Raul Brandão
– o grande místico da paisagem –, anotou, no seu característico estilo,
nas páginas que a seguir se transcrevem, uma demorada deambulação desde
esse ancoradouro meridional da ria até ao canal de S. Jacinto:
«8 horas da manhã. Areão. Um charco. Tomo um barco
moliceiro. A chuva em poeira cai sobre os campos verdes da Gafanha. A
paisagem molhada escorre água e a ria lisa como um espelho reflecte o
céu baço. Mulheres vestidas de escuro, com grandes molhos de erva à
cabeça, saem dos agueiros como rãs, e uma cachopa atravessa a ria com as
saias pelas coxas, a pingar. Os longes esfumados perdem-se na bruma. A
bem dizer, não chove: o céu derrete-se. Silêncio. As terras baixas,
atravessadas de regos e de valas onde a água repousa e apodrece,
embebem-se ainda mais desta
/ 520 /
água peneirada que não cessa de cair. Ria cinzenta, céu cinzento, campos
alagadiços e uma luz molhada que atravessa as nuvens pegajosas e envolve
os seres e as coisas no mesmo tom casto e uniforme. As tintas
desvanecem-se. Silêncio húmido neste paraíso da erva, coberta de um pó
fino que goteja. Largamos. Canais poços, água imóvel.
Passo ao cabeço da Capela, passo ao Forte Velho
(1)
– antiga barra. A água escorregadia fecha-se logo sob o barco. Olho para
os fundos, mas no fundo emborralhado só distingo até ArneIas névoas
sobrepostas, donde irrompe um único fio indistinto – a Vagueira. Ao pé
de mim, ao pé da chapa polida da água, um moinho bate as asas e passa...
Logo um canal estreito entre terras estacadas para não esboroarem, a
Carreira. Outro charco mais largo, cor de estanho, e sempre o mesmo
Iodo cultivado, o mesmo tom baço, a mesma cinza caindo pingue-que-pingue
sobre a larga paisagem empapada e cheia de humidade: é o lago da
Labrega, quieto e solitário, num céu que se derrete em água morna.
Um peixe faísca, e toda a superfície se arrepia, para voltar à
imobilidade. Um cabeço com ervas emerge à flor das águas. Às vezes o
barco faz marola, encosta à terra, pega-se no fundo, e os homens de
perna nua empurram-no à vara. Na antiga barca encalha, e para o levarmos
temos de nos meter todos à água. Vagueira, – dois riscos
esbranquiçados muito ao longe – os faróis. A ria alarga.
«Com a manhã, que se adianta, as gotas de chuva
embebem-se de outra luz esbranquiçada. Ganham os tons baços
transparência e uma claridade difusa bóia no céu. Baba-se. A amplidão da
água reflecte já outras tintas. A neblina a todo o momento desmaia, e a
vasta planície vaporizada ilumina-se de uma luz cor de pérola, que
hesita em pousar; os verdes são mais claros, as árvores suspensas no ar
e as casas construídas na água. Além, à esquerda, mostram-me os
palheiros da Costa Nova – mas tudo ainda adormecido na terra, no
silêncio e na água. Uma tainha salta...
«Depois desta série de canais e de charcos estagnados e
polidos, na planície baixinha, feita com Iodo extraído da ria, e com
areias do outro lado, onde os sarraus e os borrelhos piam, sob o céu
empastado e baixo – encontro-me diante de uma amplidão indefinida, onde
a terra e a ria se confundem. É um sonho que se dissolve? Onde acaba a
água e começa a terra? Aquelas velas vêm da barra ou do mistério?... Ao
pé de mim, dois homens arrastam uma chincha num barco estranho. Há-os
com o costado por pintar, há-os todos negros, como grande pescoço
erguido do cisne, no momento em que volta a cabeça para trás, e com um
toque de vermelho no leme... É gente de Murtosa que habita esta bateira.
De dia, em geral, dormem; à noite pescam. A ria dá enguia, pimpão
tainha, solha e robalito. Levam ali dentro uma panela para a caldeirada,
um cesto com batatas, uma esteira para dormir no toldo que armam à proa,
e um saco de malha metido na água, para a enguia e a tainha se
conservarem vivas. Mais distante um velho e um rapaz armaram um
saltadoiro (pág. 503), com a manhosa estendida ao lume de água e
segura com espeques. Por largo lançam outra rede, o cerco, e o
rapaz bate com uma vara no costado do barco. O peixe assusta-se, foge,
depara com a sombra, forma um salto, faísca como um pingo de estanho, e
cai dentro do curral, onde logo se emalha.
