Acersso à hierarquia superior
 

Livro do 1.º Centenário do Liceu de Aveiro (1851-1951)

Orações proferidas no Sarau

f) Oração de Dinis Gomes:

HORAS DE EMOÇÃO

Num encontro, meramente casual, havido, há tempo, entre mim e o senhor Reitor dr. José Tavares, tive, por este, conhecimento do propósito em que estava de comemorar festivamente o primeiro centenário do nosso Liceu.

Expôs-me, por então, cheio de entusiasmo, o programa que delineara para ser executado, rematando assim:

– E você, Dinis Gomes, que é um dos velhos alunos existentes que frequentaram o Liceu tem que falar em nome deles no sarau que deve realizar-se.

Fiquei aterrado com o convite, confesso-o, embora reconhecesse que ele representava para mim uma grande, mas não merecida, honra. Arrisquei, como era natural, uma delicada recusa, procurando eximir-me a tarefa de tanta responsabilidade.

– Tenha paciência, meu amigo, ripostou-me insinuantemente o dr. José Tavares. Tem que falar, dizer algumas palavras.

E afastou-se de mim com um gesto amigo, deixando-me, ali, colado ao chão, sem coragem para reagir.

Eis, meus senhores, o motivo por que me encontro hoje neste lugar. Estou... de castigo, no desempenho dum mandato a que não podia faltar.

Mas; se o nosso querido Reitor, me rogou, pelo menos, algumas palavras para marcarem a presença dos veteranos / 81 / escolares, eu creio que, até aí, talvez me seja possível chegar, embora com todas as reservas indispensáveis. E, se isso, só, é o bastante para me desobrigar do encargo, então... Vamos lá com Deus, como escrevem os marinhões da nossa ria nas bizarras legendas com que ilustram as proas dos seus característicos e tão lindos barcos.

Todos sabem, tão bem como eu, que isto de falar em público não é coisa fácil como parece. E, no caso presente, em que o auditório é selecto, a situação agrava-se bastante, intimidando por demais o orador, se tal nome merece, que, no caso presente, é um homem gasto de todas as energias físicas e intelectuais, cujo espírito perdeu já o milagre divino da criação, e a voz, agora pobre em sua gama de tons, não tem o brilho e o timbre que possam produzir eco no coração de quem o ouve. Embora assim seja, temos que começar.

Num dos seus consagrados livros, cuja leitura se deve cultivar, Alexandre Herculano, escreveu:

«O mester de relembrar o passado é uma espécie de magistratura moral, uma espécie de sacerdócio».

Assim o julgo, e essa é a principal razão por que eu tive sempre um apaixonado culto pelas coisas do passado, rememorando-as a cada passo, especialmente aquelas que mais vivamente impressionaram o meu espírito e comoveram o meu coração. E assim é que, nos meus trabalhos literários, me socorro muitas vezes deles, para os colorir e enriquecer tanto quanto possível. Com isso me sinto feliz.

Ocorrem-me, neste momento, as seguintes palavras do ilustre escritor Aquilino Ribeiro, ao referir-se, há tempos, à decadência mental do homem, quando atinge idade avançada:

«Que hão-de fazer os velhos senão rememorar o caminho percorrido?»

Temos que confirmar hoje aqui o judicioso conceito do Mestre. Vejamos se conseguimos fazê-lo o melhor possível.

Há passos da nossa vida, coisas, muitas vezes, de somenos importância, que todos nós conservamos imperecivelmente gravados na memória, de preferência a outros de data muito mais recente. Se me dão licença, cito, agora, um de que fui protagonista e... vítima, e que julgo com certa oportunidade e pronunciado sabor académico.

Quero referir-me à primeira prova escolar dada por mim no nosso Liceu. Onde isso já vai, Santo Deus!...

O júri que devia interrogar-me era formado pelos professores Elias Pereira, Figueiredo e Álvaro de Almeida de Eça. Ora, a certa altura do meu exame, o dr. Álvaro, que era, por / 82 / demais, ironista e brincalhão, desfechou-me esta inocente pergunta:

– O menino conhece na nossa História alguma figura notável, que tenha semelhança consigo?

