Acersso à hierarquia superior
 

Livro do 1.º Centenário do Liceu de Aveiro (1851-1951)

e) – Discurso do Doutor Fernando Magano.

IMAGEM DO «MEU LICEU»

Com algumas responsabilidades no ensino universitário e sentindo dia a dia, de modo quase doloroso, a sua fundura – desejei, neste momento, alhear-me de tal preocupação e quis dispor-me, para este acto, a uma descrição amena de quaisquer reminiscências, meio anedóticas meio sentimentais, que ao Liceu de Aveiro e a mim próprio dissessem respeito.

Não o consegui, todavia. Há destas falhas na vida psicológica de cada qual; emperra o descritivo, talvez porque urna especial tremulina do espírito nos cicie, lá do fundo de não sei onde, que a comemoração centenária de um liceu é algo mais e algo mais grave do que urna simples evocação de curiosidades.

Mas fugi a sete pés, devo confessá-lo, de uma tentativa de oração conceituosa com seus ares de crítica fácil ou seus ocultos e porventura pretensiosos desígnios programáticos. Nem é o momento, nem me compete, nem me sei apto.

Indeciso, parei a olhar-me e a ver-me lá para trás, projectado cá para a frente.

E acudiu-me, então, indecisa também, uma imagem do «meu liceu»; mera impressão, sem rigor cronológico.

Provavelmente não estará à altura da importância desta cerimónia, mas eu não quis entrar nesta casa com outra personalidade que não fosse a do meu tempo de aluno, pontuada apenas por uma ou outra dedada que o mirante da vida me haja oferecido.

Em boa verdade, se me refugio nessa mente da escolaridade, não devia ser eu a falar daqui: está aí no ajuntamento o categorizado presidente da minha Academia, esse magnífico camarada e faiscante espírito que é o Dr. Francisco da Silva Mendes, – e tenho então, disciplinadamente, de lhe pedir licença...

O que vou dar não quer ter, de modo algum, o tom postiço e decerto ridículo de uma página de memórias. Seria, quando menos, uma imperdoável enfatuação.

*

Facilmente na minha experiência escolar se marcam e balizam três períodos:

– O do começo em Ílhavo: é a aula da Senhora Mestra e é a Escola Primária;

O Reitor correspondendo às aclamações

/ 72 /

– O segundo em Aveiro: o Liceu Central e o Colégio do senhor padre Leitão (permita-se-me já um pensamento de gratidão a este colégio e a este digníssimo sacerdote: casa de disciplina e de defesa; íntegro director, espécie da sentinela vigilante e seguro esteio. Aveiro deve a este Padre uma palavra de homenagem...);

– O derradeiro período no Porto: a escola Médica e a Cidade, isto é, a especialização e as solicitações do desamparo.

Semelhante discência oficial vai de 1910 a 1927, e a sua análise daria um depoimento para o estudo do ambiente de uma geração estudantil no Portugal de então.

– Na aula da «Senhora Mestra», os rudimentos e o catecismo; na escola oficial, o heróico, animoso e nunca assaz reconhecido esforço dos professores primários. Mas, ao lado, a inspiração adrede escolhida das repartições oficiais (1911, 1912, 1915… ...) e, me recordo, uma festa esquisita: o desfile intencional dos miúdos, em fato domingueiro e pendões coloridos, para a plantação simbólica da árvore («Ó Escolas, semeai»…....; no fundo, isto, era uma substituição, um propósito de afastamento......). Àparte o brio familiar na preparação da comunhão solene, nunca, nunca mais, nas aulas do Estado, se ouviu falar em Cristo e na sua Eucaristia. Nunca mais. A minha geração ficou, oficialmente, com fome do Céu. A árvore que nós plantámos secou, como não podia deixar de ser; faltou-lhe o outro orvalho, o que vem de cima. Já passei no sítio várias vezes; nem rasto lhe topei, sequer da cova.

– Do período universitário não quero agora dizer muita coisa: viemos por aí acima, como já o escrevi algures, aos baldões, na crista das ondas, sem leme, misturando a ciência com quantas desorientações ético-cívicas os profetas da ocasião nos propinavam. A Faculdade cumpria nobremente o seu programa, mas a cidade na qual nos mergulharam enovelava-nos nas suas atraentes carícias; e, ao lado, salpicando os nossos desencontrados anseios, uma turbulência pública (1921-1927), sobre a qual ressoava, todas as semanas, ido mesmo daqui, de Aveiro, o violento mas talvez necessário, injusto mas porventura oportuno, pregão panfletário: «somos um país de burros, somos um país perdido». A minha geração, civicamente, foi criada no pessimismo, quase sem esperança.

