e de dia
Feito Guerra.
No campo e na cidade,
A chama se alastrava e
corria
Como fatal calamidade a
incinerar a Terra!...
– Que monstruosa e
sanguinária guerra?!...
Até o céu ardia, às vezes de
tal modo,
Que a terra, o ar e o céu
eram tudo um fogo!...
No meio deste horror que não
se esconde,
(E dentro ainda maior em
perspectiva
Que será uma hecatombe...)
– O mal não foi dos que
morreram na fogueira
Lutando pra apagá-lo.
Não! O pior não foi daquelas, não!...
/ 104 /
Eles tombaram resignados
E convencidos
Que não seria em vão que
foram metralhados,
Fuzilados e enforcados
Ou vencidos, em combate leal
ou à traição!...
Porque assim fora
E se tem uma certeza,
(Quando se não sabe a hora
da partida,)
– É sempre boa qualquer
hora!...
Para estes,
Seus trabalhos da carne
miseranda
Já findaram...
Seus pobres esqueletos mal
lembrados,
(De tantos, empilhados e
envalados
Como sucata inútil e
perigosa!...)
Nada são e tão pouco
representam
No lume que os queimou!
Fecharam-se-lhe com a morte
as bocas
Que poderiam vir falar seu
nojo...
Eles, decerto, nem sequer
sonharam
Que seriam iludidos,
Ou que o poderiam ser!...
Se tivessem pressentido
Que o dito lume continuaria
a arder
Na actual fogueira.
E, todo o seu martírio e
esforço parecer
Que resultasse inutilmente
vão,
– Ah!... talvez, talvez
Que as suas mãos se
recusassem
A segurar as armas que
empunharam!...
Talvez que nem lutassem;
E, se o tivessem feito,
Seria que fosse outro o
campo onde ofertassem
A ara do seu peito!...
Se eles pudessem ver e
ouvir, de onde estão,
O clamor que se escuta a
toda a hora
Por esse mundo fora!...
/ 105 /
A mentira que reina e o mar
de ficções
No desumano cada vez
maior!...
A fome e a miséria a roer os
corações
Cheios de luto, de ódio e
dor!...
Se pudessem ouvir
A legião das viúvas e seus
filhos magros,
Rotos, descalços,
esfaimados,
À neve, ao frio e às chuvas,
Sabendo esperar a hora de
resgate e de vingança
De tal modo,
– Que até parecem
indiferentes ao crepitar do fogo!!!
O que vai ser de tantos
órfãos de olhos tristes
Secos e espantados,
Crescendo ao Deus dará,
desamparados,
Deslocados ou concentrados,
Sem um afago ou um carinho
que os embrulhe na alma?
Quem não sente o marulhar da
vaga
Impiedosa, materializante e
bruta,
Da revolta infantil que os
alaga,
Calada e à perscruta?
Quando a hora soar
De quebrar-lhe as algemas e
mordaças,
Como serão seus instintos
nessa luta?
… Se os mortos escutassem
(pois os vivos
Parece que perderam os
sentidos...)
A grande e dolorosa litania
Dos encarcerados!...
Se eles ouvissem e
presenciassem
A lenta agonia
Daqueles que sabiam vão
morrer
A prazo mais ou menos
certo!...
O praguejar dos doentes e
esfaimados,
Roídos nas entranhas, por
saberem
Que muitos são fartuns... deles tão
perto!...
/ 106 /
Se eles vissem
Os que morrem abandonados,
com dores,
E pudessem escutar os seus
dizeres!...
Se pudessem olhar
Os cegados p’la metralha
A gritar e clamarem,
Contra a noite dos seus
olhos sempre escura!...
Os estropiados,
vagabundeando
Ao acaso
– Como espectros pelo meio
das ruínas
E como estas acusando!
Se viessem ver
Os muitos doidos que ficaram
soltos e armados
E vão, durante a noite,
assassinando
Os que inda têm de ser
pobres soldados!...
Ah! – creio bem
Que o mal maior não foi dos
que morreram
A apagar aquele lume.
Bem pior é o que nos diz
esse queixume
De quem ficou pra o rescaldo
da fogueira!...
Aqueles tombaram
Iludidos
Que, pio sangue derramado,
de algum modo
Se iniciava o Mundo
desejado,
Livre e purificado pelo
fogo!...
– Não mais seria o Homem, –
para o Homem, lobo!!!...
Por isto eles lutaram a
cantar,
E a praguejar,
Uns na terra, outros no mar,
muitos no ar,
A morrer e a matar,
Convencidos
Que não seriam enganados ou
traídos!...
E porque assim fora
– Quando se tem um ideal,
uma certeza,
A hora em que se tomba é sempre boa
hora!...
/ 107 /
Quem sopra ao lume
E ateia consciente esta
fogueira?
Que grande legião feita de
escravos
É mandada como lenha a
incinerar?
Para, quando virá a hora
verdadeira
Do resgate,
E a traição feita aos mortos
se vingar?
E a dobadoira corre, nunca
pára;
Novelos de sentir vai
novelando;
Aquela sua voz me soluçava
A desfiar-me anseios de
justiça;
Nua e crua
A teia vai tornar-se
quebradiça,
Enquanto o mundo arde e o
fumo evola
Do brasido aceso, cada vez
mais rubro!...
Mortos! – Donde estais não
escutais?
Que lume é este, meu Senhor,
meu Deus?
Que horror, que horror!...
Quando é que surge a esmola
De a vossa piedade
Mandar os homens bons ir
apagar
A chama àlacre que se alteia
aos céus?
E neste implorar
Ouvi dizer à mesma voz, com
ira:
– É este o Mundo Novo?
– E isto é que é a
Paz?
Que negra e vil mentira!!...
Natal de
1946
Outubro de
1951.
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