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Livro do 1.º Centenário do Liceu de Aveiro (1851-1951)

g) – Oração de D. Maria Filomena Marques da Cruz:

Minhas Senhoras e Meus Senhores

Esta hora veio até mim difundida em silêncio – de repente tudo parou, a cidade parecia distante tornada paisagem, e o silêncio entrou, tomou todos os planos, dentro e fora de mim. Era um silêncio doce de tardinha, daqueles em que a gente gosta de se envolver, como num abafo quente em noite de Inverno. Era um silêncio feito de ecos que se calaram, de / 88 / perdidas cores de horizontes perdidos, de contornos que se diluíram na penumbra. Era, enfim, o silêncio suave das recordações que, irrealmente, como véus de névoa, se acercam, num desfile lento de ambientes e de perfumes.

Esta hora veio até mim difundida em silêncio... – e é a sua presença total e indefinida que agora toma conta de todo o meu ser e me comunica uma tremenda acuidade do tempo que foi e me fornece uma tela fácil para este perpassar antes de impressões que de imagens, antes de cores que de formas, de horizontes mais que de paisagens, de saudades mais que de lembranças.

É que há um maravilhoso equilíbrio entre a existência externa e o mundo dentro de nós – a extraordinária intensidade interior desta hora não podia deixar de situar-se na calmaria expressiva e cheia de possibilidades de todo um quadro de silêncio. Era necessário o fundo de contraste, para que a potencialidade humana do momento ressaltasse, em plena força e em plena frescura. E assim, de repente, tudo parou, a cidade parecia distante tornada paisagem e dentro de mim, em letras densas de saudade, só uma legenda simples – 1.º Centenário do Liceu de Aveiro – e uma chamada grata à evocação.

É isto que me faz estar agora aqui, diante de vós, numa encruzilhada de sensações vivas, que a minha palavra inexpressiva nem de longe consegue traduzir; e é isto, também, que me faz pensar se não será cometer um sacrilégio atirar a pedra da minha voz contra a vidraça do silêncio, desse silêncio augusto que, em cada um de nós, pobres peregrinos da recordação, é neste momento a mais digna homenagem à nossa antiga Casa!...

Que ela me perdoe, que todos vós me perdoeis – faço-o com a unção de quem passa lentamente as contas de um rosário na penumbra de uma nave gótica – que o meu querer transforme estas humildes notas numa verdadeira prece à Nossa Senhora da Recordação na catedral dourada da Saudade!


Os antigos alunos defronte do novo Liceu (6-10-1951)

(OBS.: Alguém tem a foto original que possa emprestar para digitalizar e substituir esta imagem com má qualidade?)

Há para mim um sabor inesperado e algo paradoxal neste momento. Por um lado, o ser Aveiro o cenário destas evocações, desde logo me surge como estranho. Aveiro aparece-me sempre, na minha imaginação, como cidade onde a história quase não imprime pegadas e onde o passado se me afigura não ter culto – muito embora eu saiba que, na realidade, não é assim e me curve perante a incontestável nobreza histórica de Aveiro. Mas acho sempre esta atmosfera, incrivelmente luminosa, estes horizontes, incrivelmente abertos, esta cidade, / 90 / incrivelmente simples, jovem e fresca, como alguma coisa de pouco propício às sombras da História, ao mistério e ao pó das coisas do passado. Surge-me sempre como realidade intemporal, que se confunde com o momento que passa, que é, em qualquer tempo, um sonoro e luminoso Presente!

Daqui, uma certa sensação de estranheza – é precisamente em Aveiro, a cidade mais que luz, que todos estamos nestes dias a ressuscitar a noite dos tempos, que, embora coalhada de estrelas, não deixa de ser uma longa noite de cem anos, caindo em pregas de negro veludo dos ombros do nosso Liceu centenário. Não duvido, porém, de que, mais uma vez, o contraste produza os seus frutos...

Por outro lado, deve haver em mim uma deslocação pessoal aos olhos de toda a gente. A minha idade quase não é ainda evocadora e os curtos quatro anos que me separam do Liceu talvez não me concedam a perspectiva necessária para a recordação; talvez que eu esteja ainda demasiado integrada num Presente e num sonho de Futuro, para que o Passado desenhe os seus castelos sombreados na minha alma; talvez que o tom docemente crepuscular destas nossas horas de saudade não devesse ter lugar numa vida que não passou ainda a claridade do meio-dia… Talvez... No entanto, eu permito-me lembrar a nossa qualidade de portugueses, onde a suavidade das linhas esbatidas na sombra dum crepúsculo t: o traço dominante das almas, onde a Raça vive embalada nos ritmos eternos duma lenda que não é mais que um conjunto de linhas esfumadas num véu nevoento de horizonte. Crepúsculo de tarde de batalha, crepúsculo de manhã de nevoeiro... – mas sempre crepúsculo, não importa. Creio que assim – no meu crepúsculo matutino, mais pobre de cor – me será dado também enfileirar, já sem me intrometer, na procissão dos que, neste momento, celebram o ritual do sacrifício no altar da Saudade.

Foram sete anos que passaram numa correria, aqueles do Liceu! Relembro agora quanto há de inconsciência naqueles anos, quanto a gente os vive sem pensar, numa atitude passiva de quem recebe tudo como preito devido pela vida, como dádiva natural do destino! Sei agora, quando surge o momento do juízo crítico, quando me volto para trás num repassar sentimental, o que significaram esses sete anos, o que sempre significam aquelas coisas que a gente vive a correr e não medita.