– Conheço, sim senhor, respondi lépido e confiante. Foi D. Dinis, o Lavrador.

– Exactamente, confirmou o mestre. – E sabe dizer-me com quem era ele casado?

– Com a Rainha Santa Isabel, respondi prontamente.

Mas... boca que foste dizer!

– Quem é que disse ao menino que a Rainha Isabel era Santa? Santa de barro, ou de roca?

E neste tom galhofeiro, um pouco irreverente, talvez, o dr. Álvaro disse coisas que provocaram risos trocistas na assistência e, em mim, fizeram vir algumas lágrimas aos olhos. Um autêntico fracasso!...

Acudiu-me, felizmente, a tempo, o dr. Figueiredo, que era um homem bom, prestando-me valiosa assistência em lance tão difícil e ridículo.

Com este simples, mas curioso, relato, ficam Vossas excelências sabendo que eu entrei no Liceu de Aveiro a chorar como uma criança mimada. Mas podem acreditar que foi só essa vez, porque, se tivesse novamente que o fazer, seria tão-somente, para chorar de saudade ao terminar os meus estudos em Aveiro.

Chorar, sim, com saudade – muita saudade! – pela perda do amoroso ambiente académico aqui gozado; saudade pelos meus bons e carinhosos professores, incluindo, mesmo, nesse número, o galhofeiro dr. Álvaro, de quem, mais tarde, fui amigo; saudade enternecida pelos meus condiscípulos e contemporâneos que tanto me estimavam, e ainda muita saudade por esta linda e acolhedora cidade de Aveiro.

Um quadro da «Romagem ao Passado».

É que, meus senhores, quem viveu e estudou aqui, não esquece com facilidade, ainda mesmo que tenha comido poucos ovos moles, que fazem a boca doce… Por mim, e já bastantes anos são decorridos, depois que abandonei Aveiro, não passo ali fora na Costeira (chamava-se assim, no meu tempo, essa rua) que não olhe com embevecimento para a fachada, sóbria, mas elegante, do nosso Liceu, de linhas bem traçadas, as suas amplas portas e janelas em ogivas, duma grande simplicidade no labor das cantarias das suas paredes lisas, sem enfeites caprichosos, mas sempre escrupulosamente caiadinhas de branco, espelhentas e luzidias, para que o Sol, madrugador, ao aparecer, curioso, por detrás dos telhados cimeiros da / 84 / Misericórdia, nelas possa reverberar em saudação gloriosa ao vulto estático que, em seu sopé, ergue, altivo, o braço indomável, apontando, no espaço indefinido, um Destino heróico, e abre, num grito, simbólico, ansioso e apaixonado, a sua boca imaculada, proclamando, bem alto, a alforria santa da Pátria, a Liberdade, a Justiça, e os sagrados Direitos do Homem!...

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Tenho, e sempre tive, uma particular afeição por esta boa terra de Aveiro, onde iniciei a minha formação moral, desenvolvi a inteligência e criei o amor pelas letras, recolhendo no escrínio sagrado do meu coração os recursos e exemplos que haviam de servir-me de couraça invulnerável para enfrentar com brio e galhardia os perigos, as dificuldades, os desgostos e as ingratidões da minha vida. Aqui tive, e tenho ainda, felizmente, alguns dos meus melhores amigos.

Entre os primeiros, recordo com enternecida saudade os nomes dos doutores Jaime e António Duarte Silva, Joaquim e Lourenço Peixinho, André e Teófilo dos Reis, Elias de Carvalho, Rocha e Cunha, Francisco Couceiro, Chico Regala, Bruno Teles, José Casimiro, João Mendonça, e outros mais que a Morte arrebatou do nosso convívio...

Ronda, alada, de espíritos imortais da geração académica do meu tempo! – Aqui invoco hoje a Vossa desejada presença! – Vinde, amigos e companheiros queridos, numa aparição fantástica e misteriosa, assistir a esta notável celebração, ouvindo as palavras que minha boca pronuncia em homenagem à vossa memória, que o tempo, que tudo Vence, ainda não conseguiu apagar na arca do nosso peito!

