A chamada Serra da Freita, parte integrante do
maciço da Gralheira, a que em livros de geografia e geologia se tem
aplicado também o nome genérico de serra da Arada dispõe-se com a
orientação Noroeste-Sudeste entre as ramificações do Arada
(afluente do Douro) e da Ribeira de Teixeira (afluente do Vouga,
apresentando as maiores altitudes (pico da Freita ou de S.
Pedro Velho com 1085 metros) da secção ocidental do maciço. É
essencialmente constituída por terrenos graníticos, pondo-se em contacto
com os xistos do pré-câmbrico que, em dois prolongamentos laterais, se
estendem desde as imediações do Porto até quase ao coração da Beira
Central. Na zona de contacto das duas rochas aparecem por vezes
micaxistos luzentes, acompanhados de cristais de estaurolito em grande
profusão, como também sucede no alto da serra da Arada (1057 metros).
Na serra da Freita, a massa granítica, de difícil
desagregação, atinge proporções extraordinárias, dando origem ao
aparecimento de grandes superfícies escalvadas, a que poderiam
aplicar-se os conhecidos versos de Junqueiro:
«Terra ingrata onde a urze a custo desabrocha.
bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.»
Entre Giestoso e Albergaria das Cabras, na Costa da
Castanheira, e perto de Arões, no seio do granito aparecem ainda
possantes assentadas
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quartzito, provavelmente silúrico. Na Costa da Castanheira, a mesma
rocha apresenta, em pontos isolados, mas em grande quantidade,
aglomerações lenticulares de mica escura com o carácter de verdadeiros
micaxistos, reluzindo ao sol, como um mosaico de efeito surpreendente.
Estas aglomerações, por vezes com a forma característica e dimensões
aproximadas de ovos estrelados, separam-se com facilidade da rocha
envolvente, devido à sua constante desagregação pelos agentes
atmosféricos. É o fenómeno das "pedras que parem pedras" da linguagem
popular.
A transição da zona granítica para a zona xistosa, em
virtude do diferente grau de dureza das duas rochas que as constituem,
dá origem também com frequência a descidas de nível muito acentuadas,
produzindo-se quedas de água mais ou menos importantes. Está neste caso
a imponente, mas tão pouco conhecida Frecha de Misarela, catarata
do rio Caima junto da Albergaria das Cabras, não longe das nascentes do
mesmo rio.
Por três pontos se pode fazer a excursão, utilizando-se
em todos esses três percursos a linha férrea do Vale do Vouga.
1.) – Vindo de Viseu, o melhor local para iniciar a
viagem é S. Pedro do Sul, seguindo o tradicional caminho de Lafões ao
Porto pelo alto da serra e pernoitando em Manhouce.
2.) – De Aveiro, pode descer-se na estação de Paradela
(pág. 620), seguindo, por Sever do Vouga, até à Senhora da Saúde de
Gestoso, donde, com guia, pode continuar em direcção à Costa da
Castanheira e a Mizarela.
3.) – Vindo de Espinho, pode aproveitar em Oliveira de
Azeméis a estrada até à Farrapa (pág. 611), seguindo depois pelo antigo
caminho de Lafões ao Porto, até Albergaria das Cabras.
Manhouce,
no vale da Ribeira de Teixeira, afluente da margem direita do Vouga,
pode considerar-se um verdadeiro oásis de montanha, tal o
conjunto de características distintas que apresenta, tanto pela cultura
variada e rica do seu solo (cultura em socalcos), em que o milho tem um
lugar primacial, como pelos costumes próprios e formas de vestuário da
sua população. A criação de gado bovino é das formas de ocupação mais
importantes, o que dá lugar a uma larga produção de manteiga. O gado
caprino está também muito generalizado, sendo fácil encontrar, nas zonas
mais elevadas da serra, rebanhos aduados (guardados em comum
pelos respectivos donos, revezando-se) de muitas centenas de cabeças.
Seguindo o caminho de Manhouce para Noroeste, por Campo,
entramos pelas alturas da povoação de
Abundância
no vasto planalto de Albergaria das Cabras, dominado a Oeste pelo alto
da Freita ou de São Pedro Velho.
Entre Giestoso e Albergaria das Cabras, no local denominado
Junqueira,
onde têm origem as últimas ramificações do Caima, fica a 1000 metros de
altitude uma grande mamoa, já em parte destruída, mas deveras
interessante, pela particularidade de ter servido de resguardo a três
construções megalíticas independentes, uma das quais é uma anta com
galeria voltada a nascente, e vasta câmara sepulcral
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que tem, na parte em que os esteios ficam a descoberto, cerca de 1,5
metro de diâmetro. O excursionista a quem o assunto interessa não deve
descer da serra sem primeiro visitar, em Campo de Arca (Arões) e
Agros de Junqueira (Macieira de Cambra), dois dólmens
interessantíssimos, que ainda se encontram bem conservados (Amorim
Girão, Antiguidades pré-históricas de Lafões, pág. 66).
