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De Aveiro a Espinho (1)

De Aveiro a Espinho (44,3 km Norte, por caminho de ferro, Linha do Norte, 40 minutos nos rápidos, 1,30 h. nos transvias).

De preferência, tomar lugar à esquerda.

A Avenida Central (de 1 km de comprimento) liga o núcleo da cidade à estação do caminho de ferro, soalheira construção, estilo português, com painéis de azulejos azuis e brancos. (vistas e costumes da região).

  A linha continua a ser dupla, com 1,67 m de bitola. A inauguração da circulação dos comboios, entre Estarreja e Taveiro, efectuou-se em 10 de Abril de 1864. Traçado sempre plano e com rectas extensas. Uma das dificuldades da realização do troço de linha que margina as terras planas e alagadiças que orlam a Ria, foi a construção do viaduto sobre o valeiro de Esgueira. Essa obra requereu demorados estudos de alguns engenheiros portugueses e ingleses, por via da profundidade das aluviões, acusada pelas sondagens feitas nos pontos escolhidos para receber os suportes dos tramos. Descobriram-se então no meio das vasas alguns esqueletos de embarcações de estrutura romana (pág. 543).

A estação de Aveiro está a 272,8 km de Lisboa.

A linha, mal perde o contacto da cidade, metendo-se pelos campos de milho ou de relva, deixando ver, num relance, do lado do poente, um trecho das salinas e do nascente as hortas e moradias suburbanas da Esgueira. A seguir passa-se o viaduto metálico de Esgueira (de oito tramos, com 246 metros de comprimento). Um apertado e longo esteiro, ainda navegável para as barcas da laguna (que se vêem em baixo, junto dum pequeno cais, a carregar adobes), é o último resíduo de ramificação marinha que remotamente teria aqui existido (pág. 500). Os horizontes da ria abrem-se para logo se fecharem. Sobrevém um trecho rústico em que os tapetes de verdura (centeio, prados, tiras de flores roxas) alternam com alguns pinhais. A pouca distância, em sentido paralelo, pelo meio das bouças que se divisam à direita, corre a estrada de Angeja. Ao longe, à direita, o Caramulo.

– 6 km. Cacia, apeadeiro (à esquerda). A povoação, antiga vila, fica a 1 km à direita, próxima da margem esquerda do Vouga, no meio de verdes milharais, pastagens e pequenos vinhedos (pág. 543). Presume-se que neste ponto foi a primitiva embocadura do Vouga, no começo da formação do cordão litoral da ria (pág. 543).

Contempla-se, ao longe, as barreiras das montanhas da Arada, Arestal e S. Pedro de Arouca e a meia distância as elevações de Oliveira de Azeméis, Pinheiro / 562 / da Bemposta e Angeja, formando, no conjunto, um formoso quadro, de vastas proporções. A magnífica ponte de Angeja (pág. 543), de construção recente, lançada a montante sobre o Vouga, descobre-se por momentos entre os renques dos salgueiros que bordam os emaranhados canais. Em uma airosa colina, do mesmo lado, está, voltada para a largueza da ria, a povoação de Fermelã (pág. 544). Ao pôr-do-sol, as suas vidraças fazem sinais para os lados do mar.

Braços de água da laguna dispersam-se e cruzam-se por toda a planície. É um labirinto de serventias e atalhos líquidos. Na borda dos sapais, os bezerros marinhões olham com curiosidade o comboio, enquanto as vacas, de grandes tetas pendentes, de raça flamenga, que já o viram muitas vezes, retouçam sem erguer a cabeça.

A linha, por vezes ladeada de água de um lado e outro, galga frequentes pontões.

– 10,5 km Canelas, apeadeiro (direita). Ao longe, ainda, a serra de Arestal (ou da Senhora da Saúde), Cinzenta e de cumeada macia. Ao longo da linha, dispersando-se e cruzando-se em todas as direcções, os incontáveis esteiros. Arrozais extensos. Águas dormentes reflectem / 563 / a profundidade azul ou a cinza vaporosa do céu. Do lado Norte da orla da planície, uma fiada de casario branco alonga-se até perder de vista na indecisa linha de contacto da água da ria com os areais da Torreira.

– 12,4 km. Salreu, apeadeiro (esquerda), a 1,4 km da povoação, sobre uma pequena eminência, a Senhora do Monte (pág. 545). Vista encantadora sobre os arrozais. Por ocasião da lavoura, que é tremenda, no começo de Março, quando os homens e as mulheres andam, como o gado, atolados, a revolver lodaçais, as leiras dos arrozais são negras e feias; três meses depois, parecem peças de veludo, novas em folha, desdobradas ao sol.

