Orações
proferidas no Sarau
f)
–
Oração de Dinis Gomes:
HORAS DE
EMOÇÃO
Num
encontro, meramente casual, havido, há tempo, entre mim e o senhor
Reitor dr. José Tavares, tive, por este, conhecimento do propósito em
que estava de comemorar festivamente o primeiro centenário do nosso
Liceu.
Expôs-me,
por então, cheio de entusiasmo, o programa que delineara para ser
executado, rematando assim:
– E você,
Dinis Gomes, que é um dos velhos alunos existentes que frequentaram o
Liceu tem que falar em nome deles no sarau que deve realizar-se.
Fiquei
aterrado com o convite, confesso-o, embora reconhecesse que ele
representava para mim uma grande, mas não merecida, honra. Arrisquei,
como era natural, uma delicada recusa, procurando eximir-me a tarefa de
tanta responsabilidade.
– Tenha
paciência, meu amigo, ripostou-me insinuantemente o dr. José Tavares.
Tem que falar, dizer algumas palavras.
E
afastou-se de mim com um gesto amigo, deixando-me, ali, colado ao chão,
sem coragem para reagir.
Eis, meus
senhores, o motivo por que me encontro hoje neste lugar. Estou... de
castigo, no desempenho dum mandato a que não podia faltar.
Mas; se o
nosso querido Reitor, me rogou, pelo menos, algumas palavras para
marcarem a presença dos veteranos
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escolares, eu creio que,
até aí, talvez me seja possível chegar, embora com todas as reservas
indispensáveis. E, se isso, só, é o bastante para me desobrigar do
encargo, então... Vamos lá com Deus, como escrevem os marinhões
da nossa ria nas bizarras legendas com que ilustram as proas dos seus
característicos e tão lindos barcos.
Todos
sabem, tão bem como eu, que isto de falar em público não é coisa fácil
como parece. E, no caso presente, em que o auditório é selecto, a
situação agrava-se bastante, intimidando por demais o orador, se tal
nome merece, que, no caso presente, é um homem gasto de todas as
energias físicas e intelectuais, cujo espírito perdeu já o milagre
divino da criação, e a voz, agora pobre em sua gama de tons, não tem o
brilho e o timbre que possam produzir eco no coração de quem o ouve.
Embora assim seja, temos que começar.
Num dos
seus consagrados livros, cuja leitura se deve cultivar, Alexandre
Herculano, escreveu:
«O mester
de relembrar o passado é uma espécie de magistratura moral, uma espécie
de sacerdócio».
Assim o
julgo, e essa é a principal razão por que eu tive sempre um apaixonado
culto pelas coisas do passado, rememorando-as a cada passo,
especialmente aquelas que mais vivamente impressionaram o meu espírito e
comoveram o meu coração. E assim é que, nos meus trabalhos literários,
me socorro muitas vezes deles, para os colorir e enriquecer tanto quanto
possível. Com isso me sinto feliz.
Ocorrem-me, neste momento, as seguintes palavras do ilustre escritor
Aquilino Ribeiro, ao referir-se, há tempos, à decadência mental do
homem, quando atinge idade avançada:
«Que
hão-de fazer os velhos senão rememorar o caminho percorrido?»
Temos que
confirmar hoje aqui o judicioso conceito do Mestre. Vejamos se
conseguimos fazê-lo o melhor possível.
Há passos
da nossa vida, coisas, muitas vezes, de somenos importância, que todos
nós conservamos imperecivelmente gravados na memória, de preferência a
outros de data muito mais recente. Se me dão licença, cito, agora, um de
que fui protagonista e... vítima, e que julgo com certa oportunidade e
pronunciado sabor académico.
Quero
referir-me à primeira prova escolar dada por mim no nosso Liceu. Onde
isso já vai, Santo Deus!...
O júri
que devia interrogar-me era formado pelos professores Elias Pereira,
Figueiredo e Álvaro de Almeida de Eça. Ora, a certa altura do meu exame,
o dr. Álvaro, que era, por
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demais, ironista e brincalhão, desfechou-me esta inocente pergunta:
– O
menino conhece na nossa História alguma figura notável, que tenha
semelhança consigo?