«Coloquem estas figuras num fundo discreto, numa luz
delicada num ambiente Indefinido... Aqui o drama é o da humidade. As
névoas têm na ria uma vida extraordinária: cada gota possui uma alma
distinta e irisa-se como uma bola de sabão. De forma que não só as
figuras se harmonizam com os fundos, mas a todo o momento e à minha
vista a paisagem húmida se transforma e muda de aspecto: afasta-se,
prolonga-se, não tem fim nem
/ 521 /
realidade. Ao longe, árvores violetas nascem na água, o horizonte ainda
cinzento teima em fixar-se, mas espumas azuis já estremecem junto a
reflexos verdes. Bois pastam na água, um barco navega no interior das
terras... A ria é mágica e possui uma luz própria que a veste. Vem acolá
uma vela vermelha, que é uma nota inédita neste sonho diluído em água...
É este o momento em que começa a aparecer o azul e que convém anotar.
Dissolvem-se as névoas, mas deixam o ar carregado de humidade, deixam a
luz reflectindo-se em milhares de gotas invisíveis, deixam a atmosfera
impregnada de frescura e de vida. Esta passagem para o azul faz-se
lentamente até o azul dominar de todo. Atenuam-se as neblinas e ficam
ainda farrapos suspensos, derretidos nos agueiros, agarrados à terra e
embrulhados nas ervas. Um grande lanço de água vem até mim em pequenas
ondulações azuis e por camadas sucessivas, como estas manchas que os
pintores acumulam nos quadros com a ajuda de espátula. Junto ao barco, a
água reflecte um azul vivo e fresco como nunca vi. Longe azul desmaiado,
perto azul como tinta. Vejo diante de mim a amplidão azul, num assombro.
Afigura-se-me que vivo num País estranho – amplidão, água e sonho. Pelo
areal os palheiros da Costa Nova, de S. Jacinto e
da Torreira... Que me importa? A vida é navegar na ria, comer da
caldeirada de enguia e tainha, que os homens cozinham à proa,
aproveitando-lhes entre as tripas a marsola para lhe dar mais gosto. E
dormir no barco, abicar aos areais e vogar sempre, sentindo a pancada
das águas, que fogem em tinta cobalto de um lado, em tinta cinzento do
outro. E sair desta amplidão para a descoberta do charco, do canal, da
gota de água, dos sítios escondidos e ignorados. E assistir à
transformação das águas e navegar à vela ao pé das casas e no interior
das casas.
«Distingo um fundo mais roxo – o recorte dos montes. Aqui
a ria, mais larga, aumenta e divide-se, de um lado até Ovar, do outro
até Salreu. E além... Casinhas num reprego da encosta, onde apetece
viver... Mesmo à beira de água e reflectida na água a Murtosa, aureolada
de oiro: algumas casas brancas reluzindo, algumas árvores muito verdes
em contraste e um canalzinho de abrigo para os barcos estranhos, com o
leme estrambólico atravessado por um pau. Aconchego e sol. A fantástica
esquadrilha desdobra-se na água que estremece, mesmo em certos veios que
ficam lisos, de propósito para reflectirem os mastros num sarrabisco até
ao fundo.
……………………………………………………………………………….
«Este lindo barco
(2)
serve para tudo. Vai à pesca e carrega o sal e o moliço pelas terras
dentro. É o meio ideal de transporte entre estas terras ribeirinhas.
Substitui os animais de carga, as diligências feitas, e é o encanto da
ria. Tem não sei quê de ave e de composição de teatro. Anima a paisagem.
Às vezes usa uma vela latina, às vezes duas, a segunda colocada à proa é
mais pequena. Navego à vela pelo interior das terras, e estou em dizer
que é capaz de escorregar por cima das ervas. Por último chega a servir
de casa: tem um cubículo onde se dorme perfeitamente agasalhado. Não
conheço outro mais artístico, mais leve, mais adequado às funções que
exerce e à paisagem que o circunda. Esta manhã, então a ria está cheia
deles, que a cruzam em todos os sentidos, rapando-lhe infatigavelmente o
fundo, tapetado de cabelos verdes. Amontoam-nos, metem-nos na terra ou
secam-nos no areal para o Inverno. Todo o horizonte está cheio de velas.
