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        g) – Oração de D. Maria Filomena Marques da Cruz: 
        
        
        Minhas 
        Senhoras e Meus Senhores 
        
        
        Esta hora 
        veio até mim difundida em silêncio – de repente tudo parou, a cidade 
        parecia distante tornada paisagem, e o silêncio entrou, tomou todos os 
        planos, dentro e fora de mim. Era um silêncio doce de tardinha, daqueles 
        em que a gente gosta de se envolver, como num abafo quente em noite de 
        Inverno. Era um silêncio feito de ecos que se calaram, de 
        / 
        88 / perdidas cores de 
        horizontes perdidos, de contornos que se diluíram na penumbra. Era, 
        enfim, o silêncio suave das recordações que, irrealmente, como véus de 
        névoa, se acercam, num desfile lento de ambientes e de perfumes. 
        
        
        Esta hora 
        veio até mim difundida em silêncio... – e é a sua presença total e 
        indefinida que agora toma conta de todo o meu ser e me comunica uma 
        tremenda acuidade do tempo que foi e me fornece uma tela fácil para este 
        perpassar antes de impressões que de imagens, antes de cores que de 
        formas, de horizontes mais que de paisagens, de saudades mais que de 
        lembranças. 
        
        
        É que há 
        um maravilhoso equilíbrio entre a existência externa e o mundo dentro de 
        nós – a extraordinária intensidade interior desta hora não podia deixar 
        de situar-se na calmaria expressiva e cheia de possibilidades de todo um 
        quadro de silêncio. Era necessário o fundo de contraste, para que a 
        potencialidade humana do momento ressaltasse, em plena força e em plena 
        frescura. E assim, de repente, tudo parou, a cidade parecia distante 
        tornada paisagem e dentro de mim, em letras densas de saudade, só uma 
        legenda simples – 1.º Centenário do Liceu de Aveiro – e uma chamada 
        grata à evocação. 
        
        
        É isto 
        que me faz estar agora aqui, diante de vós, numa encruzilhada de 
        sensações vivas, que a minha palavra inexpressiva nem de longe consegue 
        traduzir; e é isto, também, que me faz pensar se não será cometer um 
        sacrilégio atirar a pedra da minha voz contra a vidraça do silêncio, 
        desse silêncio augusto que, em cada um de nós, pobres peregrinos da 
        recordação, é neste momento a mais digna homenagem à nossa antiga 
        Casa!... 
        
        
        Que ela 
        me perdoe, que todos vós me perdoeis – faço-o com a unção de quem passa 
        lentamente as contas de um rosário na penumbra de uma nave gótica – que 
        o meu querer transforme estas humildes notas numa verdadeira prece à 
        Nossa Senhora da Recordação na catedral dourada da Saudade! 
        
        
          
        Os antigos alunos defronte do novo 
        Liceu (6-10-1951) 
        
        (OBS.: Alguém tem a 
        foto original que possa emprestar para digitalizar e substituir esta 
        imagem com má qualidade?) 
        
        
        Há para 
        mim um sabor inesperado e algo paradoxal neste momento. Por um lado, o 
        ser Aveiro o cenário destas evocações, desde logo me surge como 
        estranho. Aveiro aparece-me sempre, na minha imaginação, como cidade 
        onde a história quase não imprime pegadas e onde o passado se me afigura 
        não ter culto – muito embora eu saiba que, na realidade, não é assim e 
        me curve perante a incontestável nobreza histórica de Aveiro. Mas acho 
        sempre esta atmosfera, incrivelmente luminosa, estes horizontes, 
        incrivelmente abertos, esta cidade, 
        / 
        90 / incrivelmente simples, 
        jovem e fresca, como alguma coisa de pouco propício às sombras da 
        História, ao mistério e ao pó das coisas do passado. Surge-me sempre 
        como realidade intemporal, que se confunde com o momento que passa, que 
        é, em qualquer tempo, um sonoro e luminoso Presente! 
        
        
        Daqui, 
        uma certa sensação de estranheza – é precisamente em Aveiro, a cidade 
        mais que luz, que todos estamos nestes dias a ressuscitar a noite dos 
        tempos, que, embora coalhada de estrelas, não deixa de ser uma longa 
        noite de cem anos, caindo em pregas de negro veludo dos ombros do nosso 
        Liceu centenário. Não duvido, porém, de que, mais uma vez, o contraste 
        produza os seus frutos... 
        