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O Aveiro do meu tempo de estudante, a sua vida económica, e até mundana, os seus hábitos e costumes sociais, a sua personalidade política de tão notáveis e honrosas tradições liberais; o aspecto urbano das suas ruas e praças, outrora dum bulício recatado e simples, tudo isso o faziam um burgo sensivelmente diferente daquilo que é hoje. Todavia, o sortilégio amoroso e deslumbrador da sua admirável e tão característica paisagem, mantém-se sempre o mesmo, aliciante e sugestivo a mais não ser.

A vida académica doutros tempos era, também, bastante diferente da actual, e a frequência do Liceu muito menor. Talvez, por isso mesmo, havia mais ligação e carinho pessoal entre nós, sem desprimor para os rapazes de hoje.

Porque, nesse tempo, não se realizavam sensacionais encontros desportivos, nem havia ases e estrelas de Cinema a / 85 / apreciar, não se davam, por isso mesmo, discussões acaloradas nem conflitos lamentáveis. Vivíamos todos como Deus com os seus Anjos.

A política, pouco ou nada nos interessava. É certo, porém, que alguns rapazes do meu tempo vieram a ser pela vida fora uns politicões de alto coturno…

Como, também, não existiam os divertimentos e as tentações de hoje – sobretudo as tentações! – juntávamo-nos sempre no fim das aulas, que acabavam cedo, formando pequenas mas animadas tertúlias em casa das patroas, – chamava-se-lhes assim nesse tempo... A mais alegre e ruidosa de todas – ou lá não vivessem os aguerridos judeus de Águeda! – tinha o seu quartel general num amplo e velho prédio, ali na rua Direita, há anos demolido para dar lugar à actual praça ajardinada do Marquês de Pombal. Estou a ver, por dentro e por fora, essa Sinagoga académica!

Por sua vez, a mais sossegada, e até romântica, digamos assim, tinha a sua residência numa modesta casinha de primeiro andar aqui perto, no popular e histórico bairro do Alboi. A frequência ali, da rapaziada, que, prematuramente, começava a sofrer do coração, era, de certo modo, escolhida. Nem todos lá tinham guarida fácil, embora desejada. É que, em seu redor, viviam as mais graciosas e simpáticas tricaninhas de Aveiro.

Eu tinha alguma coisa que contar a esse respeito, mas a ocasião não é azada para isso, e, francamente, um velho, como eu, a desfiar rimances de amores vividos ou sonhados, por estudantes ainda sem barba, tornava-se lamentavelmente ridículo para mim...

Já por aqui não está, creio, quem pudesse, talvez, suspirar, no momento em que faço esta indiscreta revelação...

De quando em vez, especialmente aos sábados à noite, havia concertos – perdoem-me a ousada classificação – com instrumentos de corda, em que se executavam fadinhos dum bucolismo coimbrão, e umas lentas e chorosas valsas de serenata... Aquilo, com melhor ou pior afinação e jeito, revestia-se, porém, duma deliciosa ternura e encanto que só as coisas académicas possuem. Por isso mesmo, cá fora na rua, com luar ou sem ele, nos degraus e soleiras das portas, as raparigas do sítio vinham sentar-se, curiosas, ouvindo com enlevo os acordes melodiosos das nossas guitarras e violões tentadores.

Dá vontade de chorar tudo isto, pois não dá? Mas nós não viemos hoje aqui para isso, e era feio...

Arriscava-se, uma vez por outra, e para matar o tempo, / 86 / um inocente e gratuito jogo de cartas, ou de damas, e fumava-se às escondidas, um delicioso cigarrinho brejeiro...

Decifravam-se as charadas e logogrifos a prémio do popular Almanaque de Lembranças, e lia-se, por desfastio, algum velho número do “Campeão das Províncias”, o consagrado porta-voz dos acontecimentos locais. Os nossos hábitos eram simples e morigerados, e as despesas tanto quanto possível reduzidas ao mínimo pela força imperiosa das circunstâncias. Naquele tempo, quem trazia dois tostões nos bolsos, julgava-se rico, ou pouco menos.