–
Conheço, sim senhor, respondi lépido e confiante. Foi D. Dinis, o
Lavrador.
–
Exactamente, confirmou o mestre. – E sabe dizer-me com quem era ele
casado?
– Com a
Rainha Santa Isabel, respondi prontamente.
Mas...
boca que foste dizer!
– Quem é
que disse ao menino que a Rainha Isabel era Santa? Santa de barro, ou de
roca?
E neste
tom galhofeiro, um pouco irreverente, talvez, o dr. Álvaro disse coisas
que provocaram risos trocistas na assistência e, em mim, fizeram vir
algumas lágrimas aos olhos. Um autêntico fracasso!...
Acudiu-me, felizmente, a tempo, o dr. Figueiredo, que era um homem bom,
prestando-me valiosa assistência em lance tão difícil e ridículo.
Com este
simples, mas curioso, relato, ficam Vossas excelências sabendo que eu
entrei no Liceu de Aveiro a chorar como uma criança mimada. Mas podem
acreditar que foi só essa vez, porque, se tivesse novamente que o fazer,
seria tão-somente, para chorar de saudade ao terminar os meus estudos em
Aveiro.
Chorar,
sim, com saudade – muita saudade! – pela perda do amoroso ambiente
académico aqui gozado; saudade pelos meus bons e carinhosos professores,
incluindo, mesmo, nesse número, o galhofeiro dr. Álvaro, de quem, mais
tarde, fui amigo; saudade enternecida pelos meus condiscípulos e
contemporâneos que tanto me estimavam, e ainda muita saudade por esta
linda e acolhedora cidade de Aveiro.
Um quadro da «Romagem ao Passado».
É que,
meus senhores, quem viveu e estudou aqui, não esquece com facilidade,
ainda mesmo que tenha comido poucos ovos moles, que fazem a boca doce…
Por mim, e já bastantes anos são decorridos, depois que abandonei
Aveiro, não passo ali fora na Costeira (chamava-se assim, no meu tempo,
essa rua) que não olhe com embevecimento para a fachada, sóbria, mas
elegante, do nosso Liceu, de linhas bem traçadas, as suas amplas portas
e janelas em ogivas, duma grande simplicidade no labor das cantarias das
suas paredes lisas, sem enfeites caprichosos, mas sempre
escrupulosamente caiadinhas de branco, espelhentas e luzidias, para que
o Sol, madrugador, ao aparecer, curioso, por detrás dos telhados
cimeiros da
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Misericórdia, nelas possa reverberar em saudação gloriosa ao vulto
estático que, em seu sopé, ergue, altivo, o braço indomável, apontando,
no espaço indefinido, um Destino heróico, e abre, num grito, simbólico,
ansioso e apaixonado, a sua boca imaculada, proclamando, bem alto, a
alforria santa da Pátria, a Liberdade, a Justiça, e os sagrados Direitos
do Homem!...
.
. . . . . . . .
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Tenho, e
sempre tive, uma particular afeição por esta boa terra de Aveiro, onde
iniciei a minha formação moral, desenvolvi a inteligência e criei o amor
pelas letras, recolhendo no escrínio sagrado do meu coração os recursos
e exemplos que haviam de servir-me de couraça invulnerável para
enfrentar com brio e galhardia os perigos, as dificuldades, os desgostos
e as ingratidões da minha vida. Aqui tive, e tenho ainda, felizmente,
alguns dos meus melhores amigos.
Entre os
primeiros, recordo com enternecida saudade os nomes dos doutores Jaime e
António Duarte Silva, Joaquim e Lourenço Peixinho, André e Teófilo dos
Reis, Elias de Carvalho, Rocha e Cunha, Francisco Couceiro, Chico
Regala, Bruno Teles, José Casimiro, João Mendonça, e outros mais que a
Morte arrebatou do nosso convívio...
Ronda,
alada, de espíritos imortais da geração académica do meu tempo! – Aqui
invoco hoje a Vossa desejada presença! – Vinde, amigos e companheiros
queridos, numa aparição fantástica e misteriosa, assistir a esta notável
celebração, ouvindo as palavras que minha boca pronuncia em homenagem à
vossa memória, que o tempo, que tudo Vence, ainda não conseguiu apagar
na arca do nosso peito!