Para mim, foi todo o substrato vital de uma existência que, inconscientemente, numa confiança de que tudo me seria dado a seu tempo, eu recebi naqueles sete anos. Sei, agora, como / 91 / um caminho consciente na vida custa a traçar e qual a dose de experiência vivida e pensada e de exemplos de perto é necessária para uma formação interior. Experiência – eu era nessa altura demasiado nova para a ter e suficientemente despreocupada para deixar perder as vivências, sem sequer pensar nelas e sem as analisar. Guardo como precioso tesouro a outra parte – os exemplos reais – guardo-os como imerecido legado da casa que hoje celebra o seu centenário. Sei, agora, quanto lhe devo, mas não sei transfundir em palavras esta gratidão. Não quero já referir-me, neste sentimento agradecido, à bagagem de conhecimentos mais ou menos técnicos que de cá levei; o agradecimento vai para o que o Liceu foi como mestre da vida, aquele que trouxe aos meus poucos anos o sentido do verdadeiro valor humano, o que, em cada hora que nele passei, me ensinou a crença indelével na pureza do homem completo, na suprema dignidade de uma vida! Seria para mim a alegria mais interior regressar, agora, com a minha gratidão consciente à vida desses anos do Liceu; nessa impossibilidade, torna-se-me dever imperioso que aqui, à distância, eu honre a sua recordação.

Há sempre uma fase na nossa vida que pesa em toda a existência como coisa que se desaproveitou ou a que não se deu, na altura, o devido valor. Penso que é quase sempre a juventude, tão rica de possibilidades e por isso também demasiado embriagadora para que a gente tome consciência dela e a viva com a intensidade pensada de quem vê os grãos de areia numa ampulheta. Há alguma coisa entontecedoramente eterna em cada passo da nossa vida de juventude que nos faz seguir sempre, numa confiança sorridente e despreocupada de quem é senhor do mundo e da vida. Daí o Sonho – que não é mais que uma tentativa de eternização de momentos de ventura, um esforço que atira, para além, no tempo, o nosso desejo de felicidade. Na juventude essa tentativa e esse esforço são naturais e instintivos – e talvez sejam, naquela alegre despreocupação, já um presságio inconsciente de que, mais tarde, a vida é mais dura. Seja como for, o certo é que aqueles sete anos são os que me pesam, são aqueles que passaram por mim como um vento benéfico, mas a que a gente não liga importância e para além do qual nos ocupamos, muito seriamente, em olhar a paisagem. Tudo passou tão rápido, tudo teve um tal aspecto de coisa demasiado boa para ser real – vejo-o agora –, que eu só depois que aquilo acabou é que me dei conta do que tinha perdido.

É sempre assim. Creio que talvez por isso, porque teve / 92 / as características dum lindo sonho fugaz, eu só conservo desse tempo aquela impressão global que nos fica dum sonho – e este, porque foi lindo, deixou-me o rasto indestrutível da beleza, em que eu confundo, numa amálgama de gratidão, pessoas, objectos, momentos e ambientes. Por isso, também, as minhas recordações do Liceu nada têm de episódico ou de anedótico.

Não recordo factos, não recordo coisas concretas – desse bom, desse grande tempo; resta-me agora, na dor de o ter perdido de uma vez, um suave fumo de melancolia, misterioso sentimento de gratidão, a desfazer-se sem forma, como distante noite de Estio. Sinto-o como um todo em que, como já disse, há impressões em vez de imagens, cores em vez de formas, horizontes em lugar de paisagens. Sinto todos aqueles anos não em si, em realidade fáctica, mas na sua projecção na minha vida, no seu significado positivo e criador; sinto-os como um inesquecível ensinamento se coração, como a primeira prova do que é, numa vida, um mestre do valor humano.

É por isso que só tenho isto para vos dizer –, isto que fica numa região demasiado subjectiva, que tem características demasiado impalpáveis para que vos agrade, como relato interessante.

É que – faço uma última confissão – eu não tenho lembranças do Liceu – tenho saudades! E que se pode fazer só com saudades, senão senti-las?
 

Esta hora veio até mim difundida em silêncio – o silêncio que anuncia sempre aquilo que é humanamente grande. Impiedosa e sacrilegamente profanei esse silêncio com a minha voz, num impulso sentimental irresistível de quem tem a alma cheia. Mas, como tudo o que é sentimental e impulsivo, fatalmente resvalei para esta série desconexa de divagações sem interesse, que tiveram o condão de quebrar o encanto desta hora. No entanto, resta-me a consolação de que o momento é demasiado denso para poder ser destruído por mim – talvez destrua o que nele há de acidental e cronológico; o eterno, porém, esse é intangível! E o eterno é, por graça de Deus, a maravilhosa essência das horas que estamos a viver. O eterno é a grandeza de uma obra que, dia a dia, cresceu, devagar e em silêncio, como tudo o que é grande; que, dia a dia, se ergueu, à margem, como tudo o que é perfeito; o eterno é a pureza dessa realidade, como unidade positiva, clara e actual; o eterno é, enfim, o tremendo testemunho da humanidade a transfundir a sua própria pequenez temporal nas colunas imortais duma obra, que nos dá o Liceu de Aveiro. / 93 /


Aspecto do banquete

/ 94 / Quero curvar-me diante dele e agradecer-lhe:

Louvor e respeito eternos ao Liceu de Aveiro, em nome do passado que acompanhou essa senda gloriosa de cem anos no caminho da perfeição!

Louvor e respeito eternos ao Liceu de Aveiro, em nome do presente a quem é dado contemplar e glorificar a sua obra!

Louvor e respeito eternos ao Liceu de Aveiro, em nome do futuro, a quem ele dá gratuitamente o testemunho maravilhoso daquilo que torna o tempo mais forte que o tempo: a Eternidade!

 

 

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