Acesso à hierarquia superior.

Excursão recomendada

Torreira - Murtosa - Estarreja - Mira

É o passeio mais longo que se pode fazer na ria, partindo de Aveiro. Dá para um dia difícil de esquecer. 

/ 516 / A viagem, como dizem os barqueiros, pode fazer-se «por fora» ou «por dentro». Chama-se viagem «por fora» ao trajecto Cale da Vila (1) – Canal de S. Jacinto – Costa da Torreira e «por dentro» à passagem em que se utiliza o trajecto mais breve da Cale da Veia – Esteiro da Gramata – Braço da Murtosa. Esta última via, na vazante, não é praticável senão para embarcações que exijam diminuta profundidade.

Convém sair de Aveiro depois da meia maré vazante, de modo. a aproveitar-se a enchente por alturas da Torreira, à entrada da ria de Ovar, da qual o braço do Carregal é o prolongamento mais profundo. e extenso. (pág. 501). Os ventos de feição, para a ida são os de Noroeste, Nordeste, Este e Sudeste. Os restantes não convêm, ou porque são contrários ou prenunciadores de mau tempo. Para a volta interessam os ventos de Norte, Noroeste e Nordeste. Desde que o vento seja fresco, mas moderado, a viagem pode reduzir-se, em tempo, a 60% do previsto.

A ria, em certas manhãs, é de indizível beleza.

Em regra, nas primeiras horas está tranquila, sendo a ocasião mais propícia para os passeios. De tarde levanta-se por vezes uma vibração forte que faz ondulação e carneirada. Quando se alcança a costa de S. Jacinto, a superfície das águas da ria adquire encantadoras perspectivas de amplidão. Não há alguém que, ao observá-las, não se sinta pintor. Se a névoa não oculta os montes do oriente, descobre-se, como um friso azulado, o perfil contínuo das serras de Arestal, Talhadas e Caramulo. À entrada do braço de Ovar, do lado de terra, avistam-se as fiadas de casario de Pardelhas e Murtosa e, da banda do oceano, acompanha-nos a costa da Torreira, com a branca ermida votada a S. Paio. Romaria muito pitoresca e concorrida, a 8 de Setembro. Nesse dia a ria cobre-se de centenas de embarcações, todas engalanadas, de velas pandas, cheias de tocatas e ranchos.

A praia da Torreira é muito frequentada na quadra estival por famílias da burguesia da região. (Posto telefónico, casas e palheiros de aluguer). Carreira regular de passagem para a costa fronteira da Béstida (concelho da Murtosa), a 13 Km. da Linha do Norte (estação do caminho de ferro de Estarreja). São dois quilómetros de travessia, de barco, que custam, em transporte colectivo, dois tostões.

O braço setentrional da ria estreita-se insensivelmente. Os barcos à vela encontram daqui para o Norte certos embaraços se o vento está nitidamente do Norte, sendo necessário bolinar em consecutivos ziguezagues, ou, como dizem os práticos, aos bordos. À direita, / 517 / avistam-se os campos fecundos de Bunheiro. Um ou outro moinho de vento faz acudir ainda mais à ideia o lápis de Rembrandt que esta paisagem bem merecia. Há um momento em que o canal parece ir outra vez ampliar-se. É quando se ramifica em diversos canais e esteiros que se entranham nos campos de Avanca, Pardilhó e Ovar Mas logo retoma a aparência fluvial.

Os terrenos da margem ocidental do braço do Carregal, actualmente muito produtivos, como campos de milho e feijão, são antigos areais fertilizados com moliço. Nestes campos faz-se boa caça de codornizes, narcejas, patos bravos, douradas, viúvas e galispos.

Passado o sítio da Cale, relativamente profundo e apertado, entra-se no troço terminal e remansoso do canal.

Quase no extremo Norte do canal do Carregal, vê-se a fábrica de galaIite de Colares Pinto, com um ancoradouro. Relativamente perto, (300 metros ao Norte), passa a estrada que estabelece a ligação entre a vila de Ovar e a praia do Furadouro (pág. 512).

Para a viagem de regresso a Aveiro, em barco à vela, convém sair do Carregal a meio da vazante, de modo a atingir-se a altura da barra no princípio da enchente.

3. À Ponte da Fareja, na foz do Boco (pelo canal de Ílhavo-Vagos, 18 km. em 1,30 a 2 horas de viagem na ida e outro tanto para a volta. Em lancha a gasolina, metade do tempo).

No fim da Cale da Vila passa-se sob a ponte da Gafanha, dobrando para o Sul, tendo dum lado, à direita, a costa baixa e arenosa no mesmo monte e, do lado oposto, sucessivos trechos de marinhas de sal. A uma hora de viagem, avista-se Ílhavo, onde poderíamos desembarcar para fazer uma visita ao seu museu municipal, particularmente interessante pela secção de etnografia marítima (pág. 532). Pouco além da ponte (construída em 1862), de pedra e grés vermelho, que dá passagem de Ílhavo para a Gafanha, desvenda-se à esquerda o grande estabelecimento industrial de porcelana da Vista Alegre, servido por um pequeno cais. A 100 m. do cais há, além da fábrica, uma capela setecentista (monumento nacional), com um grandioso túmulo do bispo de Miranda, rico em escultura (pág. 539).

