e) –
Discurso do Doutor Fernando Magano.
IMAGEM DO
«MEU LICEU»
Com
algumas responsabilidades no ensino universitário e sentindo dia a dia,
de modo quase doloroso, a sua fundura – desejei, neste momento,
alhear-me de tal preocupação e quis dispor-me, para este acto, a uma
descrição amena de quaisquer reminiscências, meio anedóticas meio
sentimentais, que ao Liceu de Aveiro e a mim próprio dissessem respeito.
Não o
consegui, todavia. Há destas falhas na vida psicológica de cada qual;
emperra o descritivo, talvez porque urna especial tremulina do espírito
nos cicie, lá do fundo de não sei onde, que a comemoração centenária de
um liceu é algo mais e algo mais grave do que urna simples evocação de
curiosidades.
Mas fugi
a sete pés, devo confessá-lo, de uma tentativa de oração conceituosa com
seus ares de crítica fácil ou seus ocultos e porventura pretensiosos
desígnios programáticos. Nem é o momento, nem me compete, nem me sei
apto.
Indeciso,
parei a olhar-me e a ver-me lá para trás, projectado cá para a frente.
E
acudiu-me, então, indecisa também, uma imagem do «meu liceu»; mera
impressão, sem rigor cronológico.
Provavelmente não estará à altura da importância desta cerimónia, mas eu
não quis entrar nesta casa com outra personalidade que não fosse a do
meu tempo de aluno, pontuada apenas por uma ou outra dedada que o
mirante da vida me haja oferecido.
Em boa
verdade, se me refugio nessa mente da escolaridade, não devia ser eu a
falar daqui: está aí no ajuntamento o categorizado presidente da minha
Academia, esse magnífico camarada e faiscante espírito que é o Dr.
Francisco da Silva Mendes, – e tenho então, disciplinadamente, de lhe
pedir licença...
O que vou
dar não quer ter, de modo algum, o tom postiço e decerto ridículo de uma
página de memórias. Seria, quando menos, uma imperdoável enfatuação.
*
Facilmente na minha experiência escolar se marcam e balizam três
períodos:
– O do
começo em Ílhavo: é a aula da Senhora Mestra e é a Escola
Primária;
O Reitor correspondendo às aclamações
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– O
segundo em Aveiro: o Liceu Central e o Colégio do senhor padre Leitão
(permita-se-me já um pensamento de gratidão a este colégio e a este
digníssimo sacerdote: casa de disciplina e de defesa; íntegro director,
espécie da sentinela vigilante e seguro esteio. Aveiro deve a este Padre
uma palavra de homenagem...);
– O
derradeiro período no Porto: a escola Médica e a Cidade, isto é, a
especialização e as solicitações do desamparo.
Semelhante discência oficial vai de 1910 a 1927, e a sua análise daria
um depoimento para o estudo do ambiente de uma geração estudantil no
Portugal de então.
– Na aula
da «Senhora Mestra», os rudimentos e o catecismo; na escola oficial, o
heróico, animoso e nunca assaz reconhecido esforço dos professores
primários. Mas, ao lado, a inspiração adrede escolhida das repartições
oficiais (1911, 1912, 1915… ...) e, me recordo, uma festa esquisita: o
desfile intencional dos miúdos, em fato domingueiro e pendões coloridos,
para a plantação simbólica da árvore («Ó Escolas, semeai»…....; no
fundo, isto, era uma substituição, um propósito de afastamento......).
Àparte o brio familiar na preparação da comunhão solene, nunca, nunca
mais, nas aulas do Estado, se ouviu falar em Cristo e na sua Eucaristia.
Nunca mais. A minha geração ficou, oficialmente, com fome do Céu. A
árvore que nós plantámos secou, como não podia deixar de ser; faltou-lhe
o outro orvalho, o que vem de cima. Já passei no sítio várias vezes; nem
rasto lhe topei, sequer da cova.
– Do
período universitário não quero agora dizer muita coisa: viemos por aí
acima, como já o escrevi algures, aos baldões, na crista das ondas, sem
leme, misturando a ciência com quantas desorientações ético-cívicas os
profetas da ocasião nos propinavam. A Faculdade cumpria nobremente o seu
programa, mas a cidade na qual nos mergulharam enovelava-nos nas suas
atraentes carícias; e, ao lado, salpicando os nossos desencontrados
anseios, uma turbulência pública (1921-1927), sobre a qual ressoava,
todas as semanas, ido mesmo daqui, de Aveiro, o violento mas talvez
necessário, injusto mas porventura oportuno, pregão panfletário: «somos
um país de burros, somos um país perdido». A minha geração, civicamente,
foi criada no pessimismo, quase sem esperança.