. . . . . . . .
. . .
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. .
O Aveiro
do meu tempo de estudante, a sua vida económica, e até mundana, os seus
hábitos e costumes sociais, a sua personalidade política de tão notáveis
e honrosas tradições liberais; o aspecto urbano das suas ruas e praças,
outrora dum bulício recatado e simples, tudo isso o faziam um burgo
sensivelmente diferente daquilo que é hoje. Todavia, o sortilégio
amoroso e deslumbrador da sua admirável e tão característica paisagem,
mantém-se sempre o mesmo, aliciante e sugestivo a mais não ser.
A vida
académica doutros tempos era, também, bastante diferente da actual, e a
frequência do Liceu muito menor. Talvez, por isso mesmo, havia mais
ligação e carinho pessoal entre nós, sem desprimor para os rapazes de
hoje.
Porque,
nesse tempo, não se realizavam sensacionais encontros desportivos, nem
havia ases e estrelas de Cinema a
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apreciar, não se davam, por
isso mesmo, discussões acaloradas nem conflitos lamentáveis. Vivíamos
todos como Deus com os seus Anjos.
A
política, pouco ou nada nos interessava. É certo, porém, que alguns
rapazes do meu tempo vieram a ser pela vida fora uns politicões de alto
coturno…
Como,
também, não existiam os divertimentos e as tentações de hoje – sobretudo
as tentações! – juntávamo-nos sempre no fim das aulas, que acabavam
cedo, formando pequenas mas animadas tertúlias em casa das patroas, –
chamava-se-lhes assim nesse tempo... A mais alegre e ruidosa de todas –
ou lá não vivessem os aguerridos judeus de Águeda! – tinha o seu quartel
general num amplo e velho prédio, ali na rua Direita, há anos demolido
para dar lugar à actual praça ajardinada do Marquês de Pombal. Estou a
ver, por dentro e por fora, essa Sinagoga académica!
Por sua
vez, a mais sossegada, e até romântica, digamos assim, tinha a sua
residência numa modesta casinha de primeiro andar aqui perto, no popular
e histórico bairro do Alboi. A frequência ali, da rapaziada, que,
prematuramente, começava a sofrer do coração, era, de certo modo,
escolhida. Nem todos lá tinham guarida fácil, embora desejada. É que, em
seu redor, viviam as mais graciosas e simpáticas tricaninhas de Aveiro.
Eu tinha
alguma coisa que contar a esse respeito, mas a ocasião não é azada para
isso, e, francamente, um velho, como eu, a desfiar rimances de amores
vividos ou sonhados, por estudantes ainda sem barba, tornava-se
lamentavelmente ridículo para mim...
Já por
aqui não está, creio, quem pudesse, talvez, suspirar, no momento em que
faço esta indiscreta revelação...
De quando
em vez, especialmente aos sábados à noite, havia concertos – perdoem-me
a ousada classificação – com instrumentos de corda, em que se executavam
fadinhos dum bucolismo coimbrão, e umas lentas e chorosas valsas de
serenata... Aquilo, com melhor ou pior afinação e jeito, revestia-se,
porém, duma deliciosa ternura e encanto que só as coisas académicas
possuem. Por isso mesmo, cá fora na rua, com luar ou sem ele, nos
degraus e soleiras das portas, as raparigas do sítio vinham sentar-se,
curiosas, ouvindo com enlevo os acordes melodiosos das nossas guitarras
e violões tentadores.
Dá
vontade de chorar tudo isto, pois não dá? Mas nós não viemos hoje aqui
para isso, e era feio...
Arriscava-se, uma vez por outra, e para matar o tempo,
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um inocente e gratuito jogo de cartas, ou de damas, e fumava-se às
escondidas, um delicioso cigarrinho brejeiro...
Decifravam-se as charadas e logogrifos a prémio do popular Almanaque
de Lembranças, e lia-se, por desfastio, algum velho número do
“Campeão das Províncias”, o consagrado porta-voz dos acontecimentos
locais. Os nossos hábitos eram simples e morigerados, e as despesas
tanto quanto possível reduzidas ao mínimo pela força imperiosa das
circunstâncias. Naquele tempo, quem trazia dois tostões nos bolsos,
julgava-se rico, ou pouco menos.