No meio destes períodos, verdadeiro arco-botante, o Liceu, e, particularmente, o «meu Liceu».


A mesa da sessão solene durante a fala do Reitor.

Arco-botante, digo-o com certa intenção, porque a imagem me serve para definir, na minha experiência, o significado da / 74 / função liceal que recebe a terra mole e virgem, sobre a qual passou o primeiro arado, e a vai entregar, gradada, à especialização onde se afeiçoa: um tramo do arco cimentado no alicerce submerso e outro encastoado na parede da nave; por mais viva que seja a rosácea e mais belos os ornatos, se estes tramos exteriores, um, outro e mais outro – as disciplinas dos programas e os mestres das disciplinas –, se estes arcos não estiverem harmónicos, bem lançados, seguros e, se puder ser, elegantes, todo o edifício fica desequilibrado, não airoso, e sujeito a fendas. O tempo liceal não é já o alicerce e não tem ainda propósitos de abóbada; mas é a parede mestra, solidez, perímetro no chão, o apoio e a segurança de estruturas mais altas. O que vier em seguida prende-se ou assenta nela – e fica na vida.

Convém, é justo, recordar este tempo e bendizê-lo, principalmente quando, como no caso de agora, cem anos de silencioso, meritório e abnegado serviço lhe dão jus a merecer sem reservas uma gratidão sem limites.

O MEU LICEU: 1914-1921

Pois recebi nesta magnífica casa de ensino, além do mais, uma especial lição que procurarei delinear num rapidíssimo esboço.

Duos assinaturas simbólicas: 1.ª classe, 1.ª turma. (Estou a ouvir a sineta, ali ao dobrar da escada... e a ver Zé Pardal, alto, esguio, tão esguio e tão alto como a vara do badalo: uma, duas… nove horas na «torre da Cadeia» e logo, logo, a sineta a dobrar; primeira classe, primeira turma...) Aula de Português: leia; divida as orações; os seus significados? Sente-se. No caderno escolar, modelo n.º 1, aluno n.º 39, assinado: o director de classe (a imagem viva de uma missão de disciplina!) – R. Soares.

7.ª classe, Curso Complementar de Ciências, aluno n.º 8; o director de classe...... Eu digo já quem era.

Precisamente ao redor do meu quinto ano escolar (1918-1919) ia acabar nesta casa uma nobre teoria de professores com seus especiais processos pedagógicos. De cada um e de todos figuro hoje uma altíssima imagem de respeito: a honradez pessoal, a direitura cívica, a equilibrada paternidade intelectual, o amor ao seu liceu, a transmissão dadivosa dos conhecimentos, a obediência à lei. Não importam pormenores, não importam / 75 / vistos agora os feitios pessoais, importa que os alunos ficaram com esta legenda: gente honrada e competente, cumpridora, desinteressada e senhora de um seguro tino no peneirar das aptidões e benevolente no final de contas (o Dr. Eduardo Silva, o Dr. Elias (!), o senhor padre Vieira, o Dr. Álvaro de Moura... Vós todos, os de então, vós todos lembrais-vos? Do you remember? – o Dr. Ferreira da Cunha…) – e como traço de união (o Dr. Ferreira Neves diria hífen...), entre uma época pedagógica que se ia e outra que aí vinha, verdadeiro símbolo de um momento nacional inquieto e não menos exemplo de elegância mental, o Dr. Brito Guimarães (gravata branca, impecavelmente branca, de fustão; um ar airoso, transigente, vagamente «físico», «quimicamente» puro, e compreensivo, um tudo nada alheio...): a política enovelando o professor e o professor debatendo-se na impossibilidade ambiencial da política de ocasião.

Entretanto, um novo ciclo de actividade, uma docência fresca se vinha desenhando e veio a marcar com segurança uma época própria no liceu verdadeiramente renovado: docência recém-vinda, ainda indecisa na actuação (um após outro – todos os conhecemos, são eles), não responsável na orientação geral vigorante, mas já varonil; peada ainda pelas circunstâncias, mas já ansiosa; disciplinada, mas não tímida. Não hesito em dizer: os professores que vieram para aqui mais recentemente, para o Liceu de José Estêvão, vieram actuar num estabelecimento de ensino que essa gente de 1917, 18, 19, 20, preparou com o suor do seu rosto, com a dádiva do seu entusiasmo e com a oferenda do seu saber. A pedagogia em Aveiro iniciava um novo ciclo nas laudas da história liceal com projecção muito para longe dos muros do edifício: revistas de cultura, ciclos de conferências, congressos pedagógicos, teatro didáctico, etc.