Antes da formação do cordão litoral da ria, os campos que se espraiam para Noroeste de Salreu eram salinas de produção abundante. A própria palavra Salreu proviria da locução sal-a-reu. Isto é, sal-a-fio ou com fartura (Rocha e Cunha). Os campos de cultura de arroz são defendidos da entrada das águas salobras por meio de pequenos taludes de torrões. Quando por acidente ou descuido essa água os rompe ou transpõe fica inutilizada a colheita. Importa não desconhecer que a inundação destes campos seria inevitável em cada preia-mar se o nível das águas da ria acompanhasse fielmente o do oceano. A largura da Barra, como já se disse (pág. 529) não permite, porém, esse nivelamento, deixando a superfície da laguna cerca de um metro mais baixa que a do mar, no colo da preia-mar. Por essa circunstância, pode dizer-se com reforçada razão, que a região rural e rasa, imediatamente vizinha da ria, tem acentuadas semelhanças com os polders dos Países Baixos. Somente, aqui, ao contrário do que se dá na Holanda, os diques foram obras do próprio mar. / 564 /

– 14,6 km. Estarreja, estação (direita) (pág. 545). Vila situada num montículo, de face voltada para as bandas da ria. Entre o seu casario e o canal da Murtosa, desdobra-se, a perder de vista, uma lindíssima planície. Ao longe, o farol da Barra. Por vezes vê-se no meio dessa planície húmida e verde, que atinge o seu cume de pureza de cor no fim da Primavera, sob a luz rosada e quente de Junho, uma ou duas velas brancas, a meia distância, num canal invisível, dando a ilusão de serem barcos a passear, por engano, sobre os campos. Junto da estação do caminho de ferro termina um esteiro (o chamado Esteiro Velho da Póvoa), com um movimentado cais pejado de bateiras, barcos mercantéis e moliceiros.

O rio Antuã desembocava em outros tempos neste ponto, nas águas marinhas da laguna em formação; hoje desagua bastante mais a Sudoeste, na cale do Chegado (pág. 501).

[No ano da inauguração do caminho de ferro entre Estarreja e Taveiro (1864) os estudantes de Coimbra abandonaram a cidade, como protesto contra a recusa do perdão de acto do ministério do Duque de Loulé que foi queimado em efígie, no meio de grande burburinho, à Porta Férrea. Um grupo de 600 grevistas fez viagem, por caminho de ferro, até Estarreja e aqui esperou os restantes. Constituiu-se uma espécie de batalhão académico e toda a multidão escolar, capitaneada, por sinal, por Antero de Quental, então quintanista de Direito, dirigiu-se para o Porto (pág. 268). Era a chamada Rolinada.]

Depois de Estarreja, despedem-se os olhos da campina com os seus inúmeros canais e pequenos compartimentos verdes. À esquerda um grupo de pinheiros mansos. A linha embrenha-se em longas rectas, através dum extenso pinheiral, de solo arenoso, vestígio presumível dum primeiro cordão de areias marítimas acumulado na primeira fase da formação da ria (pág. 526). Passada essa légua monótona, desdobram-se de um lado e outro fecundos campos, com muitos casais de lavoura.

– 21 km. Avanca, estação (direita) (pág. 551). O edifício da estação, de cantaria, de empenas bem recortadas, decorado com painéis de azulejos azuis e brancos, tem um ar mais de vivenda que de casa de despachos.

A povoação fica a pequena distância, à direita, com a sua espaçosa igreja matriz, de dois campanários, no meio de rendosas terras de cultivo e pastagens. É um importante centro de produção de lacticínios (pág. 551). Os lavradores jungem os bois com vistosas cangas, não menos pitorescamente recortadas que as do fazendeiro do Minho. As mulheres, mesmo no meio dos campos, usam sobre o lenço da cabeça o minúsculo / 565 / chapéu de fita de veludo. Sente-se a fartura da terra na corpulência dos gados que passam nos caminhos, nos espigueiros, nas medas que se erguem à beira dos alpendres e nos bichos de andar pausado que nas tardes calmosas, no meio dos milhos altos, movem o engenho de tirar água, à sombra dum telheiro ou videira americana.

Barreiras densas de arvoredo restringem constantemente os horizontes e agasalham das vergastadas vindas do mar as várzeas gordas, cheias de milho. Ao lado dos casebres encardidos do lavrador, há sempre a frescura de uma copa de laranjeira, a ligeireza dum pináculo de restolho, a nota íntima dum alpendre com um caixote de cravos ou uma latadazita sobre um pequeno lavadouro.

– 25,2 Km Válega, apeadeiro (esquerda) (pág. 553). Freguesia rural bastante populosa. Entre a linha férrea e o pinhal recorta-se uma várzea, regada por quatro velhas noras.