A falta
de bons transportes, e de recursos monetários – éramos quase todos de
gente pobre – fazia com que os estudantes poucas vezes visitassem as
famílias, de burgos afastados, durante o período escolar. Apegavam-se,
assim, mais, às terras onde estudavam e aos lares eventuais, onde
residiam. Muitos deles, por espírito de economia – palavra que hoje se
desconhece – recebiam de suas casas, e traziam eles próprios no regresso
de férias, parte dos géneros com que haviam de alimentar-se.
Nessas
remessas, vinham sempre, mandadas pelas boas mãezinhas, algumas
gulodices caseiras, que se repartiam, com parcimónia, pelos
condiscípulos mais íntimos, e se comiam à porta fechada, por causa dos
intrusos e dos lambareiros...
Esses
festins pantagruélicos tinham sempre o seu remate barulhento e
algazarra, num botequim ali para baixo, onde se podia beber por um
mesquinho vintém. – dois centavos – uma avantajada e saborosa xícara
(chamava-se-lhe assim) de bom e aromático café, sem mistura alguma...
As vezes
– tantas vezes! – nem todos nós estávamos preparados, monetariamente,
para semelhantes extravagâncias, mas havia sempre um, entre a malta, que
abonava por empréstimo, sem fiador, a espórtula, cujo reembolso, pelo
credor, era, o mais das vezes, muito duvidoso..
Destarte
se vivia e estudava nesses remotos tempos, meus senhores, mas assim nos
instruímos, educámos, e pudemos vir a ser alguém pela vida fora.
Como
esquecer, então, esse passado, alegre e feliz, e esta linda terra de
Aveiro, que seduz quem a visita e cativa os que por aqui se demoram,
tais são os primores da sua gente e a beleza da sua urbe; o seu Liceu e
Colégios; as suas igrejas e mosteiros, a alacridade gritante das suas
ruas, as suas marinhas e canais venezianos, as tardes amenas dos
domingos no bucólico jardim de Santo António, as pitorescas e ruidosas
entregas dos ramos pelo Natal, a barulhenta Feira de Março, com
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as formidáveis mágicas e dramalhões do teatro Dallot, a chuva, que não
molhava, antes sabia bem, das cavacas doces da Capela de S. Gonçalinho,
as suas majestosas procissões – onde estão os S. Jorge e S. Cristóvão?
–, o donaire tentador e provocante das alegres salineiras, a galhardia
presumida dos marnotos e mercantéis em dias festivos, e a graça e
perfume e o encanto aliciante das suas gentis tricanas?...
E como
esquecer também – nunca! nunca! – as místicas e adoráveis novenas de
Santa Joana Princesa na capelinha do mosteiro de Jesus, a que nós,
estudantes, jamais faltávamos, talvez – quem sabe? – com pouca devoção,
antes com muita curiosidade em ouvirmos as noviças, freirinhas e
educandas, que, ocultas por detrás das grades estreitas do coro de cima,
entoavam, num ritmo amoroso e angelical, os versículos e motetes de
exaltação à Excelsa e Sacrossanta Virgem?...
Lembram-se, lembram-se, os velhos como eu?...
Como é
enternecedora e grata a evocação espiritual de tudo isto, que, embora
tantos anos decorridos, ainda hoje nos alaga o coração dum delicioso
quebranto!... Guardemo-lo, então, amorosamente para sempre – para
sempre!...
. . . . . . . .
. . .
Senhor
doutor José Tavares, meu bom e prestimoso amigo, Mestre e orientador de
meu filho e de meus netos: – As palavras, tão simples e banais, que
acabo de pronunciar, trouxeram, certamente, a Vossa Excelência, uma
triste e amarga desilusão, porque elas não tiveram nem a beleza
aliciante da forma, nem a elevada espiritualidade que merecia esta
notável comemoração. Porque assim o julgo, trago aqui à baila, em guisa
de refrigério, aqueles dizeres que Almeida Garrett esculpiu na portada
de um dos seus livros, que rezam assim:
«Isto
pensava, isto escrevi, isto tinha na alma, isto vai no papel, que doutro
modo não sei escrever).»
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