        
        Por outro 
        lado, deve haver em mim uma deslocação pessoal aos olhos de toda a 
        gente. A minha idade quase não é ainda evocadora e os curtos quatro anos 
        que me separam do Liceu talvez não me concedam a perspectiva necessária 
        para a recordação; talvez que eu esteja ainda demasiado integrada num 
        Presente e num sonho de Futuro, para que o Passado desenhe os seus 
        castelos sombreados na minha alma; talvez que o tom docemente 
        crepuscular destas nossas horas de saudade não devesse ter lugar numa 
        vida que não passou ainda a claridade do meio-dia… Talvez... No entanto, 
        eu permito-me lembrar a nossa qualidade de portugueses, onde a suavidade 
        das linhas esbatidas na sombra dum crepúsculo t: o traço dominante das 
        almas, onde a Raça vive embalada nos ritmos eternos duma lenda que não é 
        mais que um conjunto de linhas esfumadas num véu nevoento de horizonte. 
        Crepúsculo de tarde de batalha, crepúsculo de manhã de nevoeiro... – mas 
        sempre crepúsculo, não importa. Creio que assim – no meu crepúsculo 
        matutino, mais pobre de cor – me será dado também enfileirar, já sem me 
        intrometer, na procissão dos que, neste momento, celebram o ritual do 
        sacrifício no altar da Saudade. 
        
        
        Foram 
        sete anos que passaram numa correria, aqueles do Liceu! Relembro agora 
        quanto há de inconsciência naqueles anos, quanto a gente os vive sem 
        pensar, numa atitude passiva de quem recebe tudo como preito devido pela 
        vida, como dádiva natural do destino! Sei agora, quando surge o momento 
        do juízo crítico, quando me volto para trás num repassar sentimental, o 
        que significaram esses sete anos, o que sempre significam aquelas coisas 
        que a gente vive a correr e não medita. 
        
        
        Para mim, 
        foi todo o substrato vital de uma existência que, inconscientemente, 
        numa confiança de que tudo me seria dado a seu tempo, eu recebi naqueles 
        sete anos. Sei, agora, como 
        / 
        91 / um caminho consciente 
        na vida custa a traçar e qual a dose de experiência vivida e pensada e 
        de exemplos de perto é necessária para uma formação interior. 
        Experiência – eu era nessa altura demasiado nova para a ter e 
        suficientemente despreocupada para deixar perder as vivências, sem 
        sequer pensar nelas e sem as analisar. Guardo como precioso tesouro a 
        outra parte – os exemplos reais – guardo-os como imerecido legado da 
        casa que hoje celebra o seu centenário. Sei, agora, quanto lhe devo, mas 
        não sei transfundir em palavras esta gratidão. Não quero já referir-me, 
        neste sentimento agradecido, à bagagem de conhecimentos mais ou menos 
        técnicos que de cá levei; o agradecimento vai para o que o Liceu foi 
        como mestre da vida, aquele que trouxe aos meus poucos anos o sentido do 
        verdadeiro valor humano, o que, em cada hora que nele passei, me ensinou 
        a crença indelével na pureza do homem completo, na suprema dignidade de 
        uma vida! Seria para mim a alegria mais interior regressar, agora, com a 
        minha gratidão consciente à vida desses anos do Liceu; nessa 
        impossibilidade, torna-se-me dever imperioso que aqui, à distância, eu 
        honre a sua recordação. 
        
        
        Há sempre 
        uma fase na nossa vida que pesa em toda a existência como coisa que se 
        desaproveitou ou a que não se deu, na altura, o devido valor. Penso que 
        é quase sempre a juventude, tão rica de possibilidades e por isso também 
        demasiado embriagadora para que a gente tome consciência dela e a viva 
        com a intensidade pensada de quem vê os grãos de areia numa ampulheta. 
        Há alguma coisa entontecedoramente eterna em cada passo da nossa vida de 
        juventude que nos faz seguir sempre, numa confiança sorridente e 
        despreocupada de quem é senhor do mundo e da vida. Daí o Sonho – que não 
        é mais que uma tentativa de eternização de momentos de ventura, um 
        esforço que atira, para além, no tempo, o nosso desejo de felicidade. Na 
        juventude essa tentativa e esse esforço são naturais e instintivos – e 
        talvez sejam, naquela alegre despreocupação, já um presságio 
        inconsciente de que, mais tarde, a vida é mais dura. Seja como for, o 
        certo é que aqueles sete anos são os que me pesam, são aqueles que 
        passaram por mim como um vento benéfico, mas a que a gente não liga 
        importância e para além do qual nos ocupamos, muito seriamente, em olhar 
        a paisagem. Tudo passou tão rápido, tudo teve um tal aspecto de coisa 
        demasiado boa para ser real – vejo-o agora –, que eu só depois que 
        aquilo acabou é que me dei conta do que tinha perdido. 
        