Saem da cinza e da noite, saem do sol e dos buracos alagadiços, do lodo
e
/ 522 /
das nuvens. Um rapaz ao leme e dois homens em cada barco, com os grandes
ancinhos seguros nas tamancas; vão rapando sempre, arrancando sempre à
ria os seus cabelos finos, que só resistem enquanto verdes. Tira-se o
ancinho cheio de fios a escorrer e mete-se o moliço na caverna. E o
barco segue, levando à proa uma padiola com degraus para o descarregar e
ao lado uma prancha que lhe serve de segundo leme. Mal tocam na água...
Ao longe, outros e outros ainda rapam, fazendo circuitos leves de
andorinha. Rapam as mulheres da lavoura, rapam os homens de perna nua,
metidos na água até à cinta, e acolá anda um bando de cachopinhas a
rapar, sempre a rapar, com as saias ensacadas...
«É neste ponto, depois da barra, que a ria desvanecida se
imaterializa e atinge a perfeição suprema. S. Jacinto das Areias,
pintado de vermelho e envernizado de novo, revê-se no espelho límpido
das águas. Adiante há um pinheiral na duna, pequenino e já misterioso. A
direita, em diferentes gradações de roxo, o vasto acampamento das
salinas, estende-se muito ao longe até à serra. Azul, azul vivo, azul
que a luz trespassa e estremece, azul que não tem limites. Também a
terra se prolonga e o amplo panorama se torna irreal. Aqui a matéria não
existe. As terras alagadas têm tanta transparência como a ria. Distingo árvores, mas as
árvores são traços de cor diluída e nascem da água; adiante riscos de
uma paliçada ou um pedaço de areia desvanecida... O que há é azul a
jorros, uma vasta amplidão indistinta como um sonho, cheia de ar húmido
e envolvida em luz carinhosa. As coisas são tão leves, que a luz as
atravessa... Vogamos. Seis horas, sete horas... Era preciso anotar a todos os momentos a aparência dos seres e das
coisas, que a cada minuto se transformam. O mesmo panorama toma novos
aspectos de sonho translúcido, à medida que a luz esmorece e o barco se
desloca. Às oito horas, estamos de novo perto da barra e o jorro que vem
do mar parece lava fundida. O poente avermelha as areias e acende na
água um rasto de estrelas. Ardem as janelas da Costa Nova e navego numa
solução de sulfato com reflexos sanguíneos. Lá no fundo, incendeiam-se
os borrões violetas das nuvens. Outra vez a amplidão se modifica. A
todos os instantes estremece e muda de cor, e a fantasmagoria aumenta
com os espectros que saem da terra e dos bueiros. São neblinas em
farrapos que ascendem dos fundos. A humidade alapardada entra de novo em
cena e engendra nova vida. Reparo no céu... Como num quadro inverosímil
de Turner, as névoas esgarçadas embebem-se em reflexos vermelhos – cores
delicadas de nácar, interiores de conchas, tons róseos bebidos pelas
gotas de humidade. A ria é uma grande poça onde lady MacBeth lava
sem cessar as mãos há séculos. Mas é no céu que se representa a
verdadeira tragédia; os tons violetas da agonia carregam-se e
condensam-se; as nuvens ensopam-se de tinta mais escura e um grande véu
lilás interpõe-se pouco e pouco entre mim e a paisagem. Todas as
cambiantes vão reflectir-se nas águas, onde bóia ainda o doirado do
poente. Sinto que a tinta que envolve a paisagem morre a muito custo e
que toda esta humidade se quer fartar de luz, transformando-se como numa
mágica em explosões e cores desgrenhadas pelos ares e em cenários
irreais na terra cheia de mistério, até que um único risco de oiro ao
cimo da água oscila, serpenteia, e acaba por desaparecer num último
arabesco...
«Já noite regresso num barco de cagaréus que vão à festa
de S. Tomé, em Mira... Regresso deslumbrado. Tenho a alma a escorrer
tintas estranhas. Estendo-me à popa farto de ilusão, farto de luz e
entorpecido – entre um rancho de raparigas que cantam, e que de quando
em quando erguem a saia, saltam à água desembaraçadas, de perna nua à
mostra, e puxam o barco à sirga nos sequeiros...»
________________________________________
(1)
–
O Forte Velho já não existe. Foi demolido no último quartel do
séc. XVIII.
(2)
– RAUL BRANDÃO refere-se ao moliceiro, que na realidade não é
utilizado como barco de pesca.
|