No meio
destes períodos, verdadeiro arco-botante, o Liceu, e, particularmente, o
«meu Liceu».
A mesa da sessão
solene durante a fala do Reitor.
Arco-botante, digo-o com certa intenção, porque a imagem me serve para
definir, na minha experiência, o significado da
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função liceal que
recebe a terra mole e virgem, sobre a qual passou o primeiro arado, e a
vai entregar, gradada, à especialização onde se afeiçoa: um tramo do
arco cimentado no alicerce submerso e outro encastoado na parede da
nave; por mais viva que seja a rosácea e mais belos os ornatos, se estes tramos exteriores, um, outro e mais outro – as disciplinas dos programas
e os mestres das disciplinas –, se estes arcos não estiverem harmónicos,
bem lançados, seguros e, se puder ser, elegantes, todo o edifício fica
desequilibrado, não airoso, e sujeito a fendas. O tempo liceal não é já
o alicerce e não tem ainda propósitos de abóbada; mas é a parede mestra,
solidez, perímetro no chão, o apoio e a segurança de estruturas mais
altas. O que vier em seguida prende-se ou assenta nela – e fica na vida.
Convém, é
justo, recordar este tempo e bendizê-lo, principalmente quando, como no
caso de agora, cem anos de silencioso, meritório e abnegado serviço lhe
dão jus a merecer sem reservas uma gratidão sem limites.
O MEU
LICEU: 1914-1921
Pois
recebi nesta magnífica casa de ensino, além do mais, uma especial lição
que procurarei delinear num rapidíssimo esboço.
Duos
assinaturas simbólicas: 1.ª classe, 1.ª turma. (Estou a ouvir a
sineta, ali ao dobrar da escada... e a ver Zé Pardal, alto, esguio, tão
esguio e tão alto como a vara do badalo: uma, duas… nove horas na «torre
da Cadeia» e logo, logo, a sineta a dobrar; primeira classe, primeira
turma...) Aula de Português: leia; divida as orações; os seus
significados? Sente-se. No caderno escolar, modelo n.º 1, aluno n.º 39,
assinado: o director de classe (a imagem viva de uma missão de
disciplina!) – R. Soares.
7.ª
classe, Curso Complementar de Ciências, aluno n.º 8; o director de
classe...... Eu digo já quem era.
Precisamente ao redor do meu quinto ano escolar (1918-1919) ia acabar
nesta casa uma nobre teoria de professores com seus especiais processos
pedagógicos. De cada um e de todos figuro hoje uma altíssima imagem de
respeito: a honradez pessoal, a direitura cívica, a equilibrada
paternidade intelectual, o amor ao seu liceu, a transmissão dadivosa dos
conhecimentos, a obediência à lei. Não importam pormenores, não importam
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vistos agora os feitios pessoais, importa que os alunos ficaram
com esta legenda: gente honrada e competente, cumpridora, desinteressada
e senhora de um seguro tino no peneirar das aptidões e benevolente no
final de contas (o Dr. Eduardo Silva, o Dr. Elias (!), o senhor padre
Vieira, o Dr. Álvaro de Moura... Vós todos, os de então, vós todos
lembrais-vos? Do you remember? – o Dr. Ferreira da Cunha…) – e
como traço de união (o Dr. Ferreira Neves diria hífen...), entre uma
época pedagógica que se ia e outra que aí vinha, verdadeiro símbolo de
um momento nacional inquieto e não menos exemplo de elegância mental, o
Dr. Brito Guimarães (gravata branca, impecavelmente branca, de fustão;
um ar airoso, transigente, vagamente «físico», «quimicamente» puro, e
compreensivo, um tudo nada alheio...): a política enovelando o professor
e o professor debatendo-se na impossibilidade ambiencial da política de
ocasião.
Entretanto, um novo ciclo de actividade, uma docência fresca se vinha
desenhando e veio a marcar com segurança uma época própria no liceu
verdadeiramente renovado: docência recém-vinda, ainda indecisa na
actuação (um após outro – todos os conhecemos, são eles), não
responsável na orientação geral vigorante, mas já varonil; peada ainda
pelas circunstâncias, mas já ansiosa; disciplinada, mas não tímida. Não
hesito em dizer: os professores que vieram para aqui mais recentemente,
para o Liceu de José Estêvão, vieram actuar num estabelecimento de
ensino que essa gente de 1917, 18, 19, 20, preparou com o suor do seu
rosto, com a dádiva do seu entusiasmo e com a oferenda do seu saber. A
pedagogia em Aveiro iniciava um novo ciclo nas laudas da história liceal
com projecção muito para longe dos muros do edifício: revistas de
cultura, ciclos de conferências, congressos pedagógicos, teatro
didáctico, etc.