O passeio redobra de encanto ao prosseguir-se para o Sul. Empoleirada numa árvore, junto do seu ninho enorme, uma cegonha olha, estática, a bela paisagem que lhe é familiar: o canal da ria, os barcos que passam, os pinhais e a estrada que segue lá adiante pela pequena ponte da Água Fria. Passada a ponte, divisa-se ao alto a vilazita rural de Vagos (pág. 540). Barcos / 518 / carregados de moliço dirigem-se para o Sul, para o Boco; outros, vazios, partem para o centro da ria para a apanha do adubo. A ponte de Fareja, junto da qual o ribeiro desemboca no canal da ria, é o desembarcadouro onde os lavradores da Palhaça, de Sosa, e até de Mogofores, vêm comprá-lo. A água que abastece Vagos e passa, entubada, sobre a ponte, vem de cima, da encosta de Salgueiro: daí, de qualquer ponto mais alto, fronteiro a Vagos, poderá colher-se outros aspectos panorâmicos do braço lagunar que nesta formosa baixa cercada de manchas de arvoredo, se suspende, entre juncais (pág. 541).

4. À Murtosa e Estarreja (20 e 25 km. respectivamente, na viagem «por fora», em 3 a 4 horas. Fazendo-se o percurso "por dentro» – Cale da Veia – Esteiro do Gramato – Laranjo – o trajecto leva menos tempo. Para a Murtosa, há carreira de barca todos os dias, às 15 horas, do Canal da Cidade). 

Se se faz esta digressão pela Cale da Veia e Rio Doce (ou seja, pela proximidade da embocadura artificial e moderna do Vouga) ter-se-á uma singular visão da vegetação característica das ínsuas aluvionares que preenchem grandemente a cavidade líquida da ria. De um lado e outro, nas bordas das ilhas e marinhas, crescem com pujança, tufos contínuos de estrume (bajunça, canízia e junco), que atingem um metro de altura e à passagem da brisa ondeiam como trigais.

Foi perante um destes movimentos das ervagens altas da ria que o geólogo da região, Dr. Alberro Souto, julgou encontrar a decifração da narrativa poética de Avienus (por este parece que colhida dum périplo fenício do séc. VI a. C.), segundo a qual na costa ocidental da Ibéria existia uma ilha formada de vegetação marinha, tão sensível e instável na sua base que a simples aproximação duma embarcação se repercutia nos movimentos do seu revestimento.

No entender do autor das Origens da Ria de Aveiro, a ilha à qual Avienus se refere seria precisamente alguma destas da Ria.

Passante a foz do Rio Velho, está-se em frente da costa extremamente populosa de Pardelhas e Murtosa, duas terras de pescadores. Mais para o interior, para Nordeste, abrem-se os extensos campos, cortados de mil esteiros, de Salreu e Estarreja, no Verão cobertos de ricos arrozais.

Os barcos à vela, aproveitando a enchente, vão pela campina fora, até junto da linha do caminho de ferro, aproando ao cais de Estarreja.
 

5. Ao extremo sul do braço de Mira (35 km.)

Deve partir-se de Aveiro (depois da meia maré vazante. Tempo necessário, provável, de ida, 4 horas. A volta deve fazer-se no colo da preia-mar e esperar na Costa Nova o começo da enchente. À ida, / 519 / depois da Cale da Vila, contorna-se a Gafanha, penetrando nas águas da Costa Nova pelo esteiro rectilíneo e artificial de Oudinot ou pelo corredor do Forte da Barra. Para esta última passagem convém levar barqueiro experimentado, porque as águas da vazante atingem bastante velocidade na Ponte do Paredão e podem arrastar um inexperiente para o Canal da Barra. Por mais forte motivo, de modo algum deve utilizar-se, no trânsito do canal de S. Jacinto para o braço da ria de Mira, ou vice-versa, a passagem pela ponta dos diques de concentração das correntes da Barra, durante a vazante. Essa passagem só em determinadas fases, bastante fugazes, de marés, pode fazer-se sem risco para quem não for prático.

Ao entrar-se no braço da ria de Mira, pelo esteiro de Oudinot, tem-se em frente, a pequena distância, o friso das casas e palheiros, garridos, da Costa Nova, praia e povoação de pescadores (pág. 529), e à direita, mais perto, o fuste esbelto e listrado do Farol da Barra.

Foi nesta praia da Costa Nova que o pescador António dos Santos da Benta cometeu em 18 de Setembro de 1876 um grande acto de bravura, lançando-se ao mar revolto para levar a um barco de pesca de arrasto desgovernado e já quase perdido, um cabo que permitiu salvá-lo com 35 homens da tripulação.

Na faixa arenosa que vai desde o farol da Barra ao Areão encontram-se algumas quintas, como a do Farol, que pertenceu a José Estêvão e que hoje se acha fraccionada. Toda a extensão do areal que cobria esta faixa formava, na parte que cabe ao concelho de Vagos, a antiga Quinta do Inglês, hoje também dividida por vários possuidores. Entre a Costa Nova e a Vagueira, elevam-se alguns montículos arenosos, cobertos duma vegetação espontânea: cordeirinhos (Diotis candidissima, Desf.), a Sarophularia frutescens, L., e sobretudo a Scilla maritima, L.

O canal ou ria de Mira é o de formação mais recente. Foi a deslocação lenta da barra, do Norte para o Sul, nos séculos XVI, XVII e XVIII, que lhe deu origem. Ao Sul. da Vagueira o cordão de areia que separa a ria do mar vai-se estreitando até rematar na Costa de Mira, passando pela frente do cais do Areão (próximo do qual, a Nordeste, existiu, no séc. XVII, o chamado Forte Velho), mais ao Sul, pelo Poço da Cruz, que é hoje a extremidade Sul da ria (pág. 125).

________________________________________

(1) – Na planta de Aveiro, onde (5-A), por lapso, está escrito Cale do Vouga, deveria ler-se Cale da Vila ou da Cidade.

 

 

Página anterior.

Página seguinte.

pp. 515-519