Boiam-me na memória vagas reminiscências... O Latim do quinto ano, por exemplo, no texto dos numerais: Homini sunt duo oculi, duae aures, unum os. Anno septimo decimo secundi belli Punici Carthaginienses Hannibalem ex Italia revocaverunt, ut cum Scipione in Africa dimicaret. Nemo potest duobos servire.

E aquele Aníbal das guerras púnicas que derrota vários generais romanos, e logo o trecho heróico: Conflixerat apud Rhodanum cum P. Cornelio Scipione consule eumque pepulerat (sobretudo, sobretudo, eumque…  eumque pepulerat).

Esta magnífica disciplina do espírito que é o Latim, admirável regra de estudo que muito, muitíssimo, lamento hoje não / 76 / ter sabido cultivar, ficou-me, entretanto, desde então misturado a outros conhecimentos mais próximos:

Teorema de Thales: Duas rectas cortadas por um feixe de paralelas são divididas em segmentos proporcionais.

Aritmética racional – um número primo que divide um produto divide pelo menos um dos factores.

E na física: Dine é a força capaz de imprimir à massa de um grama a aceleração de um centímetro por segundo2. – Erg: o trabalho feito pela unidade de força, quando o seu ponto de aplicação percorre a unidade de comprimento na própria direcção da força.

Em química, a síntese do ácido sulfúrico em três fases sucessivas: queimando o enxofre (S+O2 = SO2); oxidando o anidrido sulfuroso em presença da esponja de platina (SO2 + O = SO3); combinando o anidrido com a água (SO5+ OH2 = SO4H2).

Não sei se isto é ainda assim. Não sei. Fui copiar esta sabedoria aos meus apontamentos de então e achei-lhe um precioso sabor! E que magníficas «chichadelas» a entrelinhar a sabedoria impressa.

*

Entretanto, uma lembrança riscou fundo na minha memória. Com essa docência nova, novos homens, e foi uma pacífica revolução. Nesta sala, nesta biblioteca, uma acometida geral: nas férias, esvaziaram-se as estantes, remexeram-se os alfarrábios, bufou-se forte no pó de muitos anos, ordenaram-se volumes, salvaram-se espécies, e a cultura, que parecia adormecida, acordou, invadiu as aulas e falou alto. A mim, e a muitos outros, a biblioteca ensinou então a beleza da literatura, o encanto das convivências intelectuais, e o bibliotecário, por trás dos seus óculos analíticos e ensimesmados, apontou, escolheu, deu o conselho... Quando um dia, muito mais tarde, por aqui repassei, que prazer em me reencontrar com o Bobo de Herculano, em sorrir com o Eça de Tormes, em cumprimentar a Morgadinha, reverenciar o Alfageme, debicar no Campo de Flores e repetir baixinho aquela «Saudade, gosto amargo de infelizes...); só hoje, repensando esta lição, compreendo bem por que é atraente a História de S. Domingos, como deleita o Amador Arrais, como subjuga e prende o sermonário do Vieira...


A tuna, no começo do sarau

Biblioteca e bibliotecário fundiram-se e transfundiram-se. Lá está, no meu caderno escolar, a assinatura que tal revolução / 78 / orientou: o director de classe, José Pereira Tavares, o nosso

magnífico Reitor.

Também aqui ao lado e ali em frente, foi outro fervet-opus, uma acometida geral, verdadeira renovação, comandada e realizada por um dinâmico professor recém-chegado: pássaros, minerais, mapas, esqueletos, desenhos, microscópios, tudo andou numa fona; os bichos, as pedras, os empregados e até eu, nas férias, a limpar as penas da gaivota, a endireitar o olho do peixe embalsamado, a dispor as borboletas, a orientar o quartzo, a classificar a pirite (brilho metálico, cor amarelada, dureza 6, risca preta; tenaz, fractura conchóide, fusível ao maçarico, desenvolvendo fumos sufocantes de anidrido sulfuroso: ferro piritoso, S2Fe)!!! – e surgiram os verdadeiros trabalhos práticos e, até, os alunos deste liceu foram, por aí fora, a pé, com o seu professor, à mata da Gafanha, ao jardim de Esgueira, e mais longe de comboio, a Eirol, a comparar terrenos, a ver erosões, colher calhaus, observar correntes de água, estudar as dunas, espreitar raízes... Sei lá, por essas ruas da cidade, de noite, fugitivamente, a caçar gatos, de manhã no mercado a comprar pombos (Columba livia, L. – pois então!) ... Um liceu renovado! E em seguida, no laboratório, a sério, muito a sério:

A rana esculenta é um vertebrado da classe dos batráquios, ordem dos anuros, etc. – e o respectivo desenho a nanquim;

O golfão branco é uma planta aquática, com folhas largas, flutuantes, 4-6 sépalas, pétalas numerosas: linfeáceas.