Boiam-me
na memória vagas reminiscências... O Latim do quinto ano, por exemplo,
no texto dos numerais: Homini sunt duo oculi, duae aures, unum os.
Anno septimo decimo secundi belli Punici Carthaginienses Hannibalem ex
Italia revocaverunt, ut cum Scipione in Africa dimicaret. Nemo potest
duobos servire.
E aquele
Aníbal das guerras púnicas que derrota vários generais romanos, e logo o
trecho heróico: Conflixerat apud Rhodanum cum P. Cornelio Scipione
consule eumque pepulerat (sobretudo, sobretudo, eumque… eumque
pepulerat).
Esta
magnífica disciplina do espírito que é o Latim, admirável regra de
estudo que muito, muitíssimo, lamento hoje não
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ter sabido cultivar, ficou-me, entretanto, desde então misturado a
outros conhecimentos mais próximos:
Teorema
de Thales: Duas rectas cortadas por um feixe de paralelas são divididas
em segmentos proporcionais.
Aritmética racional – um número primo que divide um produto divide pelo
menos um dos factores.
E na
física: Dine é a força capaz de imprimir à massa de um grama a
aceleração de um centímetro por segundo2. – Erg: o trabalho feito pela
unidade de força, quando o seu ponto de aplicação percorre a unidade de
comprimento na própria direcção da força.
Em
química, a síntese do ácido sulfúrico em três fases sucessivas:
queimando o enxofre (S+O2 = SO2); oxidando o
anidrido sulfuroso em presença da esponja de platina (SO2 + O
= SO3); combinando o anidrido com a água (SO5+ OH2
= SO4H2).
Não sei
se isto é ainda assim. Não sei. Fui copiar esta sabedoria aos meus
apontamentos de então e achei-lhe um precioso sabor! E que magníficas «chichadelas»
a entrelinhar a sabedoria impressa.
*
Entretanto, uma lembrança riscou fundo na minha memória. Com essa
docência nova, novos homens, e foi uma pacífica revolução. Nesta sala,
nesta biblioteca, uma acometida geral: nas férias, esvaziaram-se as
estantes, remexeram-se os alfarrábios, bufou-se forte no pó de muitos
anos, ordenaram-se volumes, salvaram-se espécies, e a cultura, que
parecia adormecida, acordou, invadiu as aulas e falou alto. A mim, e a
muitos outros, a biblioteca ensinou então a beleza da literatura, o
encanto das convivências intelectuais, e o bibliotecário, por trás dos
seus óculos analíticos e ensimesmados, apontou, escolheu, deu o
conselho... Quando um dia, muito mais tarde, por aqui repassei, que
prazer em me reencontrar com o Bobo de Herculano, em sorrir com o
Eça de Tormes, em cumprimentar a Morgadinha, reverenciar o
Alfageme, debicar no Campo de Flores e repetir baixinho
aquela «Saudade, gosto amargo de infelizes...); só hoje,
repensando esta lição, compreendo bem por que é atraente a História
de S. Domingos, como deleita o Amador Arrais, como subjuga e
prende o sermonário do Vieira...
A tuna, no começo do sarau
Biblioteca e bibliotecário fundiram-se e transfundiram-se. Lá está,
no meu caderno escolar, a assinatura que tal revolução
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orientou: o director de classe, José Pereira Tavares, o nosso
magnífico
Reitor.
Também
aqui ao lado e ali em frente, foi outro fervet-opus, uma
acometida geral, verdadeira renovação, comandada e realizada por um
dinâmico professor recém-chegado: pássaros, minerais, mapas, esqueletos,
desenhos, microscópios, tudo andou numa fona; os bichos, as pedras, os
empregados e até eu, nas férias, a limpar as penas da gaivota, a
endireitar o olho do peixe embalsamado, a dispor as borboletas, a
orientar o quartzo, a classificar a pirite (brilho metálico, cor
amarelada, dureza 6, risca preta; tenaz, fractura conchóide, fusível ao
maçarico, desenvolvendo fumos sufocantes de anidrido sulfuroso: ferro
piritoso, S2Fe)!!! – e surgiram os verdadeiros trabalhos
práticos e, até, os alunos deste liceu foram, por aí fora, a pé, com o
seu professor, à mata da Gafanha, ao jardim de Esgueira, e mais longe de
comboio, a Eirol, a comparar terrenos, a ver erosões, colher calhaus,
observar correntes de água, estudar as dunas, espreitar raízes... Sei
lá, por essas ruas da cidade, de noite, fugitivamente, a caçar gatos, de
manhã no mercado a comprar pombos (Columba livia, L. – pois
então!) ... Um liceu renovado! E em seguida, no laboratório, a sério,
muito a sério:
– A
rana esculenta é um vertebrado da classe dos batráquios, ordem dos
anuros, etc. – e o respectivo desenho a nanquim;
– O
golfão branco é uma planta aquática, com folhas largas, flutuantes, 4-6
sépalas, pétalas numerosas: linfeáceas.