A ria envia até à orla oposta deste maciço de arvoredo um dos seus esteiros, derivado do braço de Ovar. É acessível por uma estrada municipal (3 Km) e tem um cais (Puchadouro de Válega) utilizado no embarque de caulino destinado à fábrica de porcelana da Vista / 566 / Alegre (pág. 534). O general inglês Hill efectuou aqui, em 10 de Maio de 1803, o desembarque de uma força ligeira de 1500 homens com o objectivo (não conseguido) de cercar as tropas francesas de Soult da linha do Vouga, nesse mesmo dia atacadas pelas avançadas de Wellesley.

Prossegue o torrão fértil, inteiramente limpo de rochas. Outra veiga, ainda mais ampla, à direita, com novas cortinas de pinheiral à volta. Atmosfera saudável. Água abundante. As mulheres, quase sempre descalças mas com o inseparável chapelete na cabeça, trabalham com rijeza, não menos que os homens, na lavoura, na sacha, nas idas à feira. Levantam-se de noite e andam léguas carregadas de hortaliças, leite e frutas. São estas cordas de hortedos e milheirais até Vila Nova de Gaia que alimentam metade do Porto.

Passagem de nível sobre a E.N. n.º 28-2.ª.

– 27,9 km. Ovar, estação (esquerda) (pág. 553).

É a terra onde viveu algum tempo Júlio Dinis. As ramificações mais extensas da ria de Aveiro atingem as cercanias da vila. A do Carregal termina junto da estrada que conduz à praia do Furadouro (pág. 555). (Excursões de barco).

A linha férrea, em seguida, aproxima-se sensivelmente da linha da costa. Ao Norte da vila, notam-se já as ondulações das dunas embargadas pela arborização na borda dos terrenos de cultivo. À esquerda no limiar dum trecho bastante monótono de pinhal, depois da segunda passagem de nível, vê-se a estrada que conduz a Espinho. Tanto a estrada como o caminho-de-ferro cortam a direito o extenso arvoredo, que chega a fatigar. Mas não há monotonia sem fim: depois do cardume uniforme dos pequenos pinheiros marítimos, que se alimentam da areia seca e desfilam ao longo de alguns horizontes de meia dúzia de quilómetros, vem de novo a água, o terreno pastoso e as culturas várias. Em alguns sítios a terra é negra como hulha, quando está revolvida de fresco pelas charruas.

– 34,8 km. Carvalheira-Maceda, apeadeiro (esquerda). É o apeadeiro que serve os romeiros da Senhora do Desterro. Bosques enormes e espessos continuam a emoldurar os campos. Pontão sobre uma ribeira afluente da lagoa próxima de Esmoriz.   

– 36,6 km. Cortegaça, apeadeiro (direita) (pág. 556). A povoação fica à direita, a meia encosta, com a sua igreja matriz, de dois campanários rematados em pirâmide, fachada inteiramente revestida de azulejos. Pinhais contínuos, como panos verdes de muralhas, sempre do lado do / 567 / mar. Em dado momento a barreira verde abre-se, para deixar ver uma interessante toalha de água. É a lagoa de

– 39,1 km. Esmoriz, apeadeiro (direito) (pág. 556).

Paisagem de sonho, em certos momentos de crepúsculo. Por uma fenda estreita (a barrinha) a bacia lacustre comunica com o mar, cuja vastidão azul começa a espraiar-se dois dedos acima da faixa do areal.

A duna situada ao sul da barrinha é ainda arborizada; a do Norte é já deserta. Nesta última deu-se um dramático desastre de aviação em 1941, em que pereceram o coronel Ramos de Almeida e o filho, ambos aviadores.

– 40,5 km. Paramos, apeadeiro (direita).

Um ramal de estrada liga o apeadeiro ao areal, onde nos meses da safra se faz movimentada e curiosa pesca de arrasto. «Em certos dias iça-se o camaroeiro e a este sinal esperado no interior das terras começam a aparecer pelos caminhos empapados, dirigindo-se para o mar, as pesadas juntas de bois levados à soga pelos moços. O lavrador associa-se ao homem do mar. Nesses dias larga o arado e toma parte na companha, ajudando a alar a grande rede que se usa para estas bandas.» (Raul Brandão).

– 42,2 km. Silvalde, apeadeiro (direita). O pinhal afasta-se. Carreira de tiro, militar. Campo de golfe. Campo de aviação, com pequenos hangars. A superfície macia e prateada da lagoa dá um encanto particular a este quadro amplo, no qual o oceano põe, no fundo, o nimbo azul glauco da sua indefinida vastidão e beleza. Já se vê o casario branco de

– 44,3 km. Espinho, estação (esquerda) (ver voI. IV).

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(1) – No 3.º vol. do Guia, do qual transcrevemos apenas o que diz respeito ao distrito de Aveiro, este texto em que se descreve pormenorizadamente a viagem de comboio entre Aveiro e Espinho é a continuação do relato da viagem por caminho de ferro, que ficou inesperadamente interrompida no início da página 469, sem qualquer indicação ao leitor de que a sua continuação se encontra na página 561.
 

 

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