        
        É sempre 
        assim. Creio que talvez por isso, porque teve 
        / 
        92 / as características dum 
        lindo sonho fugaz, eu só conservo desse tempo aquela impressão global 
        que nos fica dum sonho – e este, porque foi lindo, deixou-me o rasto 
        indestrutível da beleza, em que eu confundo, numa amálgama de gratidão, 
        pessoas, objectos, momentos e ambientes. Por isso, também, as minhas 
        recordações do Liceu nada têm de episódico ou de anedótico. 
        
        
        Não 
        recordo factos, não recordo coisas concretas – desse bom, desse grande 
        tempo; resta-me agora, na dor de o ter perdido de uma vez, um suave fumo 
        de melancolia, misterioso sentimento de gratidão, a desfazer-se sem 
        forma, como distante noite de Estio. Sinto-o como um todo em que, como 
        já disse, há impressões em vez de imagens, cores em vez de formas, 
        horizontes em lugar de paisagens. Sinto todos aqueles anos não em si, em 
        realidade fáctica, mas na sua projecção na minha vida, no seu 
        significado positivo e criador; sinto-os como um inesquecível 
        ensinamento se coração, como a primeira prova do que é, numa vida, um 
        mestre do valor humano. 
        
        
        É por 
        isso que só tenho isto para vos dizer –, isto que fica numa região 
        demasiado subjectiva, que tem características demasiado impalpáveis para 
        que vos agrade, como relato interessante. 
        
        
        É que – 
        faço uma última confissão – eu não tenho lembranças do Liceu – tenho 
        saudades! E que se pode fazer só com saudades, senão senti-las? 
  
        
        
        Esta hora veio até mim difundida em 
        silêncio – o silêncio que anuncia sempre aquilo que é humanamente 
        grande. Impiedosa e sacrilegamente profanei esse silêncio com a minha 
        voz, num impulso sentimental irresistível de quem tem a alma cheia. Mas, 
        como tudo o que é sentimental e impulsivo, fatalmente resvalei para esta 
        série desconexa de divagações sem interesse, que tiveram o condão de 
        quebrar o encanto desta hora. No entanto, resta-me a consolação de que o 
        momento é demasiado denso para poder ser destruído por mim – talvez 
        destrua o que nele há de acidental e cronológico; o eterno, porém, esse 
        é intangível! E o eterno é, por graça de Deus, a maravilhosa essência 
        das horas que estamos a viver. O eterno é a grandeza de uma obra que, 
        dia a dia, cresceu, devagar e em silêncio, como tudo o que é grande; 
        que, dia a dia, se ergueu, à margem, como tudo o que é perfeito; o 
        eterno é a pureza dessa realidade, como unidade positiva, clara e 
        actual; o eterno é, enfim, o tremendo testemunho da humanidade a 
        transfundir a sua própria pequenez temporal nas colunas imortais duma 
        obra, que nos dá o Liceu de Aveiro. 
        / 
        93 / 
        
        
        
        
          
        Aspecto do banquete 
        
        
        
        / 94 /
        Quero curvar-me diante dele e agradecer-lhe: 
        
        
        Louvor e 
        respeito eternos ao Liceu de Aveiro, em nome do passado que acompanhou 
        essa senda gloriosa de cem anos no caminho da perfeição! 
        
        
        Louvor e 
        respeito eternos ao Liceu de Aveiro, em nome do presente a quem é dado 
        contemplar e glorificar a sua obra! 
        
        
        Louvor e 
        respeito eternos ao Liceu de Aveiro, em nome do futuro, a quem ele dá 
        gratuitamente o testemunho maravilhoso daquilo que torna o tempo mais 
        forte que o tempo: a Eternidade! 
        
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