Encontro
isto tudo e muito mais no meu caderno de trabalhos práticos de ciências
e encontro em cada uma das suas páginas, a rubricar-me a memória, um
nome que pronuncio respeitosamente, o mesmo nome que hoje em cátedra
diferenciada anda a ensinar, segura e metodicamente, toda a cidade, a
rubricar-lhe ruas e praças, a exemplificar na acção um método
pedagógico, a ensinar no final de contas: Álvaro Sampaio, director de
classe, presidente do Município.
Posso
agora resumir:
Ao
terminar o meu quinto ano, ficara de efectivo a memória do Português e
do Latim: os pensamentos, as acções heróicas, a beleza, um anúncio de
Arte, os homens no seu trânsito e, por tudo, um estímulo para o
intemporal.
Ao
terminar o Curso Complementar de Ciências, sobrenadava uma espécie de
espírito de concretização: as coisas e a sua disciplina, a observação
metódica e suas alegrias, a vida, suas
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modalidades e suas regras, e, por tudo, uma imagem da Criação e um
anúncio do Criador.
Desta
mistura de Ciências e Letras herdei a mais grata mensagem deste Liceu
Central. Cada Mestre, então, puxando a brasa para a sua sardinha, e o
noviço, no meio, de ambas as brasas colhendo o calor e a luz, nesta
atraência do saber e do especular, do rigoroso e do fluídico, do corpo e
do espírito. Esta imagem me acompanhou pela Universidade fora e, devo
dizer, me tem estado sempre presente na vida.
É ocasião
de a agradecer ao «meu Liceu».
*
Revertendo à minha impressão, olhando-me lá para trás, acode-me sempre a
lembrança desta magnífica casa de ensino, onde, mais do que os
conhecimentos – transitórios e mudáveis expressões do saber – avulta na
minha presença juvenil a alta lição de direitura Cívica, de exacto
cumprimento dos deveres pedagógicos, que todos e cada qual devemos a
todos e a cada qual dos nossos Mestres.
Vem aí um
edifício novo, rasgado, soalheirento, aberto: livros, aparelhos,
programas, outros professores... os mesmos rapazes, os mesmos de sempre,
a tentarem afeiçoar na sua inquietude a mesma experiência...
Pois bem:
olhando-me agora lá para o futuro, na responsabilidade. da toga
académica que me cinge os rins; olhando-me lá para amanhã, encontro
sempre a preceder a Universidade esta hora séria que é o tempo liceal.
Magnífico tempo, durante o qual se forjam vontades e premeiam aptidões;
tempo em que se risca fundo o risco definidor.
Um
programa estranho, bastante cinzento, se adensa na linha do horizonte,
com o propósito de anulação de todos os valores ético-morais que foram a
glória e o sacrifício de, pelo menos, mil novecentos e cinquenta e uma
gerações!
Os
métodos de dissolução alcançaram já, capciosos, aparentemente anódinos,
mas ricos de vitríolo, estas frescas almas que são os vossos alunos,
senhores professores do liceu; e já a vossa missão se desdobra, alarga e
enobrece. Não sois hoje tão somente os transmissores de conhecimentos;
sois, sem dúvida, as vigilantes sentinelas e os possíveis defensores de
valores muito mais altos. Não só a inteligência dos vossos alunos vos
anda entregue. Até vos compete a defesa das suas pessoas.
Já não
bastam as meras informações que se colhem nas salas de aula: frequência,
disciplina, aproveitamento... Não basta isso. O novo liceu que aí vem
multiplica-se pelas ruas
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do burgo, surpreende as revistas ilustradas, entra nos campos de jogos,
senta-se com os rapazes nos cinemas; vigia os costumes, ampara os
corações.
Daqui a
cem anos, lá no outro edifício, ouvireis, com certeza, os agradecimentos
das mães de Portugal.
*
Senhor
Reitor
– na «nota» que houver de dar-me por este exercício que V. Ex.ª ordenou,
peço-lhe seja, uma vez mais, benevolente; e no próximo Conselho Escolar
diga aos «outros» que deixem lá passar, por esta vez, o rapazinho, ao
menos pela boa intenção que teve na má prova que acaba de dar.
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