Encontro isto tudo e muito mais no meu caderno de trabalhos práticos de ciências e encontro em cada uma das suas páginas, a rubricar-me a memória, um nome que pronuncio respeitosamente, o mesmo nome que hoje em cátedra diferenciada anda a ensinar, segura e metodicamente, toda a cidade, a rubricar-lhe ruas e praças, a exemplificar na acção um método pedagógico, a ensinar no final de contas: Álvaro Sampaio, director de classe, presidente do Município.

Posso agora resumir:

Ao terminar o meu quinto ano, ficara de efectivo a memória do Português e do Latim: os pensamentos, as acções heróicas, a beleza, um anúncio de Arte, os homens no seu trânsito e, por tudo, um estímulo para o intemporal.

Ao terminar o Curso Complementar de Ciências, sobrenadava uma espécie de espírito de concretização: as coisas e a sua disciplina, a observação metódica e suas alegrias, a vida, suas / 79 / modalidades e suas regras, e, por tudo, uma imagem da Criação e um anúncio do Criador.

Desta mistura de Ciências e Letras herdei a mais grata mensagem deste Liceu Central. Cada Mestre, então, puxando a brasa para a sua sardinha, e o noviço, no meio, de ambas as brasas colhendo o calor e a luz, nesta atraência do saber e do especular, do rigoroso e do fluídico, do corpo e do espírito. Esta imagem me acompanhou pela Universidade fora e, devo dizer, me tem estado sempre presente na vida.

É ocasião de a agradecer ao «meu Liceu».

*

Revertendo à minha impressão, olhando-me lá para trás, acode-me sempre a lembrança desta magnífica casa de ensino, onde, mais do que os conhecimentos – transitórios e mudáveis expressões do saber – avulta na minha presença juvenil a alta lição de direitura Cívica, de exacto cumprimento dos deveres pedagógicos, que todos e cada qual devemos a todos e a cada qual dos nossos Mestres.

Vem aí um edifício novo, rasgado, soalheirento, aberto: livros, aparelhos, programas, outros professores... os mesmos rapazes, os mesmos de sempre, a tentarem afeiçoar na sua inquietude a mesma experiência...

Pois bem: olhando-me agora lá para o futuro, na responsabilidade. da toga académica que me cinge os rins; olhando-me lá para amanhã, encontro sempre a preceder a Universidade esta hora séria que é o tempo liceal. Magnífico tempo, durante o qual se forjam vontades e premeiam aptidões; tempo em que se risca fundo o risco definidor.

Um programa estranho, bastante cinzento, se adensa na linha do horizonte, com o propósito de anulação de todos os valores ético-morais que foram a glória e o sacrifício de, pelo menos, mil novecentos e cinquenta e uma gerações!

Os métodos de dissolução alcançaram já, capciosos, aparentemente anódinos, mas ricos de vitríolo, estas frescas almas que são os vossos alunos, senhores professores do liceu; e já a vossa missão se desdobra, alarga e enobrece. Não sois hoje tão somente os transmissores de conhecimentos; sois, sem dúvida, as vigilantes sentinelas e os possíveis defensores de valores muito mais altos. Não só a inteligência dos vossos alunos vos anda entregue. Até vos compete a defesa das suas pessoas.

Já não bastam as meras informações que se colhem nas salas de aula: frequência, disciplina, aproveitamento... Não basta isso. O novo liceu que aí vem multiplica-se pelas ruas / 80 / do burgo, surpreende as revistas ilustradas, entra nos campos de jogos, senta-se com os rapazes nos cinemas; vigia os costumes, ampara os corações.

Daqui a cem anos, lá no outro edifício, ouvireis, com certeza, os agradecimentos das mães de Portugal.

*

Senhor Reitor – na «nota» que houver de dar-me por este exercício que V. Ex.ª ordenou, peço-lhe seja, uma vez mais, benevolente; e no próximo Conselho Escolar diga aos «outros» que deixem lá passar, por esta vez, o rapazinho, ao menos pela boa intenção que teve na má prova que acaba de dar.

 

 

Página anterior

Índice de conteúdos Página seguinte

70-80