A povoação de
Albergaria das Cabras,
concelho de Arouca, tira o nome de uma antiga albergaria que ali houve,
e de que ainda há notícia em inscrição lapidar incorporada no muro do
cemitério da localidade. A altas horas da noite, tocava nessa albergaria
uma buzina para guiar os viandantes transviados.
Contrastando com a vida e fertilidade do Vale de Arouca,
que lhe fica a Norte, o sítio é ermo e triste, e a vegetação escassa. A
urze, o tojo e o sargaço são as espécies vegetais dominantes; e apenas
nos vales abrigados, junto das povoações, podemos encontrar a cultura do
milho e centeio, embora muito reduzida.
De Albergaria das Cabras até à povoação da
Mizarela,
perto e a Nordeste da qual fica o despenhadeiro da Frecha de Mizarela,
pequena é a distância; mas será entretanto conveniente levar um guia, se
se pretende descer ao fundo do precipício.
Na *
Frecha
de Mizarela
o vale do Caima, passando do granito para o micaxisto, de desagregação
mais fácil, torna-se rapidamente muito profundo, dando origem a uma
brusca queda de nível. No meio de tão grande desolação, esta queda de 60
metros de altura, onde a água se precipita com violência, não pode
deixar de produzir uma impressão inolvidável. É um sítio duma rude
beleza, «ermo, árido e triste, a mais não poder», na frase de Abel
Botelho.
«Ante ele – continua o autor das Mulheres da Beira
– o espírito humano, de natureza sociável, recua pávido e como que se
arreceia daquela imponente solidão...; para o sul quebra-se abruptamente
o solo num declive quase vertical, eriçado também de penhascos
enegrecidos, pontiagudos e nus; ao fundo da quebrada, despenham-se em
catarata de mais de 60 metros as nascentes do rio Caima, vasto lençol de
água desdobrando-se em catadupas frementes sobre granito, e que,
furiosamente espadanando após a queda, nas múltiplas anfractuosidades
daquela rocha, naquele caleiro estreitíssimo e cerrado, sem que o som do
seu impetuoso cair chegue aos ouvidos do observador do alto, assume um
ar misterioso e fantástico, o que quer que seja de estranho e
sobrenatural. Para além da torrente, um outro contraforte aspérrimo e
fraguento e um outro morro estéril continuam monotonamente o anterior.
Enfezada vegetação de urgueiras, de fetos e de carvalhas borda as
margens profundíssimas do rio, como se, amedrontados, os próprios
vegetais evitassem tão desoladora estância. Enormes nodos circulares de
musgo negro lá estão marcando como anátemas a cor pardacenta
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e uniforme do granito puído pelas águas.
Longas lascas de pedra, verticais e salientes,
destacam-se do terreno aprumado dos montes, cortando-o de alto a baixo,
a parecerem espinhais dorsais,
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descoberto, de gigantescos animais desconhecidos. Uma paisagem, em suma,
soturna, temerosa e alpestre como poucas, digna verdadeiramente de ser
admirada.»
De ali a torrente segue estrangulada entre vertentes
abruptas sobre um leito de rochedos; num percurso de 4 km, a diferença
de nível é de cerca de 600 metros (desnível de 15%). Se, em Albergaria
das Cabras, em vez de tomarmos para Nordeste, em direcção às nascentes
do Caima e à Frecha de Mizarela, subirmos a Norte-Noroeste, alcançaremos
o ponto culminante da serra,
S.
Pedro-o-Velho
(1085 metros), donde se desfrutará o mais extenso * panorama
de entre Douro e Vouga. De um lado, fica a serra da Estrela, a contornar
o horizonte distante; mais perto de nós, o Caramulo e a serra das
Talhadas; mais perto ainda, as ramificações do maciço: as serras de
Sever, Mocama e Arestal. Olhando mais para Oeste, é toda a Beira Litoral
que nos fica aos pés, num deslumbramento, debruada pela extensa faixa de
areias da zona costeira. Albergaria-a-Velha, S. João da Madeira,
Oliveira de Azeméis e Vila da Feira estendem-se graciosamente na
planície, onde por vezes a espiral de fumo duma fábrica ou locomotiva
põe acentos de vida no quadro encantador. Para Noroeste, são os
derradeiros contrafortes do conjunto – serras de Romariz e de Santo
Ovídio – que se estendem na direcção do Porto, ao mesmo tempo que
diminuem de altitude.
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(1)
– Por AMORIM GIRÃO.
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