A falta de bons transportes, e de recursos monetários – éramos quase todos de gente pobre – fazia com que os estudantes poucas vezes visitassem as famílias, de burgos afastados, durante o período escolar. Apegavam-se, assim, mais, às terras onde estudavam e aos lares eventuais, onde residiam. Muitos deles, por espírito de economia – palavra que hoje se desconhece – recebiam de suas casas, e traziam eles próprios no regresso de férias, parte dos géneros com que haviam de alimentar-se.

Nessas remessas, vinham sempre, mandadas pelas boas mãezinhas, algumas gulodices caseiras, que se repartiam, com parcimónia, pelos condiscípulos mais íntimos, e se comiam à porta fechada, por causa dos intrusos e dos lambareiros...

Esses festins pantagruélicos tinham sempre o seu remate barulhento e algazarra, num botequim ali para baixo, onde se podia beber por um mesquinho vintém. – dois centavos – uma avantajada e saborosa xícara (chamava-se-lhe assim) de bom e aromático café, sem mistura alguma...

As vezes – tantas vezes! – nem todos nós estávamos preparados, monetariamente, para semelhantes extravagâncias, mas havia sempre um, entre a malta, que abonava por empréstimo, sem fiador, a espórtula, cujo reembolso, pelo credor, era, o mais das vezes, muito duvidoso..

Destarte se vivia e estudava nesses remotos tempos, meus senhores, mas assim nos instruímos, educámos, e pudemos vir a ser alguém pela vida fora.

Como esquecer, então, esse passado, alegre e feliz, e esta linda terra de Aveiro, que seduz quem a visita e cativa os que por aqui se demoram, tais são os primores da sua gente e a beleza da sua urbe; o seu Liceu e Colégios; as suas igrejas e mosteiros, a alacridade gritante das suas ruas, as suas marinhas e canais venezianos, as tardes amenas dos domingos no bucólico jardim de Santo António, as pitorescas e ruidosas entregas dos ramos pelo Natal, a barulhenta Feira de Março, com / 87 / as formidáveis mágicas e dramalhões do teatro Dallot, a chuva, que não molhava, antes sabia bem, das cavacas doces da Capela de S. Gonçalinho, as suas majestosas procissões – onde estão os S. Jorge e S. Cristóvão? –, o donaire tentador e provocante das alegres salineiras, a galhardia presumida dos marnotos e mercantéis em dias festivos, e a graça e perfume e o encanto aliciante das suas gentis tricanas?...

E como esquecer também – nunca! nunca! – as místicas e adoráveis novenas de Santa Joana Princesa na capelinha do mosteiro de Jesus, a que nós, estudantes, jamais faltávamos, talvez – quem sabe? – com pouca devoção, antes com muita curiosidade em ouvirmos as noviças, freirinhas e educandas, que, ocultas por detrás das grades estreitas do coro de cima, entoavam, num ritmo amoroso e angelical, os versículos e motetes de exaltação à Excelsa e Sacrossanta Virgem?...

Lembram-se, lembram-se, os velhos como eu?...

Como é enternecedora e grata a evocação espiritual de tudo isto, que, embora tantos anos decorridos, ainda hoje nos alaga o coração dum delicioso quebranto!... Guardemo-lo, então, amorosamente para sempre – para sempre!...

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Senhor doutor José Tavares, meu bom e prestimoso amigo, Mestre e orientador de meu filho e de meus netos: – As palavras, tão simples e banais, que acabo de pronunciar, trouxeram, certamente, a Vossa Excelência, uma triste e amarga desilusão, porque elas não tiveram nem a beleza aliciante da forma, nem a elevada espiritualidade que merecia esta notável comemoração. Porque assim o julgo, trago aqui à baila, em guisa de refrigério, aqueles dizeres que Almeida Garrett esculpiu na portada de um dos seus livros, que rezam assim:

«Isto pensava, isto escrevi, isto tinha na alma, isto vai no papel, que doutro modo não sei escrever).»

 

 

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